DGS tem travado alterações nos rastreios e nos testes. Governo pressiona
10-02-2021 - 00:25
 • Paula Caeiro Varela , Eunice Lourenço , André Rodrigues

A Renascença apurou que a DGS vai apresentar uma proposta de revisão da estratégia de testagem. O objetivo é fomentar as ações de rastreio, bem como os testes a realizar a contactos de casos positivos.

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A tensão entre Governo, Presidência e Direção Geral da Saúde tem sido mais ou menos constante ao longo desta pandemia e agora conhece mais episódios, que já passam mesmo por pressões públicas por parte do primeiro-ministro e da ministra da Saúde. Estão em causa os rastreios e os testes que o Governo quer agilizar, mas que tem encontrado resistência por parte da DGS e dos médicos de saúde pública.

A questão dos rastreios e dos inquéritos epidemiológicos levou o primeiro-ministro a deixar mais um recado para dentro da DGS na reunião que reuniu políticos e especialistas esta terça-feira. Um recado que até foi feito notar pelo Presidente da República a alguns dos partidos que ouviu durante a tarde.

O problema está, sobretudo, a participação de outros profissionais na realização dos inquéritos epidemiológicos necessários para o rastreio de casos de Covid e para a quebra de cadeias de transmissão. E também a simplificação do próprio inquérito.

A resistência vai ao ponto de não ter sido, ainda, possível replicar no resto do país um projeto do Agrupamento de Centros de Saúde (ACeS) Porto Ocidental, que permitiu diminuir para metade o tempo de resposta ao inquérito epidemiológico e envolver militares, dentistas e técnicos operacionais dos municípios num esforço considerado fundamental para a resposta que o Norte deu na terceira vaga da pandemia.

O ACeS Porto Ocidental deu formação a militares e outros profissionais, integrou médicos dentistas e formou equipas multidisciplinares que permitiram aumentar significativamente a capacidade de seguimento de casos e de identificação de cadeias de contágio.

Além disso, simplificou o inquérito por duas vias: retirou perguntas que faziam sentido em março ou abril, mas agora já não fazem sentido, e criou um formulário digital simples de preencher.

Essa simplificação fez com que seja possível preencher um inquérito em 18 a 20 minutos em vez dos 40 a 50 que o modo tradicional exige.

As alterações foram aceites pela Administração Regional de Saúde (ARS) que a replicou em oito ACeS, de Viana do Castelo a Aveiro.

Desde novembro que esses centros de saúde foram funcionando assim e o sucesso permitiu nos últimos tempos dispensar quatro das equipas de militares envolvidos no rastreio.

Mas essas quatro equipas continuam disponíveis para voltar ao trabalho em caso de necessidade.

O projeto foi até apresentado ao secretário de Estado da Saúde, Lacerda Sales, que estimulou a que fosse seguido no resto do país.

Mas foi encontrando sempre resistência entre os médicos de saúde pública que consideram que o inquérito epidemiológico é “um ato nobre da saúde publica” que não pode deixar de ser feito por esses profissionais.

Abrir por força de lei

“A saúde pública colocou sempre muitos entraves”, conforme foi relatado à Renascença. E onde a resistência foi sentida, sobretudo, na região de Lisboa e Vale do Tejo, onde já no verão se tinha feito sentir a resistência a participação de mais gente no seguimento de casos. Recorde-se que no verão, esta região de saúde continuou a ter várias freguesias com indicies elevados de transmissão.

Nessa altura, com a coordenação de Rui Portugal (agora subdiretor-geral de Saúde) e a pressão dos secretários de Estado da Saúde, Lacerda Sales, e dos Assuntos Parlamentares, Duarte Cordeiro, e dos autarcas foi possível constituir equipas multidisciplinares que faziam o acompanhamento e contato de infetados e da sua situação social.

Contudo, nos últimos meses, mesmo com o agravar da situação não foi possível dar resposta ao aumento de casos e consequente aumento da necessidade de acompanhamento e inquérito por continuar a haver resistência às mudanças e vigorar um funcionamento por “quintais e quintinhas”.

O Governo tentou fazê-lo por força da lei. Já tinha sido por decreto que, no início da pandemia, tinha forçado a DGS a fornecer informação.

Os últimos decretos com as medidas para o estado de emergência já previam a requisição de militares e de profissionais de vários setores para ajudar nos inquéritos, que chegaram a um atraso na ordem da dezena de milhar. A “resistência” à mudança, ao que foi dito à Renascença, também se manifestou na resistência ao mecanismo de simplificação de preenchimento e tratamento do inquérito.

Perante os entraves, já a 19 de janeiro, no Parlamento, o primeiro-ministro tinha dito que era preciso ultrapassar preconceitos e bloqueios na questão dos rastreadores para aumentar os inquéritos e quebrar cadeias de transmissão.

O Governo e mesmo o Presidente já tinha tentando ultrapassar os bloqueios pela força da lei, decretando que era possível a requisição de trabalhadores de outras áreas para esta tarefa.

A possibilidade está, aliás, prevista nos últimos decretos presidenciais que enquadram as medidas que, depois, são decididas pelo Governo. “Podem ser mobilizados, pelas autoridades públicas competentes e no respeito dos seus restantes direitos, trabalhadores de entidades públicas, privadas, do setor social ou cooperativo, independentemente do respetivo tipo de vínculo ou conteúdo funcional e mesmo não sendo profissionais de saúde, designadamente servidores públicos em isolamento profilático ou abrangidos pelo regime excecional de proteção de imunodeprimidos e doentes crónicos, para apoiar as autoridades e serviços de saúde, especificamente na realização de inquéritos epidemiológicos, no rastreio de contactos e no seguimento de pessoas em vigilância ativa”, dizem os sucessivos decretos presidenciais.

Um dos problemas colocados pelos médicos era o facto de essas pessoas não deverem ter acesso a dados de saúde dos cidadãos. Mas também isso o Presidente tentou resolver, abrindo uma exceção no direito à proteção de dados pessoais para permitir o tratamento de dados pessoais e de dados relativos à saúde por quem esteja envolvido nos inquéritos e nos rastreios, mesmo não sendo profissional de saúde.

Nem assim se generalizou no país o recurso a pessoas disponíveis para ajudar no combate à pandemia através do rastreio. No Alentejo e no Algarve foram mobilizados estudantes de enfermagem e medicina. Mas o projeto do Porto continua por expandir a todo o país e as novas formas de inquérito continuam por implementar de forma generalizada, o que podia ter sido imposto por uma norma da DGS.

Rastrear e testar, rastrear e testar

Os rastreios sempre foram salientados como determinantes para quebrar cadeias de transmissão. E esta terça-feira voltaram a ser referidos pelos especialistas na chamada reunião do infarmed. Por isso, na sua intervenção (já na parte fechada da reunião), António Costa insistiu no reforço do rastreio, no que foi lido como um recado para dentro da DGS.

E insistiu nos recados nas publicações que fez no Twitter depois da reunião: "É necessário continuar a investir na testagem massiva e na capacidade de rastreamento", escreveu António Costa.

Ora, a testagem é outro assunto em que, nos dois últimos dias, o Governo tem insistido publicamente com a DGS. Primeiro, na segunda-feira, a ministra da Saúde anunciou que já tinha pedido àquela estrutura que revisse e alterasse os critérios para realização de testes, para que deixem de ser prescritos só a quem tem sintomas ou teve algum contacto de alto risco com um infetado. “Neste momento, os testes são sobretudo preconizados para os contactos de alto risco e aquilo que pedimos que fosse avaliado tecnicamente era a possibilidade de o teste ser mais abrangente, independentemente do risco do contacto", disse a ministra, insistindo que a diminuição do número de contágios não deve fazer descer o número de testes.

“Não podemos deixar cair o número de testes, mesmo que a pandemia pareça, em termos de procura, exigir menos testes, temos de intensificar o esforço do lado da oferta”, insistiu Marta Temido, que disse mesmo que ao longo do dia de segunda-feira as mudanças podiam ser comunicadas.

Mas não foram na segunda, nem na terça. E na terça, na reunião do Infarmed, os especialistas insistiram na capacidade de testagem, no fim da reunião a ministra voltou a insistir. E o primeiro-ministro também.

Contudo, também na testagem há entraves. Ao que foi contado à Renascença, já foi discutido durante horas entre dirigentes de saúde pública se os testes devem ou não ser usados como meio de rastreio. “É obvio que para reabrir a vida económica e social, precisamos de mecanismos de rastreio mais fortes”, diz à Renascença uma fonte governamental, manifestando incompreensão pela forma lenta como as decisões são tomadas e implementadas.

“A DGS apresentará ainda esta semana ao Ministério da Saúde uma proposta de revisão da estratégia de testagem, com vista a fomentar as ações de rastreio, bem como os testes a realizar a contactos de casos positivos de Covid-19” foi a resposta enviada pela DGS à pergunta da Renascença sobre o anúncio do pedido feito na segunda-feira pela ministra.

As perguntas sobre rastreadores e inquérito epidemiológico ainda não tiveram resposta.