“A Síria é como uma pessoa que fez uma operação grande e difícil, e a ferida continua aberta”, afirma Annie Demerjian em entrevista à Renascença.
A religiosa de 51 anos pertence à Congregação de Jesus e Maria desde 1996. Foi para Alepo em 2003. Quando a guerra começou, dedicou-se à ajuda de emergência às famílias e a sua missão estendeu-se a Damasco, Hasakeh e Malloulla. É a atual responsável pelos projetos da Fundação Ajuda à Igreja que Sofre (AIS) na Síria.
Formada em engenharia civil, profissão que chegou a exercer numa empresa libanesa, também foi professora primária, mas sentia-se incompleta. “Sempre perguntei: ‘Senhor, o que queres de mim?’”. Acabou por se sentir “chamada” por Deus para “outras construções”.
“Quando decidi ser freira foi como se o Senhor me tivesse dito ‘constrói a minha casa’, mas não uma casa de tijolo. Estou muito grata por poder participar na construção das almas no meu país, e também das casas”, diz a sorrir.
Em Portugal por estes dias para falar da Síria, a propósito da nova campanha da AIS para reconstruir Alepo, a irmã Annie garante que a situação “está melhor”, apesar de haver ainda combates.
Mas, para que o país recupere a normalidade tem de ser ajudado, e muito, por isso é fundamental que se continue a apoiar o trabalho da AIS no terreno.
“Tudo o que recebemos tem significado para nós. Porque eu, como religiosa, não posso só dizer às pessoas 'Jesus ama-vos', porque eles respondem 'tenho fome irmã, quero comer'. Então, temos de assegurar as duas coisas”, ajuda espiritual e material. E “sem a ajuda que temos recebido não conseguimos apoiar as pessoas”, diz.
Annie Demerjian lamenta que várias organizações tenham abandonado a Síria assim que os confrontos abrandaram, porque as necessidades são agora maiores do que nunca.
“Temos de ajudar as pessoas a recomeçarem as suas vidas, a encontrarem emprego, porque muitos ficaram sem trabalho, quem tinha lojas perdeu tudo. E temos ao mesmo tempo de os ajudar nas necessidades básicas do dia a dia, como a comida”.
Uma das prioridades terão de ser os mais novos. “As crianças têm um grande trauma nos seus corações, têm de ser apoiadas. Porque temos uma geração que já nasceu durante a guerra – três milhões – que não conhece mais nada a não ser violência, guerra e morte”.
Mas esta religiosa sabe que nada mudará de um dia para o outro. “Vai demorar anos a reconstruir o país, mas vai levar ainda mais tempo para reconstruir os corações partidos. Mas quando há boa vontade, nada é impossível”.
A irmã Annie não tem dúvidas de que, para a maioria dos sírios, estes oito anos de guerra “foram os mais difíceis das suas vidas” e houve quem se aproximasse mais de Deus, mas também quem se afastasse.
“Perguntavam ‘como pôde o Senhor permitir isto?’. É humano reagirem assim”, afirma. Mas garante que, mesmo nos momentos mais difíceis, os cristãos sírios nunca perderam a fé e esperança. Surpreendeu-me, durante a guerra, ver as igrejas sempre cheias e as pessoas a rezar. Um dia a igreja era atingida por uma bomba e pensava-se ‘amanhã não haverá aqui ninguém’. Mas, no dia seguinte, as pessoas iam e participavam na missa. Isto para mim foi espantoso, um sinal de determinação, ir em frente apesar de tudo o resto. A Igreja esteve sempre presente, com os seus padres e bispos. Estarem lá com a sua gente, e isso teve muito significado para os crentes”, relata.
Para Annie Demerjian, “a oração é a arma mais poderosa do mundo”, por isso pede aos portugueses que “continuem a rezar pela Síria”.
“Porque nós acreditamos na oração, que a oração mudará a mente e os corações, e que a paz voltará um dia ao nosso país”.
A emergência de reconstruir
“Os Cristãos da Síria precisam da sua ajuda” é o nome da campanha de Natal 2018 da Fundação Ajuda à Igreja que Sofre. À semelhança do que já fez no Iraque, a AIS vai ajudar na reconstrução, agora de Alepo.
“Estamos já a reconstruir casas para quem ficou sem nada. É uma das formas que temos para que a comunidade cristã se possa manter na Síria”, explica à Renascença a responsável pela AIS em Portugal, Catarina Martins Bettencourt.
Vão também ser reconstruídas três catedrais. “Queremos que sejam uma luz na cidade, que sirvam de farol de esperança, para a comunidade cristã perceber que a Igreja, os padres e as irmãs, não saíram de lá e vão continuar com eles”.
Catarina Martins Bettencourt lembra que a instituição tem sido o suporte da população desde que a guerra começou, garantindo bens essenciais a centenas de deslocados, e essa vai continuar a ser uma prioridade.
“Os cabazes alimentares, a medicação, o apoio ao aluguer de casas e quartos, o apoio à eletricidade, temos de continuar a ajudar com estes bens essenciais, porque apesar da situação estar mais calma, e de haver menos combates, as necessidades continuam a ser muitas”, afirma. Mas, também é preciso criar condições para as famílias se instalarem de novo.
“Um dos grandes problemas de países como a Síria, como já tinha acontecido com o Iraque, é de facto a comunidade cristã não ter capacidade para regressar. Se não tem agora ajuda para se fixar, vamos assistir rapidamente ao fim da presença cristã nestes países. Portanto, este programa pretende dar esse sinal de esperança. É preciso reconstruir tudo e ajudar as pessoas a arranjar trabalho”, diz.
As crianças também são uma preocupação e a AIS está apoiar com “bolsas de estudo para jovens, desde o ensino básico até ao universitário”. Catarina Martins Bettencourt estima em “quase dois milhões de euros” o investimento necessário para a reconstrução e para as bolsas de estudo.
A nova campanha ‘Os Cristãos da Síria precisam da sua ajuda’ envolve os 23 secretariados da AIS, porque “as necessidades são tantas que tem de ser um esforço internacional”, refere ainda, agradecendo a colaboração dos portugueses. “A ajuda dos nossos benfeitores aqui tem crescido nos últimos anos, em número e em generosidade”, porque “as pessoas sentem que há uma urgência em ajudar estes cristãos, que são nossos irmãos na fé, e que estão a passar por tantas dificuldades”.
O apoio também tem crescido no resto do mundo. “Só assim se explica como é que uma instituição como a AIS num só país, como é o caso da Síria, este ano já tenha ajudado com sete milhões de euros. É porque tem muitas pessoas por trás”. E lembra que a Fundação não apoia apenas a Síria: “em 2017 ajudámos mais de 5 mil projetos em mais de 145 países, são muitos os projetos e muitas as necessidades”.
Os pormenores da campanha podem ser consultados no site da Ajuda à Igreja que Sofre www.fundacao-ais.pt.