O Afeganistão viveu esta terça-feira o primeiro dia em vinte anos sem nenhum soldado norte-americano no seu território, sendo que os últimos aviões dos Estados Unidos já haviam deixado Cabul na véspera.
Desta forma, os Estados Unidos colocam um ponto final na sua presença no Afeganistão dentro do prazo limite fixado por Joe Biden, este 31 de agosto, para completar a saída total do país.
Em paralelo, o Conselho de Segurança da ONU aprovou uma resolução centrada na saída segura dos afegãos que o pretendam e a rejeição do terrorismo – resolução com a abstenção da China e Rússia e criticada pela sua débil condenação das violações dos direitos humanos.
Já esta terça-feira um dos líderes políticos do movimento talibã, Zabihulah Muyahid, celebrou no aeroporto de Cabul o que disse ser "a vitória" na guerra e declarou "a independência total" do Afeganistão, ao mesmo que defendia manter "relações diplomáticas com os Estados Unidos e com o resto do mundo".
O risco do Afeganistão voltar a ser um refúgio para organizações terroristas volta a estar na lista de preocupações. O movimento talibã sempre teve ligações muito próximas com a Al Qaeda, mas é a filial local do “Estado Islâmico” de Khorasan (ISIS-K), composta por dirigentes que romperam com os talibãs, acusando-os de dialogar com os EUA e de não serem suficientemente islâmicos, que mais preocupa atualmente. O ISIS-K refugia-se na comunidade salafita – que faz uma leitura radical do Islão – na província de Nangarhar, sul do país.
A marcar os últimos dias está justamente o atentado do aeroporto da semana passada – da autoria dos terroristas do ISIS-K – e uma das perguntas para os próximos tempos redobra de atualidade: o atentado do aeroporto de Kabul pode ser um “game changer” e Biden vai ter de trabalhar com os talibãs?
Na análise de Scott Lucas, professor emérito da Universidade de Birmingham, na eventual "nova guerra ao terror" declarada por Joe Biden, Washington vai precisar de colaborar com o regime taliban.
Nesta entrevista à Renascença, o fundador do site EA World View sugere que a Joe Biden convém – para efeitos de política doméstica – declarar este grupo terrorista ISIS-K – como novo inimigo global.
Scott Lucas, cidadão norte-americano, que também foi professor da Universidade de Teerão e em Beirute, olha para o futuro – avaliando o poder negocial talibã e o papel da China e Rússia no futuro do Afeganistão.
Poderá haver colaboração entre os Estados Unidos e o regime talibã para neutralizar o ISIS-K, inimigo do novo poder em Cabul?
Declarar simplesmente uma nova "guerra ao terrorismo" não resolve os problemas que se avizinham, porque, com a retirada do Afeganistão, os Estados Unidos deixam de ter ativos humanos e estruturas no território.
Os Estados Unidos retiraram. O Ocidente deixou de ter pessoas no terreno. Os Estados Unidos deixaram de ter os grupos e o conjunto de colaboradores com que tinham trabalhado até aqui.
Este pano de fundo aponta para um cenário de nesta nova fase, longe de contrariar o novo poder taliban, poder acabar a ter de interagir e colaborar com o novo regime.
Porque se é preciso informação e dados sobre o ISIS-K, o movimento Talibã é o que melhor conhece este inimigo.
Nesta luta contra o ISIS-K, os Estados Unidos precisam de se socorrer do novo regime de Cabul, porque domina todo o território afegão, com exceção do Vale de Panshir, onde há a resistência aos talibã por parte dos homens de Ahmad Massoud, filho do lendário “Leão de Panshir”.
Quão significativa é esta ameaça terrorista do ISIS-K?
Penso que esta nova fase da "guerra ao terrorismo", travada agora, para lá da opção de colocar tropas no terreno, incorpora um elemento quase de distração, de dispersão.
É que não ocorreu nenhum ataque terrorista de células do Estado Islâmico na Europa ou Estados Unidos, desde 2017.
Se houve terrorismo foi no Afeganistão e países circundantes e de facto o ISIS-K, fundado em 2015, é muito pequeno e sempre foi um grupo regional, rival do movimento talibã.
Portanto, neste quadro, na perspetiva dos Estados Unidos, da União Europeia ou até do Reino Unido, não se gosta obviamente do que está a acontecer no Afeganistão, ou na região, mas tenho de ser honesto, por razões de política interna nos Estados Unidos – depois das dificuldades de Joe Biden na retirada – é mais fácil declarar o ISIS-K um inimigo global e poder recuperar algum espaço político não só depois do adeus a Cabul como, sobretudo, depois da perda trágica de 13 soldados norte-americanos, a semana passada.
Com a necessidade de colocar a economia a funcionar pode haver uma barganha talibã numa eventual negociação com Washington?
Nos últimos anos houve um diálogo fluido entre os Estados Unidos e o movimento talibã – desde as conversações de Doha, no tempo da administração Trump até ao acordo recente de não atacar embaixadas, permitir a retirada de Cabul sem incidentes militares e esse diálogo até incluiu o n.1 da CIA a encontrar-se em Cabul, a semana passada, com o líder político talibã, Abdul Baradar.
Mas nesta nova fase, se os Estados Unidos precisam do regime talibã para a segurança face ao ISIS-K qual é então o poder negocial talibã? É dizer aos americanos “se quiserem ajuda, nós ajudamos, mas o que nos dão em troca”?
“É que têm de começar por descongelar as contas do governo afegão, mais de 9,5 mil milhões de dólares, permitir empréstimos do FMI, renovar ajuda externa e, depois, então nós iremos ajudar”.
E se a ameaça prosseguir durante meses ou anos – o regime talibã pode ainda dizer: “mas vocês terão de nos reconhecer diplomaticamente pela primeira vez”.
E claro, há novos “players” no Afeganistão, a China, já muito ligada ao Paquistão na sua recente iniciativa económica “a nova rota da seda” e, claro, Islamabad é uma capital ligada ao movimento talibã.
A Rússia vai também querer regressar ao Afeganistão, depois de ter sido expulsa nos anos 90.
Portanto, penso que a melhor maneira de pensar o futuro do Afeganistão é ver o cenário como sendo um caleidoscópio com diferentes peças e padrões.
O simplista padrão do passado – Estados Unidos versus movimento talibã – deixou de existir.
O regime talibã passou a ser uma grande peça do caleidoscópio. Os Estados Unidos também são uma peça importante, mas já não estão no centro do caleidoscópio.
Importa estar atento ao que acontece na região com os Estados Unidos a tentarem de novo ter algum tipo de influência nesse futuro, depois de – e tenho de ser honesto – nos últimos meses Washington ter desistido de ser influente.