Poucas horas depois de despedir-se do Papa Francisco no aeroporto de Figo Maduro, o presidente da Fundação Jornada Mundial da Juventude disse, em entrevista à Renascença, que vai "encaixilhar" o mapa de como se faz um evento destes e enviá-lo para Seul, a cidade que em 2027 vai receber a próxima JMJ.
Perante as intervenções do Papa em Lisboa, em que Francisco pediu uma igreja aberta a todos, D. Américo Aguiar assume que no clero se faz "sempre menos do que aquilo que devemos fazer", incluindo "ouvir mais".
Sobre os abusos sexuais na Igreja, o bispo auxiliar de Lisboa lamenta que a tolerância zero não esteja a funcionar em toda a sociedade. "Continua a acontecer e isso não pode acontecer", defende D. Américo Aguiar.
Terminada a Jornada Mundial da Juventude conclui-se que, afinal, correu bem. Serve de bofetada de luva branca a alguém?
Não, serve para manifestar aos portugueses e a Portugal muita gratidão aos profissionais, a todos os profissionais, porque nós tivemos durante esta semana todos os portugueses nas mais diversas áreas, da proteção civil, da segurança, da emergência, da saúde, da educação, dos cidadãos anónimos, das dioceses, das paróquias, sei lá, nem sei elencar mais, tivemos todos a fazer tudo, a dar o seu melhor. Por isso uma gratidão imensa, porque o que aconteceu, aconteceu graças mais uma vez, a generosidade, a competência, a entrega e a dedicação de todos os portugueses quando se sentem tocados por alguma coisa que lhes diz. Não fui capaz, durante muito tempo, de lhes explicar o que era, que tivessem noção da dimensão do que era.
Agora já têm?
Agora já têm. Acho que, em certo momento, Deus fez a sua parte e todos entenderam que estávamos a falar de alguma coisa única e irrepetível. E damos graças a Deus porque aconteceu com muita gratidão a todos.
Em relação a contas, tem evitado dizer, para já, se deu lucro ou se dá prejuízo. Se puder avançar, pelo menos, quando é que conta ter essas contas feitas?
Temos uma promessa com os portugueses e com Portugal de total transparência. Nós publicámos em 2019, 2020, 2021, 2022, se não estou enganado (tenho dúvidas se em 2019 já existíamos ou não), mas publicámos as contas auditadas pela Deloitte e estamos a trabalhar para que até ao fim do ano possamos também encerrar as contas. Aliás, as contas têm que ser encerradas a 31 de Dezembro, porque a Fundação tem que cumprir as regras que existem para tal. Dou um exemplo, aquilo que são as contas da alimentação, vamos receber de todos aqueles que serviram refeições aos jovens, vamos receber as faturas todas e vamos ter que as pagar.
Anda preocupado com isso? Pode ser mau?
Não, absolutamente. Nós fizemos um trabalho de muita preparação, que envolveu muita generosidade de todos. E eu estou convencido de que as contas finais também serão exemplares naquilo que será o resultado.
A mensagem de Francisco, deixada nesta Jornada Mundial da Juventude, é muito dura. Deu aqui muitos recados até à própria Igreja, para abrir a porta a todos. Enfiou a carapuça?
Quanto a enfiar barretes, a conversa é ligeiramente diferente, mas eu não entendo que seja duro. Eu entendo que seja Evangelho. O que o Papa nos falou foi do Evangelho e há dois mil anos que andamos a falar da mesma coisa. Só que às vezes as interpretações e a aplicação do Evangelho, na realidade, têm 'nuances' e aquilo que é obrigação do sucessor de Pedro, de vez em quando, é chamar à atenção. Aliás, usei a imagem de um barco, aqueles barcos que a gente vê na televisão dos romanos, tinha muitos homens e mulheres no remo, e é preciso que quem está nesse barco vá dando instruções para que todos remem ao mesmo tempo, para o mesmo lado. De vez em quando é preciso fazer isso. É preciso um grito de ordem para que todos possamos continuar a viagem uns com os outros, nas diferenças de cada um, na sensibilidade de cada um, nas oportunidades de todos e da parte de cada um. O Papa foi claro e eu até faço um desafio. Tentemos pegar nos discursos que o Papa fez e descobrir qual é a palavra que o Papa mais usou. Eu arriscaria que foi "todos". Vamos ver se foi ou não.
Incluindo os da Igreja?
Todos e para todos. Portanto, o Papa não vem dar recados a terceiros.
A Igreja tem, por isso, de transformar-se?
Há dois 2mil anos que a Igreja se reforma. Temos, às vezes, a sensação, que também é normal, de a velocidade das coisas não ser aquela que é o palpitar do nosso coração. E ainda bem que é assim, porque a Igreja não vai em modas. A Igreja, a comunidade, vai fazendo o seu caminho naquilo que é o anúncio do Evangelho, a proposta do Evangelho. A Igreja nunca se pode esquecer que sempre que impõe o Evangelho as coisas correm mal e sempre que propõe as coisas correm bem. E nós estamos num tempo em que a proposta do Evangelho, é só ver, é acolhida por 1.500.000 jovens do mundo inteiro.
Sente que a mensagem que Francisco deixou aqui é a de que a Igreja acolhe menos do que devia e que estamos perante uma elite de príncipes da Igreja que é preciso desinstalar?
Nós fazemos sempre menos do que aquilo que devemos fazer. Pelo menos eu tenho consciência disso. Acho que todos os dias devia fazer mais. Devia fazer melhor. Devia ouvir mais. Devia de ser mais sinodal. Posso ser muito diferente para melhor todos os dias. E ouso dizer que todos também podem e devem fazer o mesmo. O Papa fala-nos de uma Igreja em saída há dez anos. O Papa fala-nos de uma Igreja hospital de campanha há dez anos e o Papa fala-nos de uma Igreja para todos há dez anos. Dez anos é pouquinho comparado com dois mil, mas é a caminho que temos que fazer.
Houve espaço para o Papa falar também dos abusos sexuais na Igreja. Também sobre este tema há um convite para a Igreja agir de outra maneira...
Nós temos que continuar o caminho. A Igreja portuguesa, no tempo que nós conhecemos, estamos a falar de meados de 2019, criou as comissões diocesanas. Depois foi criada a comissão independente com o Dr. Pedro Strecht. Foi feito um relatório e foi apresentado um relatório. Foi acolhido o relatório, as comissões diocesanas foram reformuladas, foi criado o Grupo Vita, que está no terreno, é um caminho que estamos a fazer. Nós temos é que todos, como sociedade, continuar esse caminho em duas frentes. Uma naquilo que foi o passado e resolvê-lo e outra naquilo que é o futuro e preveni-lo. E isto não pode deixar de estar no foco, na prioridade daquilo que são as decisões da Igreja no seu dia a dia. Porque a dor não prescreve, as feridas não cicatrizam e as vítimas estão no lugar devido de prioridade.
Os abusos, a continuarem, é uma tragédia para a Igreja?
É uma tragédia para as pessoas que os vivem, para a Igreja e para a sociedade. E eu peço desculpa de ter de referir, mas há pouco tempo a Polícia Judiciária no nosso país revelava os últimos números de um semestre em que tínhamos centenas de casos em Portugal, recentes. Isto significa que a tolerância zero não está a acontecer naquilo que é o coração transversal da nossa sociedade. Nem da nossa, nem da europeia, nem no mundo inteiro. E alerto já que não estou a sacudir a água do capote, nem estou a virar o foco da responsabilidade. Estou a dizer que, infelizmente, hoje continua a acontecer e isso não pode acontecer.
Organizar uma Jornada Mundial da Juventude em Seul, a próxima a cidade da JMJ, é entrar num terreno difícil para a Igreja Católica. O catolicismo na Coreia do Sul é uma minoria. É entrar noutra dimensão depois do que vivemos aqui?
O Papa usou uma imagem bonita ao dizer que, do extremo da Europa, íamos para o coração da Ásia. Eu acho quando ouvimos falar dos números de crescimento das comunidades, temos sempre a América Latina e a Ásia a crescer. Será uma experiência totalmente diferente. Fui a Sidney motivado por um sentimento muito humano que foi: "irei a Sidney porque senão nunca irei a Sidney". Estou convencido que Seul será particularmente apelativo para os jovens, como curiosidade e pode ser que seja também uma motivação de conhecer uma igreja diferente e de ir em alegria e testemunho da fé a uma Igreja que não é propriamente maioritária, nem coisa que se pareça, mas é uma Igreja viva. O Papa já lá esteve, muito recentemente, num encontro da juventude a que ele presidiu.
Já tem experiência. Agora pode ir a Seul dizer como é que se faz?
Pode, não sei se eles me entendem. Estou muito agradecido a todos os jovens voluntários que, ao longo destes quatro anos, prepararam a Jornada Mundial da Juventude. E eu fiz pouco ou quase nenhum, eles é que fizeram o trabalho todo. Mas, como dizia Sophia de Mello Breyner, em relação aos navegadores portugueses, eles navegaram sem mapa, navegaram com o mapa que iam fazendo, mas não havia mapa. Nós agora temos mapa e vamos entregá-lo encaixilhado a Seul para que eles façam a melhor Jornada Mundial da Juventude de sempre.
E também pode preparar, por exemplo, o Jubileu da Juventude em Roma. Está disponível, já que vai ser, brevemente, nomeado como cardeal?
A geografia a mim não me incomoda. Eu sou escuteiro. Portanto, tenho a mala pronta, tenho o saco cama enrolado, tenho o cantil com água. Qualquer que seja a tarefa que a Igreja me proponha, eu digo que sim, independentemente do grau de dificuldade ou do grau de surpresa. "Sim", é aquilo que eu aprendi a dizer no dia 8 de julho de 2001, quando fui ordenado padre. As minhas vontades ficaram lá. Por isso, seja o que Deus quiser.
Era essa a minha última questão. Saber se vamos perdê-lo para Roma ou se vamos ficar consigo aqui em Lisboa?
Há bocado mandou-me para Seul, agora já quer que eu fique em Lisboa. Quando uma diocese vive uma situação de substituição do seu bispo, o que nós pedimos ao povo de Deus é que reze para que Deus envie um pastor. E é aquilo que Lisboa tem feito. Vamos ver o que é que o coração de Deus vai fazer eco. E qual é o pastor que Deus vai providenciar para Lisboa. Já disse várias vezes que se for eu, peço desculpa por ser eu, mas farei o melhor possível. Se não for eu, rezarei pelo novo pastor, porque bem precisa que rezemos por ele para que ele possa corresponder ao desafio que a Igreja lhe propõe.
Isso é uma grande abertura para ser "o" pastor de Lisboa...
É verdade, tenho consciência plena disso e por isso digo, tem que rezar muito, seja lá quem for ele.