Como se previa, o debate sobre o estado da Nação foi uma mistura de balanço da legislatura com campanha eleitoral para as eleições legislativas de 6 de Outubro.
O primeiro-ministro desfiou os sucessos, a oposição criticou, os parceiros de esquerda tentaram fazer render o peixe.
Mas, pelo meio de elogios em causa própria e promessas eleitorais fiscalizadas pelo presidente do eurogrupo, vários fantasmas pairaram na sala de sessões e dois elefantes entraram no plenário, ou melhor na relação entre os partidos da gerigonça. Ainda não partiram vidros, mas na próxima semana podem partir.
Os elefantes levados até ao debate por Catarina Martins e Jerónimo de Sousa são dois processos legislativos ainda por fechar nesta ponta final da legislatura. Por um lado, a lei de bases da saúde, que anda a ser discutida há cerca de um ano, que o Governo quis negociar à esquerda, ainda fez um desvio para a direita, regressou à esquerda e ainda tem esperança de fazer aprovar.
A grande questão tem sido fechar ou não a porta à existência de parcerias público-privadas. O Governo quer que a lei de bases, pelo menos, não as proíba, a esquerda à sua esquerda quer acabar com elas, o Presidente já anunciou que assim não passará. Contudo, a existência ou não de uma nova lei de bases tem sido considerada irrelevante pelos operadores dos sistema, tanto médicos como administradores hospitalares.
Já as alterações às leis laborais mexem com a vida e o trabalho das pessoas e das empresas e andam também há cerca de um ano para serem aprovadas e saírem do Parlamento. Resultam de propostas de lei do Governo que, por sua vez, decorrem de um acordo de concertação social. Mas PCP e Bloco entendem que não é preciso respeitar tal acordo. A concertação social é, aliás, para o PCP o mesmo que a gerigonça é para um certo PSD: o demónio. Estão lá os patrões, portanto nada de bom pode vir dali.
À beira de terminar a legislatura, PCP e Bloco mostram-se disponíveis para aprovar tanto a lei de bases como as leis laborais.
E, sonsamente, desafiam os socialistas a mostrarem de que lado estão, se são mesmo de esquerda. Encontram parceiros na bancada do PS, mas também adversários, o maior deles Carlos César, o líder da bancada e presidente do partido, que garante na Assembleia que os socialistas não passam das linhas de equilíbrio orçamental e político.
São só dois assuntos numa legislatura que muitos não contavam chegasse ao fim. Mas são dois assuntos que mostram as limitações da maioria de esquerda e podem vir a ‘morrer na praia’ se não for possível chegar a acordos até às votações finais da próxima semana. Acabada a legislatura sem serem aprovados, será necessário começar o processo legislativo de inicio.
Além destes elefantes, houve fantasmas a pairar na sala de sessões. Uns a ensombrar a esquerda, outros a direita.
Primeiro, o fantasma de Tancos que ainda pode assustar o primeiro-ministro. E até o Presidente. Meio país achará que Costa e Marcelo saberiam da encenação do achamento das armas, mas enquanto não houver provas, não se passa nada. Por isso, Telmo Correia perguntou ao primeiro-ministro o que quer dizer quando diz que mantem a confiança no ex-ministro da Defesa, Azeredo Lopes, entretanto constituído arguido: se mantém a confiança no que ele disse ou mantém a confiança de que nada mais dirá?
Costa respondeu que, para si, o verdadeiro mistério que ainda está por resolver neste caso é porque é que há pessoas que se preocupam mais com a forma como apareceram as armas do que com o roubo propriamente dito. Este é, claramente, um assunto ainda por resolver por muito que a comissão de inquérito parlamentar tenha concluído que não houve responsabilidades políticas. A oposição, mais concretamente o CDS não deixará de continuar a agitar este fantasma que agora está no tempo da justiça e nunca se sabe como é gerido esse tempo.
Depois, o fantasma da oposição passada. Assunção Cristas, a presidente do CDS que fez tantas vezes sozinha as despesas da oposição ao Governo ao longo destes quatro anos parece uma sombra de si mesma. Onde antes havia combatividade em excesso, crispação muitas vezes desgarrada do sentir do país, agora há uma espécie de docilidade sonsa. Assunção parece ter quebrado com o resultado das eleições europeias e passou do 80 para o 8.
Houve ainda o fantasma da oposição interna, com o líder parlamentar do PSD, Fernando Negrão, a fazer referência aos tumultos no seu partido e, ainda assim, terminar o discurso a garantir que o PSD vai ganhar as eleições. Escusado e pouco convincente.
Por fim, o fantasma da maioria absoluta. Fantasma para o PS, que tem dificuldade em juntar as duas palavras e sabe que não pode hostilizar demasiado os seus parceiros de quatro anos; fantasma para a esquerda, que quer continuar a ser necessária. Este fantasma foi chamado à tribuna por Catarina Martins, a líder do Bloco de Esquerda, que perguntou “afinal quem suspira por uma maioria absoluta”, garantindo que não são os reformados nem os precários, mas sim os administradores de grandes grupos e o patrão dos patrões.
E será que não passou a ser também o desejo do Presidente da República? Duas horas antes de começar o debate parlamentar, Marcelo Rebelo de Sousa fez um discurso em que traçou os desafios do que chamou um período “crucial” que vai até 2021. O primeiro desafio é "mobilizar a abstenção para o voto" e o segundo "manter o essencial do sistema partidário", para que este "possa reformar-se sem ruturas mais ou menos drásticas". É bem conhecido o receio presidencial de ruturas ou vazios no sistema partidário que levem ao crescimento de populismos.
Para o Presidente é preciso ver como os portugueses configuram equilíbrio de forças dentro do sistema para que sejam viáveis “consensos essenciais de regime”, para que se afirme “uma governação estável” e para que exista uma alternativa que “garanta a efetiva vitalidade do sistema político".
Ou seja, para Marcelo Rebelo de Sousa é desejável “que por essa via se consensualizem estratégias estruturais, a governação não tenha de gerir à vista da costa com acordos pontuais e o sistema não fique debilitado por falta de imprescindível alternativa. Se Marcelo não pediu uma maioria clara, nem absoluta, nem inequívoca, pediu, pelo menos, uma maioria que consiga fazer as reformas que a “gerigonça” não tem condições para fazer.