A Cáritas Portuguesa aumentou em janeiro em cerca de 10 por cento os seus apoios, “sobretudo por causa das pessoas que ficaram sem emprego” e que apresentam “dificuldades nas rendas de casa, pagamento de água e luz”.
Este é um dado deixado pelo presidente da Comissão Episcopal da Pastoral Social, D. José Traquina, em entrevista conjunta à Renascença e agência ECCLESIA.
D. José Traquina alerta também para a necessidade de o Estado rever anualmente os seus acordos de cooperação com o sector social, caso contrário “o que vai acontecer é o que já está a acontecer: a proliferação de lares clandestinos”.
O também bispo de Santarém aborda ainda a questão dos efeitos da pandemia “nas pequenas empresas, nos pequenos negócios” e afirma que “há milhares de pessoas em sofrimento profundo” por não poderem desenvolver a sua atividade profissional.
O presidente da Comissão Episcopal da Pastoral Social espera que o setor social não seja esquecido na distribuição da "bazuca" europeia e entende ser “necessário dar sinais” aos portugueses com a preparação de um plano de desconfinamento, lembrado que “estamos quase no mês de março e as pessoas querem saber se vamos ou não ter celebração da Páscoa”.
D. José Traquina aproveita o início da Semana Cáritas para reforçar o apelo para que os portugueses, apesar da pandemia, continuem a ser generosos para com a Instituição de apoio social e humanitário da Igreja.
Em dezembro de 2020, relatava um aumento expressivo dos pedidos de apoio por causa da pandemia e revelava situações complicadas relacionadas com as rendas de casa. Tivemos, entretanto, novo confinamento. Esses relatos e essa preocupação aumentaram?
Sim, aumentaram, um pouco por todo o país, sobretudo por causa das pessoas que ficaram sem emprego: dificuldades nas rendas de casa, pagamento de água e luz. São dificuldades relacionadas com o rendimento das pessoas, a que foi preciso atender, manifestando a maior atenção a cada situação. Procura-se corresponder às dificuldades que as pessoas vivem.
Foi um crescendo, no mínimo, de 10% acima do que era habitual nos apoios que estavam a ser dados.
Falamos do período deste novo confinamento?
Sim, sim. Em janeiro, por exemplo, isto aconteceu. Em 2020, nos meses de março e abril houve zonas do país com situações mais complicadas, nestas respostas a pessoas que ficaram sem trabalho. Esse é um problema que nos preocupa, porque as coisas não ficam resolvidas de um momento para o outro, e faremos tudo o que for possível para apoiar as pessoas. A normalidade da economia, dos empregos, vamos ver quando é que ela se ganha… A Cáritas mantém-se disponível para desenvolver a solidariedade de quem pode apoiar e colaborar com as pessoas que precisam desse apoio.
Sem peditório público em 2020 e, provavelmente, em 2021, a Cáritas Portuguesa pediu aos bispos que destinassem parte da renúncia quaresmal às Cáritas Diocesanas, o que acontece em muitos casos. É importante sensibilizar as comunidades católicas para a urgência de ajudar quem ajuda?
Sim, é mesmo muito importante. Os bispos têm o dever de consultar os seus presbíteros, é em Conselho Presbiteral que decidimos esta orientação da renúncia quaresmal. Sabemos que mesmo nesta haverá pessoas com maior dificuldade em colaborar.
Não havendo peditório público da Cáritas e não havendo celebrações da Eucaristia com um peditório dentro das igrejas, a favor da Cáritas, é claro que existe uma grande dificuldade. Mesmo assim, através das celebrações transmitidas, lançamos esta renúncia em favor da Cáritas, pedindo aos cristãos que vão juntando lá em casa o que puderem juntar, algum apoio, a pensar nos que mais precisam. É um gesto de generosidade, de caridade fraterna, colocando essa renúncia à disposição da Cáritas.
Temos a noção de que onde não chega a Cáritas, mais ninguém chega. Receia que a pandemia possa esconder situações que nem a Cáritas possa encontrar? Serão muitas?
Admito que sim. Nós temos salientado uma metodologia, nas comunidades cristãs, nas paróquias, sobretudo em zonas urbanas – mas não só, também em zonas mais rurais -, que é o cuidado na proximidade. Nesse sentido, nalgumas cidades temos cristãos que, por ruas ou por bairros, vão estando atentos a situações de pessoas que ficaram desprovidas de rendimentos e procuram saber se a pessoa, a família, precisa de apoio. Há uma pobreza envergonhada, de facto: as pessoas precisam desse apoio, mas têm alguma dificuldade em dirigir-se a um serviço da Cáritas.
Em muitas terras, muitas comunidades cristãs, desenvolveu-se um cuidado de proximidade, de uma forma muito discreta. Mas admito obviamente que, mesmo assim, haja muitas situações que não sejam conhecidas, porque não foram detetadas ou ninguém comunicou.
Ainda em 2020, a Cáritas apresentou um estudo sobre as barreiras no acesso à habitação, educação, cuidados de saúde, emprego; entre outros. O estudo apontava mesmo um conjunto de recomendações ao governo. Sentiu algum efeito prático relacionado com as conclusões deste trabalho?
Eu tenho sentido sempre alguma generosidade em relação às iniciativas da Cáritas e às observações que a Cáritas faz. Mas, na verdade, somos surpreendidos sempre com as realidades que nos aparecem… Estamos a falar de um momento complicado, surgem dificuldades de que não estávamos à espera, com a pandemia.
A cooperação que a Cáritas tem, aquela com que pode contar, não é propriamente com o Estado, com a Segurança Social. Nós fazemos cooperação com a sociedade, procuramos denunciar, observar, ao Governo, às instâncias governativas aspetos que cabe ao Estado assegurar, no sentido da justiça, de enfrentar situações mais graves, mais complicadas. E colaboramos, certamente, nessa observação, dispomos dela para que o Estado faça o que lhe compete.
Reservamo-nos, neste olhar para uma sociedade mais justa, o desenvolvimento de uma sociedade que, em si mesma, seja solidária. Queremos desenvolver não só a atenção a quem precisa, mas também desenvolver na sociedade este gosto de colaborar; não queremos ser apenas o problema, queremos fazer parte da solução. Estamos, por um lado, a chamar à atenção, e às vezes, no terreno, em grande proximidade com as autarquias, por exemplo, e com bons frutos para as populações.
Para explicar as novas situações que nos aparecem, quero dar um sinal: aqui, no Ribatejo, onde me encontro, esta Diocese de Santarém, surgiu no ano passado um fenómeno que foi preciso cuidar, ligado ao número de indianos a trabalhar nesta zona. A Cáritas diocesana tomou a iniciativa de apoiar, de sugerir o ensino da língua portuguesa àqueles imigrantes, para os integrar. Uma forma de colaborar com aquelas pessoas é acolhê-las e integrá-las. Esse foi um desafio novo, repentino, e está visto que é preciso duplicar, triplicar estas aulas, que tiveram de ser interrompidas em janeiro, por causa da pandemia, mas que irão ser retomadas logo que seja possível.
Na última semana, a DECO alertava para um aumento expressivo de insolvências pessoais, numa altura em que os portugueses e as empresas ainda não começaram a pagar moratórias. Podemos recear o pior?
Bem, eu tenho esperança que as promessas que o Governo tem feito de apoio às empresas seja justa e que tenha em conta os pequenos, Tem sido analisado e dito que a pandemia vai prejudicar os mais pobres, vai prejudicar as empresas mais pequenas. Numa atenção no sentido de justiça esperamos que haja essa atenção, que essa atenção se concretize e se atenda porque de facto, neste momento, milhares de pessoas há milhares de pessoas em sofrimento profundo por não poderem desenvolver o seu restaurante, o seu café, o seu negócio, o seu estabelecimento. Sintonizar com o sofrimento destas pessoas envolve-nos também o mesmo sofrimento porque precisamos de esperança e por isso as pessoas desejam muito que o Governo apresente um planeamento de desconfinamento para poderem sonhar e resolver as suas vidas.
E está na hora do Governo apresentar esse programa de desconfinamento?
Eu penso que é necessário dar sinais. Pode não ser para amanhã, mas é preciso esse planeamento porque suscita preparação, suscita expectativa e as pessoas precisam dessa palavra; claramente precisam. Eu vejo isso mesmo no próprio funcionamento das comunidades cristãs. Estamos quase no mês de março e as pessoas querem saber se vamos ou não ter celebração da Páscoa. Desejamos ter celebração da Páscoa, mas ainda não podemos responder. Ainda não sabemos. Desejamos muito que seja possível, mas claro, há aqui um passo que nos obriga a estar em sintonia com a sociedade em que estamos e certamente que as coisas vão evoluir num ritmo semelhante. Mas precisamos muito, e também os cristãos precisam da sua animação espiritual para cumprirem a sua missão na Igreja e na sociedade e na família.
Outra preocupação é a situação das IPSS e a contratualização com o Estado. Persistem as dificuldades relacionadas com pagamento de salários? Teme que algumas destas instituições venham a fechar portas?
Bem, eu espero que as instituições se mantenham porque é estruturante para a estabilidade da sociedade que existam e se mantenham. No ano passado foi muito complicado e se o Governo não tivesse revisto os compromissos de cooperação com as instituições; as instituições não teriam aguentado mesmo. Houve uma aproximação às despesas reais das instituições que tiveram com o aumento dos salários no mês de janeiro de 2020. E, portanto, a meio do ano as negociações avançaram e as coisa compuseram-se. O Estado não se aproximou em absoluto, em 100 por cento às despesas das instituições, mas aproximou-se mais e gerou alguma esperança de que as coisas se conseguissem manter. Agora não se esperava outra vez a pandemia com esta força no mês de janeiro, logo no princípio do ano. E, portanto, o aumento de despesa que isto tem e também a evolução da inflação das coisas, vai levar as instituições a fazer as contas e a apresentar as suas dificuldades. Tem havido um grande esforço, quer por parte da União das Misericórdia quer da CNIS nessa aproximação, e na realidade das instituições. E eu quero agradecer a luta de cada uma das instituições. Cada uma das instituições fez um trabalho notável com o apoio dos trabalhadores para assegurar a qualidade e a segurança das pessoas idosas, neste tempo de pandemia.
Ainda assim, as instituições dizem que não recebem aquilo que lhes é devido. Há necessidade dessa revisão que vem sendo reclamada quer pela União das Misericórdias, quer pela própria CNIS dos contratos celebrados com o Estado?
Sim, claro. A revisão deve ser feita todos os anos, todos os anos. E às vezes até quando alguma situação especial acontece, alguma emergência. Mas, todo os anos deve ser revista. Porque a certa altura o que é que acontece? Se por cada ano que passa o Estado descer na comparticipação, que é o que tem acontecido; a comparticipação vai sempre descendo, descendo, descendo. Conclusão: às páginas tantas estão as instituições numa aflição permanente para assegurar um trabalho que é fiscalizado e tem de ser de qualidade. E o que vai acontecer nesta situação? O que vai acontecer, é o que já está a acontecer que é proliferação de lares clandestinos. Porquê? porque não há condições para ter correspondência aquilo que está previsto na qualidade de uma residência para idosos sem o apoio necessário para que tal aconteça. E, portanto, há aqui uma reflexão a fazer da parte do Estado sobre o que é que quer. Mas na verdade, a realidade dos lares clandestinos é uma necessidade da população. Ao envelhecimento da população é preciso dar apoio às pessoas e as famílias vão resolvendo da forma da possível que têm. Eu não os condeno, eu não condeno os lares clandestinos. O que reconheço é que não houve condições das famílias para ter o familiar noutros sítios.
E aí entra o papel do Estado, não é?
Entra o papel do Estado. Cabe ao Estado resolver esta situação a que as instituições não conseguem responder.
Está a terminar o prazo de discussão publica da denominada "bazuca" europeia [1 de março]. Quais são as suas expectativas relativamente ao apoio ao sector solidário? Seria importante ter instituições católicas a deixar contributos sobre as prioridades a seguir?
Eu espero muito que o senhor social não fique de fora daquilo que são os apoios europeus. Mau seria que ficasse. Espero bem que seja uma área contemplada e, portanto, as instituições possam contar com a melhor vontade da parte do Governo para assegurar a qualidade de vida às pessoas que as instituições servem. Com esta consciência: é que as instituições existem e fazem com qualidade que o Estado sabe que ninguém faria por menos dinheiro. Portanto, é uma qualidade assegurada com uma gestão cuidadosa e, portanto, não há nenhum prejuízo para o Estado apoiar bem as instituições. Quanto à Igreja, eu quero dizer que é de sublinhar as parcerias e os apoios - mesmo neste tempo de pandemia - de outras instituições e de empresas que sabendo do seu dever ético de colaborar na sociedade, se dispõem a colaborar com a Cáritas para que a Cáritas receba um apoio quer monetário, quer em bens para fazer chegar a quem precisa. Isso tem acontecido e é bom que continue a acontecer. E, portanto, é um bem desenvolvido na Cáritas portuguesa e depois nas Cáritas diocesanas e paroquias, mas com uma grande credibilidade que se tem desenvolvido entre instituições, empresas e Cáritas portuguesa. E espero que continue.
Senhor bispo, agradecemos esta entrevista com votos de que tudo corra bem nesta semana...
Tudo corra muito bem e já agora para terminar da minha parte lembrar que a Cáritas portuguesa lançou um formato online para apoiar a Cáritas e portanto, as pessoas não tem a celebração da eucaristia para dar a sua esmola, mas podem fazê-lo de forma direta na página da Cáritas portuguesa. Tem lá as várias formas de colaborar online com alguma esmola. Muito obrigado por esta oportunidade.