Hoje voltamos ao Mediterrâneo e ao drama dos que tentam alcançar o sonho Europeu. O número de imigrantes que tenta a sorte na travessia até à Europa não tem parado de crescer nos últimos anos. Só desde Janeiro deste ano, mais de 36 mil chegaram às costas de Itália e de Malta. Vindos de vários países africanos e do Médio-Oriente, grande parte foge de guerras, perseguições, da fome e de falta de condições de vida nos países de origem.
Colocados em barcos sobrelotados pelas redes de traficantes que actuam sobretudo na costa líbia, muitos morrem na viagem. Há um mês, um barco naufragou e arrastou para a morte 800 pessoas, levando as instituições europeias a desdobrar-se em reuniões para tentar encontrar respostas para o problema.
Logo no dia seguinte à tragédia que vitimou 800 pessoas no Mediterrâneo, a 19 de Abril, os ministros dos Negócios Estrangeiros e do Interior, reunidos de emergência no Luxemburgo, propunham um reforço das operações de busca e salvamento e medidas de penalização das redes criminosas que lucram com o transporte dos migrantes.
Poucos dias depois, o Conselho Europeu reunia os Chefes de Estado da UE numa cimeira extraordinária, de onde saiu a promessa de triplicar o orçamento da Triton, a missão de vigilância das águas do Mediterrâneo coordenada pela agência de controlo das fronteiras, a Frontex.
O desmantelamento das redes de tráfico esteve também em cima da mesa. Essa tem sido, de resto, uma das principais bandeiras da União como resposta ao problema e levou a representante da diplomacia europeia, Federica Mogherini, a pedir o aval das Nações Unidas para uma operação militar focada na destruição dos barcos usados pelos traficantes na costa líbia.
Na passada semana, a Comissão Europeia apresentou um novo conjunto de medidas, reunidas numa Agenda Europeia da Migração. Além de um orçamento retificativo para 2015 que garante um total de 89 milhões de euros para enfrentar o problema, foi anunciada a proposta de um sistema de quotas que distribua 20 mil novos refugiados pelos estados-membros a cada ano. O número de pessoas a receber por cada país dependeria de factores como o seu tamanho, população, nível económico e de desemprego e o número de refugiados que já exista no país.
A proposta foi bem acolhida por países como a Alemanha, que recebeu em 2014 a maior fatia de refugiados, mas mereceu imediatamente reservas e críticas de outros estados, como o Reino Unido e a Hungria.
Esta segunda-feira, os chefes da diplomacia dos 28 reuniram-se novamente para discutir o assunto e o combate aos traficantes voltou a ser o principal foco. Foi aprovada uma operação naval para combater o tráfico de migrantes no Mediterrâneo e a alta representante da União para a política externa e segurança espera que a operação possa ser já lançada em Junho, depois de fixadas as contribuições de meios dos Estados-membros. Mas Mogherini sublinhou que é ainda necessária uma resolução no quadro das Nações Unidas para dar um "quadro jurídico" incontestável à missão.
A questão das quotas de distribuição de migrantes é bastante mais sensível e não foi discutida nesta reunião. Caso a medida venha a avançar, Portugal pode receber mais de 700 refugiados. O ministro dos negócios estrangeiros Rui Machete já afirmou que esse “seria um esforço muito grande”.
O “112” do Mediterrâneo
O drama dos migrantes no Mediterrâneo foi também tema da cimeira dos presidentes dos Parlamentos da UE para o Mediterrâneo, que reuniu representantes de mais de 40 países em Lisboa, na passada semana. Um dos convidados para discursar no encontro foi o padre eritreu Mussie Zerai, que há anos defende uma nova política de imigração. Este padre é a última esperança de muitos dos que se fazem ao mar. O número de telefone deste sacerdote foi-se espalhando pelos migrantes que estão na costa líbia. Quando enfrentam o risco de naufrágio, é aquele contacto que ligam a pedir socorro. Numa conversa com a jornalista Catarina Santos, Mussie Zerai mostra-se bastante crítico da forma como a Europa tem lidado com o problema.
Mussie Zerai nasceu na Eritreia e foi para Itália ainda adolescente. Actualmente serve a comunidade de milhares de eritreus católicos que vive na Suiça. É padre na paróquia de Friburgo. É também o director da Agência Habeshia para o Desenvolvimento, dedicada aos migrantes e refugiados, situada em Itália.
O rol de chamadas começou por acaso. Um jornalista ligou-lhe a pedir ajuda com umas traduções e disse-lhe que o seu contacto estava escrito em paredes de centros de detenção de migrantes, em África. Zerai não fazia ideia como tinha lá ido parar.
Em 2011, o fenómeno explodiu. O seu contacto foi difundido como número de emergência na Voz da América, na alemã Deutsche Welle e na Rádio Erena, sediada em Paris. Quando o padre Mussie Zerai estava envolvido na evacuação de cidadãos da Eritreia e da Etiópia que estavam na Líbia para campos de refugiados na Tunísia.
A maioria dos migrantes a quem passam aquele contacto conhece-o apenas como Padre Moisés. Não levam documentos, partem com a roupa do corpo e com o contacto guardado num papel: “É uma responsabilidade que sinto e tento, no limite das minhas possibilidades, antes de mais ser uma voz de tantos que não a têm. E levar os seus pedidos e as suas necessidades aos parlamentos, às instituições, a todos os órgãos que têm poder decisivo que lhes permita fazer qualquer coisa para os ajudar”.
Uma missão que já o colocou, aos 40 anos, na lista de nomeados para o Nobel da Paz e que o leva frequentemente a vários fóruns onde o tema dos migrantes do Mediterrâneo esteja em cima da mesa. A 29 de Abril discursou no Parlamento Europeu, em Estrasburgo. Na passada semana passou por Lisboa, onde participou na Cimeira dos Presidentes dos Parlamentos da União para o Mediterrâneo.
A quantidade de vezes que Zerai já ouviu declarações de boa vontade ao longo dos últimos anos força-o a refrear o entusiasmo: “Espero que, finalmente, os últimos acontecimentos obriguem a União Europeia a agir. É preciso ir à raiz do problema para perceber por que é que estas pessoas estão a fugir dos seus países de origem. Se apenas se ocuparem do que acontece no Mediterrâneo é como tentar transportar a água do Mediterrâneo com uma colher. O problema não acabará. É preciso curar a causa do problema”.
O Mediterrâneo é actualmente palco da maior vaga de imigração em massa desde a II Guerra Mundial. Mussie Zerai ouviu, no Parlamento, os representantes de cerca de 40 países apresentarem as suas sugestões para enfrentar o problema. Entre os apelos dos países do Sul a uma maior colaboração financeira e as expressões de preocupação dos países do Norte, ecoou na sala várias vezes a palavra “Humanidade”. Mas, o que Zerai leu nas entrelinhas foi outra palavra: “negócio”. Afirma ele que “nos discursos, no centro do debate não estavam as pessoas. Estavam negócios, estavam rendimentos. Uma discussão de acordos. O Sul para ter mais vantagens e mais ajudas; o Norte para despachar o problema em troca de mais energia, mais gás, mais petróleo”.
Segundo Zerai, “a Europa só está interessada em bloquear ou reduzir ao mínimo os que chegam. Não nas suas vidas, no que acontece ali, no norte de África. Ou até mais a sul. Porque, com o processo de Cartum, fala-se em criar barreiras ainda mais a sul - no Chade, no Níger, no Sudão, no Mali. Mas como ninguém os vê, não há câmaras que vão lá, não há corpos a boiar, porque a areia cobre tudo, como se costuma dizer ‘Os olhos não vêem, o coração não sente’”.
O reforço do financiamento do Fundo Europeu de Desenvolvimento destinado aos países de origem e de trânsito dos migrantes foi outras das recomendações que saiu da reunião da União para o Mediterrâneo em Lisboa. A mesma medida tinha já sido defendida nas conferências do Processo de Cartum - uma iniciativa que procura o diálogo sobre migração e mobilidade entre os países do Corno do Oriente de África. Mussie Zerai tem sérias dúvidas que a solução passe por aqui: “Que instrumentos tem a União Europeia para verificar que aquele dinheiro vai realmente ser aplicado em benefício da população? Porque não é a própria União Europeia que vai desenvolver estes projectos locais. Dará os fundos aos Governos. Alguns dos que fazem parte do processo de Cartum, como a Eritreia e o Sudão, são ditaduras. Querem dar fundos a estes regimes para impedir a vinda destas pessoas, não para o desenvolvimento. O argumento do desenvolvimento é uma fachada para justificarem o dinheiro. Mas se estes Governos não são fiáveis, são tão corruptos e criminosos como se faz para colaborarem e para cuidarem da vida de centenas de milhares de pessoas?”
Desde que, a meio de Abril, soaram os alarmes de um naufrágio que terá feito pelo menos 800 mortos no Mediterrâneo, as instituições europeias têm-se desdobrado em iniciativas e reuniões para discutir a imigração que chega do sul.
Uma das medidas apresentadas é a destruição dos barcos dos quais se servem os traficantes de seres humanos para transportar os migrantes. Esta segunda-feira, a União Europeia aprovou uma operação naval para combater o tráfico de migrantes. Tem sido a grande bandeira europeia na resposta à crise do Mediterrâneo e tem deixado Mussie Zerai perplexo: “Falar de destruir os barcos, enquanto spot publicitário fica muito bem, mas como é que se faz isso? Como se distingue entre embarcações? (...) E o que é que isto resolve? Destroem quatro barcos… e depois? Os refugiados continuarão ali. E há mesmo o risco de fazerem vítimas civis”.
Quanto a quem deve fazê-lo, “a luta contra os traficantes deve ser feita pela Interpol, pela Europol, seguindo o curso do dinheiro. Porque os verdadeiros traficantes não estão nos barcos. Dizem que prenderam contrabandistas… mas quantos verdadeiros contrabandistas prenderam? Os verdadeiros mandantes, os verdadeiros traficantes que ganham milhões à custa destas pessoas não são presos. Ganham o seu dinheiro ficando comodamente sediados no Dubai, no Cairo, em Cartum, em Trípoli ou em qualquer outro país”.
Em Outubro de 2013, depois de um naufrágio ao largo de Lampedusa que fez mais de 360 mortos, as autoridades italianas lançaram a operação Mare Nostrum. Uma missão de busca e salvamento que vigiava em permanência as águas territoriais italianas, maltesas e que se estendia até à costa líbia. A missão terminou um ano depois, no último mês de Novembro, quando entrou em cena a operação Triton, levada a cabo pela Frontex - a agência europeia para a protecção das fronteiras.
Entre as organizações que trabalham com migrantes no terreno sobraram avisos de que a diminuição da capacidade de busca e salvamento levaria necessariamente a mais mortes. E assim aconteceu: “O encerramento daquele projecto resultou, nestes poucos meses, na morte de 1.700 pessoas. Nos mesmos meses do ano passado, morreram 54 pessoas”, lembra Zerai.
A Mare Nostrum custava 9 milhões de euros por mês aos cofres italianos. A Triton gastava, até há bem pouco tempo, menos de um terço desse valor. Numa reunião de urgência do Conselho Europeu, a 23 de Abril, foi anunciado que o orçamento da operação Triton seria triplicado. Mas a filosofia da Frontex, que coordena a missão, mantém-se: vigiar e proteger as fronteiras europeias.
Desde que acabou a Mare Nostrum, Mussie Zerai tem mais dificuldade em ver os seus apelos respondidos quando avisa as autoridades de que um barco está em perigo. Antes havia sempre um navio da Marinha ou da Guarda Costeira italiana por perto, agora a maior sorte dos migrantes é se um navio mercante estiver na zona.
De acordo com a Organização Internacional para as Migrações, só desde Janeiro deste ano mais de 36 mil migrantes, vindos de África e do Médio Oriente, chegaram às costas de Itália, Malta e Grécia. Mais de 1.700 morreram na travessia. No ano passado mais de 200 mil fizeram a mesma viagem e mais de 3.500 morreram a tentar. Os números fizeram disparar sinais de alarme pela Europa e têm obrigado as instituições a desdobrar-se em reuniões e a produzir resoluções.
Não é a primeira vez que o padre Mussie Zerai vê tamanha agitação e sabe que, se a pressão pública baixar, nada impede que os alarmes se calem de novo. Até porque há vários obstáculos no caminho das declarações de intenções. A começar pela que se refere à criação de um sistema de quotas para distribuir os refugiados pelos vários estados-membros, que promete enfrentar muitas resistências pelo caminho.
“Se os parlamentares que são sensíveis a este tema não conseguirem manter a atenção centrada por parte da União Europeia, da Comissão Europeia e também da Imprensa; se não mantiver este assunto sempre na ordem do dia, o risco de este assunto cair no esquecimento é enorme. Tal como se esqueceram os 400 mortos de Lampedusa de 2013. Por este andar, os números de mortos têm de crescer sempre mais para conseguirem agitar as consciências. Isto é uma pura barbárie”.