Manuel Braga da Cruz, sociólogo, ex-reitor da Universidade Católica Portuguesa foi um dos subscritores a iniciativa legislativa de cidadãos que deu origem a alterações à lei do aborto revogadas esta quarta-feira pelo Parlamento.
Em entrevista à Renascença, critica o que considera ser “precipitação legislativa”, falta de respeito pelo Presidente da República e desconsideração pela participação dos cidadãos na política. E manifesta receio que o mesmo se venha a verificar quanto à eutanásia, outra questão que tem a ver com “valores profundos da sociedade” e que já entrou no debate político.
Como é que viu esta confirmação das duas leis vetadas pelo Presidente da República?
Lamento, sinceramente, que o Parlamento tenha tomado de uma forma tão apressada e pouco ponderada esta decisão. Desde logo, porque a anterior aprovação de algumas das exigências da petição diziam respeito à maior petição algum dia apresentada ao Parlamento. Uma petição que foi subscrita por quase 50 mil pessoas e que reflectia uma opinião que é partilhada por uma parte muito significativa e muito alargada da sociedade portuguesa. Não se tratava de alterar significativamente a lei, mas de a melhorar, introduzindo a noção do aconselhamento às mulheres grávidas com vontade de abortar e, em segundo lugar, pretendia que o aborto deixasse de ser promovido, estimulado pelo próprio estado. Lamento esta decisão, pelo seu carácter apressado e por não ter dado a devida atenção às muito pertinentes observações que o Sr. Presidente da República entendeu formular.
Sendo subscritor dessa iniciativa legislativa de cidadãos, o que é que este processo também diz sobre a consideração dos partidos pelas iniciativas de cidadania?
Ao desconsiderar desta forma uma iniciativa de cidadãos tão alargada e tão significativa não se está a estimular a participação dos cidadãos na vida política. Alguma coisa este processo reflecte do funcionamento das instituições que não é o melhor e que indicia que a nossa democracia precisa de ser melhorada e qualificada.
Receia que esta rapidez a aprovar este tipo de assunto, sem consideração pelos apelos do Presidente a um debate alargado, se venha também a verificar noutro assunto polémico que já entrou no debate político que é a questão da eutanásia?
Evidentemente que sim. Tenho o maior receio que esta precipitação, este vanguardismo legislativo se venha a estender a outras matérias, nomeadamente à questão da eutanásia, que é de uma delicadeza enorme e que pode abrir a porta a uma insegurança generalizada dos cidadãos face aos cuidados de saúde. É um precedente que não anuncia nada de bom e, relativamente à questão da eutanásia, tal como tem vindo a ser apresentada, suscita as maiores apreensões e os maiores receios.
Esta semana o Cardeal Patriarca dizia, em declarações à Renascença, que todas estas iniciativas - quer relativas a questões do aborto, quer da eutanásia - não têm tanto a ver com o quadro partidário, mas têm sobretudo a ver com uma cultura individualista. Como sociólogo, como é que lê estas iniciativas e estas alterações que têm a ver com questões profundas da sociedade?
Aquilo que disse há pouco, que há um certo vanguardismo legislativo no nosso Parlamento é bem provado com esta precipitação com que, sem ouvir especialistas, sem reanalisar uma lei que está em funcionamento e que, de todos os lados, se apontam deficiências ao seu funcionamento, o Parlamento, um pouco cego a todas essas chamadas de atenção, resolve com grande precipitação, com grande pressa reaprovar coisas que mereciam seguramente maior ponderação.
Quer a questão do aborto, quer a questão da adopção, quer a questão que se anuncia da eutanásia são questões extremamente sensíveis, são questões que mexem no mais profundo dos valores da sociedade e que deviam merecer outra ponderação, outro cuidado ao Parlamento. Creio que o Parlamento não saiu dignificado desta decisão, pela forma e pelo conteúdo da decisão, e faço votos para, casos como estes, não venham a repetir-se na vida politica portuguesa.