Na hora em que comecei a escrever este artigo, recebi um alerta de “Fogo no Palácio da Justiça”.
Confesso, e mais tarde perceberão porquê, que fiquei um pouco arrepiada com esta coincidência. Felizmente, à hora que termino, tudo já está resolvido.
Infelizmente, o mesmo não podemos dizer sobre a eutanásia; de facto os incendiários do costume continuam à solta e os limites para atear o fogo ideológico parecem não conhecerem limites: 16 mortos por Covid-19 hoje, 16 mortos por Covid-19 ontem, milhares de mortos e sequelas graves e irreversíveis causadas nos doentes não Covid na sequência da pandemia.
Sim, senhores deputados, o que esperam que aconteça a estes doentes quando no ano de 2020 tivemos “menos 46% de consultas médicas presenciais nos centros de saúde, uma quebra de 40% da procura das urgências hospitalares, menos 25% de cirurgias realizadas e diminuição substancial (entre 21 e 7%) nos rastreios oncológicos”? Que morram à espera de um plano de ação ambicioso para recuperarmos tudo o que ainda for possível recuperar? Ou que peçam a morte medicamente assistida por terem sido vetados ao abandono pelos nossos dirigentes políticos? Os senhores deputados só oferecem uma opção.
No entanto, existem outros assuntos, ainda que dentro desta área, que me causaram perplexidade e desconforto. Por um lado, e sendo que a grande questão do acórdão do Tribunal Constitucional é a falta de determinabilidade da lei relativamente aos critérios médicos a usar, a total ausência de consulta e entidades representativas da classe profissional que, na eventualidade da lei ser aprovada e o Código Deontológico ser alterado, terá que objetivar os critérios definidos pelos Senhores Deputados, parece-me, no mínimo, intelectualmente pouco honesta.
Por outro lado, e não sendo a minha área de especialização, a forma como os juízes sugeridos para o Tribunal Constitucional foram questionados sobre a sua posição relativamente à lei da eutanásia nas audições parlamentares, representa, na minha opinião, um conflito de interesses irreversível e insanável.
Não vou falar da separação de poderes e resgatar Montesquieu, Locke mas, essa audição foi sem dúvida uma ilustração perfeita das palavras proferidas, num outro contexto, pelo senhor bastonário da Ordem dos Advogados, “O Estado de Direito atravessa presentemente em Portugal uma crise profunda... Grande parte dessa situação ocorre em virtude de a independência do poder judicial não estar a ser adequadamente assegurada, com a existência de portas giratórias entre o Governo e os Tribunais.”
Num livro de Carlos Gómez Ligüerre “Os Juízes na Europa”, publicado pela Fundação Francisco Manuel dos Santos é citada a recomendação (R) 94 12 do Comité de Ministros do Conselho da Europa que afirma que “todas as decisões relativas à carreira profissional dos juízes deveriam apoiar-se em critérios objetivos. A seleção e a carreira dos juízes deveriam basear-se no mérito, atendendo às qualificações, integridade, competência e eficácia”.
Segundo o mesmo autor, já o relatório sobre a independência do sistema judicial elaborado pela Iniciativa Europeia para a Democracia e os Direitos do Homem (Comissão de Veneza) do Conselho da Europa), conclui que: “o princípio segundo o qual todas as decisões relativas à nomeação e à carreira profissional dos juízes deveriam basear-se no mérito, avaliado através de critérios objetivos na lei, é irrefutável.”
Assim, esta porta giratória entre o Parlamento e os juízes do Tribunal Constitucional, que tem como principal função velar pelos direitos constitucionais de todos os cidadãos portugueses, coloca, na minha opinião, os dois juízes que emitiram a sua opinião sobre o tema – já que um deles, e muito bem, considerou que a informação não era um critério relevante para a sua nomeação – numa situação de conflito de interesse irreparável.
Os membros do Tribunal Constitucional não podem ser representantes dos órgãos que os nomeiam, muito menos aceitar encomendas sobre um assunto que está no limiar da constitucionalidade.
Em 1789, o povo francês levou a cabo a abolição da monarquia absoluta e o estabelecimento da primeira República Francesa. O artigo 16.º da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão consagrava que “a sociedade em que não esteja assegurada a garantia dos direitos, nem estabelecida a separação dos poderes, não tem Constituição.”
Termino resgatando uma afirmação de Saramago: “O grande problema do nosso sistema democrático é que permite fazer coisas nada democráticas democraticamente”.