“Há um jeito na voz, uma elegância”. É assim que Plácido Domingo descreve a canção portuguesa que descobriu há anos na voz de Amália Rodrigues, com quem privou e chegou a cantar. Dono de uma voz incontornável, o “Rei da Ópera” diz nunca ter gravado um disco de fado por “respeito” ao género musical, que considera “muito difícil de cantar”. "O fado cantado da maneira que os portugueses o sentem é fantástico", considera.
O fado é uma das ligações de Plácido Domingo a Portugal (Ronaldo é outra), como conta o cantor, em entrevista à Renascença, no Gran Teatre del Liceu, em Barcelona, onde deu quatro concertos. No dia 22 de Maio é a vez de Portugal, num concerto que celebra os 80 anos da Renascença, na Meo Arena.
O barítono espanhol, que fez uma carreira de meio século como tenor, conta à Renascença que é no teatro que se sente em casa e que o segredo para ser jovem aos 76 anos é a “paixão” que sente pelo que faz. Mas tem outra explicação: vive tanto as idades das personagens que interpreta que a sua vida “vai correndo um pouco mais devagar”.
Há alguns anos que não o vemos em Portugal.
Sim. É com grande alegria que volto a Portugal, a Lisboa, cidade que adoro e com um público extraordinário também. A verdade é que temos duas nações extraordinárias que formam a nossa Península Ibérica, Portugal e Espanha. Tenho uma grande alegria e uma grande satisfação por voltar.
O que é que o público português poderá ver e ouvir?
Nestes concertos que faço hoje em dia, obviamente que sou um cantor de ópera e a primeira parte é quase toda em ópera. Na segunda parte já canto zarzuela, um género musical espanhol, também canto opereta, musicais e talvez haja algum fado como presente.
Estamos numa casa de ópera. É em espaços como este que se sente em casa?
Sim, o teatro é o recinto onde passei mais horas da minha vida. Em qualquer teatro do mundo, quando chego sinto-me como se estivesse em casa. Sinto que vivi aqui mais tempo do que em qualquer outro lugar. Viajo muito, não posso dizer que tenha estado em minha casa mais tempo do que no teatro.
Começou como barítono, depois passou a tenor e depois a barítono outra vez.
Sim. Comecei como barítono no início, porque tinha voz quase de tenor, mas o barítono na zarzuela espanhola é mais alto, mais agudo do que na ópera. Depois, dei-me conta que tinha que trabalhar arduamente, mas que podia chegar à tessitura de tenor.
Fiz uma carreira de meio século como tenor, cantando a maioria das óperas, e, a partir de 2009, comecei a cantar partes de barítono, combinando-as com partes de tenor. Mas há quatro anos que faço um reportório completo de barítono.
Podemos dizer que um cantor de ópera é um atleta de alta competição? O treino é muito intenso.
Sim, é verdade. Levamos uma vida como os desportistas, temos que cuidar muito da voz e do físico. A ópera é muito difícil. Quando estás a preparar uma obra, são entre seis e oito horas por dia. Se é um concerto que já foi feito, podem ser duas semanas de ensaio. Mas num novo espectáculo ensaia-se três ou quatro semanas. É um trabalho muito intenso.
Em dez dias podes fazer três espectáculos e os três vão ter algo especial, diferente. Podes ir daqui a ali, mas depende como vais. Cada dia é diferente, é muito humano. As personagens que representamos têm uma vida própria que nós lhes devemos dar. São personagens de todos os séculos, de todas as épocas, de todos os estilos. Pode ser um poeta, em "La Bohéme", um pintor, em "Tosca", um soldado, em "Carmen", pode ser um imperador, um rei, um vagabundo.
Às vezes, dizem-me: "Plácido, estás muito bem para a tua idade". Eu respondo: "Sim, o que se passa é que eu vivo as idades das minhas personagens". Todos os dias, como mudo de personagens, vivo um bocadinho da sua vida. A minha, então, vai um bocadinho mais lenta. [risos]
Tem pouco tempo para si, porque ao mesmo tempo é maestro, director da Ópera de Los Angeles, continua a cantar… Qual é o seu segredo para ter tanta energia?
Penso que é a paixão que sinto pelo que faço. Tenho muita paixão e amo profundamente esta carreira.
E a sua família? Não lhe pede para sair de algumas coisas?
Não. Começando pela minha mulher, ela também foi cantora, agora é directora de cena. Neste momento, está em Los Angeles a ensaiar um espectáculo de contos de Hoffmann e eu vou dirigir esse espectáculo.
Estamos todos juntos, os meus filhos, os meus netos... todos eles são apaixonados pelo mundo da ópera. Logicamente não sou um avô normal, sou um avô atípico. Não posso levá-los à escola, não posso estar com eles todos os dias, não posso jantar à noite, mas quando estamos juntos aproveitamos o tempo ao máximo.
Neste momento todos eles estão encantados com o teatro, todos fazem teatro. Chegam da escola e fazem uma cena para mim. Cantam, tocam piano. Certamente serão cantores, se tiverem voz, músicos, actores... vão ter que trabalhar no mundo do espectáculo, porque são um espectáculo a tempo inteiro.
Há espaço em sua casa para guardar tantos troféus, tantos discos, tantos prémios?
Bem, a verdade é que tenho um estúdio a abarrotar de música, de prémios, de Grammys, de Emmys, uma quantidade de prémios que, felizmente, recebi. Condecorações do governo, de diferentes lugares. Fico encantado.
Nunca gravou um disco de fado.
Não, porque tenho muito respeito pelo fado. É um género de que gosto muito, mas é muito difícil de cantar. É muito difícil de cantar e é mais difícil para o homem do que para a mulher.
Claro que a Amália Rodrigues é fenomenal, ouvi-a muito, já cantámos em algumas ocasiões e a verdade é que era uma grande, grande artista. O fado cantado da maneira como os portugueses o sentem é fantástico. E, apesar de me ter animado a cantar quase todos os géneros, tenho muito respeito pelo fado. Gostava de poder fazê-lo bem e poder gravar um disco, mas não sei. Há um jeito na voz, uma elegância... A verdade é que é um género muito especial.
Em 1993 fundou a Operália. Muitos cantores líricos começaram grandes carreiras neste concurso.
Sim, a verdade é que em todos os teatros do mundo, a cada dia, há algum cantor da Operália. Às vezes, numa semana, no Metropolitan de Nova Iorque, em Viena, no Teatro Alla Scala, em Milão, vemos uma programação que pode ter três ou quatro cantores da Operália.
É uma espécie de "Got Talent" da ópera?
Digamos que é como se fossem umas olimpíadas da voz. Apresentam-se vozes de diferentes partes do mundo, em diferentes cidades onde apresentamos a Operália. Este ano o concurso faz 25 anos. Dá-me uma grande satisfação.
Sei que é um pouco mexicano e vive nos Estados Unidos. Como sente a situação actual?
Bem, eu espero que ela seja repensada. Entendo que não se pode aceitar toda a gente que queira entrar, isso é impossível. Sobretudo pode haver também pessoas que não tenham feito bem ao país. Que tenha havido delinquência, droga e tudo mais.
Creio que, se se puder remediar isso, deve-se remediar. Mas há que estudar a situação porque é muito importante o trabalho que os mexicanos realizam nos Estados Unidos. É enorme. Se um dia, em todos os Estados Unidos, os mexicanos não trabalhassem, seria um grande problema. Os mexicanos e não só (da América Central até à América do Sul) fazem os trabalhos que os americanos não fazem. Não só na maioria dos restaurantes, onde há imensos cozinheiros mexicanos, mas agora fazem também trabalhos tão importantes como em hospitais, onde há imensos enfermeiros, médicos, especialistas mexicanos.
E uma das profissões mais entranhadas é a das amas. As amas que se encarregam das crianças, dos bebés das famílias americanas. Não é fácil encontrar o carinho e a dedicação que as amas mexicanas têm para cuidar das crianças. Isto é muito importante. É normal que o México proteste, logicamente. A questão é que há uma grande parte da população americana que não pode viver sem ter a ajuda dos mexicanos. É uma situação difícil. Penso que Trump vai ter que aceitar.
Sei que é um grande fã do Real Madrid. O que pensa de Ronaldo?
Ah... é extraordinário. Para mim é o melhor jogador. Sei que há muitas comparações entre ele e o Messi (e penso que os dois têm um mérito extraordinário), mas o Ronaldo até agora tem feito o que ninguém conseguiu, tem mais golos que jogos com o Real Madrid. Por exemplo, um dos grandes jogadores de sempre, Puskás, o jogador húngaro que jogou no Real Madrid, é o que mais percentagem teve. Tinha uma média de 80% de golos por jogos. Mas tinha mais jogos que golos. O Cristiano tem mais golos do que jogos.
Eu admiro-o imenso. Além disso, conheço-o – pouco, gostaria de o conhecer melhor. Vou bastante aos jogos quando posso e cantei o hino do Real Madrid para a 11.ª taça da Liga dos Campeões. Para mim, ele é extraordinário. Respeitando muito Messi, de quem também gosto, como gosto do Barcelona e fico contente quando ganha os seus jogos. Mas que não ganhe ao Real Madrid, lógico [risos].
Tenho visto que o Casillas tem estado muito bem no FC Porto, não é? Além disso, creio que estão a um ponto do Benfica. Eu era muito amigo do Eusébio. Era um grande, grande amigo.
Gostava que convidasse os portugueses a assistir ao seu concerto, na MEO Arena.
No dia 22 de Maio tenho a alegria de voltar à sala onde já cantei. A Renascença cumpre 80 anos, felicidades! Será com grande alegria que encontrarei este público magnífico.