Inês Nabais, missionária leiga do Santíssimo Redentor de Vila Nova de Gaia, alerta para a necessidade de na ajuda “termos de ser muito racionais”. Em entrevista à Renascença e à agência Ecclesia, relata situações de famílias que acolheram nas suas casas refugiados da Ucrânia e que agora telefonam a dizer: "onde é que eu posso ir buscar apoio?”
Inês Nabais entende que “o segredo” está no trabalho em rede, pois “só conseguimos ajudar se formos humildes, o suficiente, para perceber que não conseguimos fazer nada sozinhos”.
E o trabalho em rede, de acordo com a responsável, também potencia a denúncia e a descoberta de situações relacionadas com o tráfico de seres humanos, como aconteceu recentemente com um grupo de cidadãos senegaleses.
Inês Nabais revela que 41 dos mais 100 refugiados acolhidos no Seminário de Cristo Rei “já foram recolocados em habitação própria, com contratos de comodato e com a possibilidade de emprego”.
Quantas pessoas já foram acolhidas nas vossas instalações no Seminário de Cristo Rei, em Vila Nova de Gaia?
Quarenta e uma já foram recolocadas em habitações definitivas. Ainda temos connosco, como habitação temporária, cerca de 60: 22 são crianças e a maior parte mulheres.
Para quem está no terreno já há quase dois meses, quais são as principais dificuldades e as principais barreiras?
Eu diria que a principal barreira é mesmo a língua. De resto, acho que todos os esforços são feitos para que para que nos entendamos e tem corrido bem, dentro de todas as limitações que uma situação de improviso gera.
Têm recorrido a intérpretes?
Sim, nós temos uma comunidade ucraniana que já se reunia no espaço do Seminário Redentorista de Cristo Rei, de há 13 anos a esta parte, e eles são as pessoas que nos estão a ajudar no acolhimento.
Como é que está a ser a coordenação do trabalho, em particular a necessária articulação com as autoridades?
Isto nasceu por uma iniciativa muito espontânea, porque tínhamos uma comunidade ucraniana que já se reunia naquele espaço. Sentimos esta necessidade de acolhimento que agora está a ser outra vez uma necessidade para nós, redentoristas, porque somos os da Redenção, que significa resgate. No fundo, é isso que estamos a tentar, disponibilizando os meios que temos e todas as nossas estruturas orgânicas, tudo o que nós temos, pôr ao serviço dessa redenção.
Referia-me à articulação do trabalho que é necessário com as autoridades…
Quando eu digo que não me sinto coordenadora de nada, é porque eu peço muita ajuda. Não vamos aqui inventar a roda: antes do dia 24 [de fevereiro] estavam a entrar em Portugal refugiados de outras proveniências e existe gente que, diariamente, se entrega a esta causa, já há muito tempo.
A primeira parceria que começamos por fazer foi pedir ajuda ao Serviço Jesuíta aos Refugiados (JRS). Liguei de imediato ao Dr. André Costa Jorge e disse-lhe: “temos aqui esta estrutura, temos aqui uma comunidade, faz todo o sentido abrirmos as nossas portas”, como também abrimos e colaboramos com eles, na altura da Plataforma de Apoio aos Refugiados, e acolhemos famílias sírias.
Voltamos a recorrer a quem realmente sabe tecnicamente, em termos também de coordenação com as próprias autoridades, SEF, Alto Comissariado e por aí fora.
Para a integração dos refugiados, sabemos que é necessário responder a questões de emprego e de habitação. Essa é uma preocupação que já se sente na comunidade?
Quando falamos em 41 pessoas que já foram recolocadas, foi exatamente nesse sentido: foram para uma habitação própria, definitiva, com contratos de comodato, em alguns dos casos, assinados, para a proteção das próprias pessoas, com a possibilidade de emprego, aulas de português.
Em todo este processo, nas diferentes vertentes, tem sido feito esse acompanhamento. Mais uma vez volto a referir, com muita ajuda do JRS e com toda a restante rede que fomos criando, porque acho que o segredo está aqui, está na criação de rede. Nós sozinhos não conseguimos fazer nada.
Como funciona essa rede, quem envolve?
Tudo isto começou com uma iniciativa muito espontânea, porque vimos desesperados os nossos companheiros ucranianos que já cá estavam, a pensarem nas suas famílias. E a pergunta que o padre Rui Santiago, o superior provincial, fez a um dos responsáveis da comunidade foi: “como é que nós podemos ajudar?” E estavam alguns deles preocupados com os seus familiares, porque não tinham como os receber. Então aí foi a abertura de portas.
Gerou-se o primeiro movimento de angariação de bens para levar para as zonas fronteiriças, nomeadamente Polónia, para servir quem estava ali na linha da frente e os campos de refugiados que, entretanto, se foram criando junto à fronteira.
Assim que começamos a receber as primeiras pessoas, tentamos pedir ajuda, nomeadamente às câmaras municipais, porque não podíamos manter aquela agitação toda num salão, que não está minimamente preparado para ser um centro logístico. Foi aí que tivemos a visita da senhora vereadora Catarina Araújo, da Câmara Municipal do Porto, que se comoveu com o que estava a acontecer, tão rapidamente.
Foi a partir daí que surgiu a Frente Atlântica?
Exatamente, tivemos reuniões e nasceu o ‘Somos todos Ucrânia’, com as três câmaras municipais envolvidas [Porto, Vila Nova de Gaia e Matosinhos]. Esta criação de rede tem sido fundamental.
As câmaras municipais têm respondido a todos os nossos pedidos. E depois também ao nível da ARS Norte, ao nível de cuidados de saúde, tudo o que eu peço é imediatamente respondido, porque muitas pessoas chegam, fazem os testes Covid, vão depois fazer uma consulta para o chamado check-up geral. Temos feito esta gestão muito articulada com esta rede de pessoas, que é o mais importante.
Disse que cerca de 40 pessoas já estão integradas e com trabalho, uma parte delas. Arranjam emprego com alguma facilidade? Em que áreas?
Várias áreas. É evidente que, no caso dos nossos companheiros ucranianos, estão a ter a sorte de conseguirem quase sempre arranjar emprego na área em que já trabalhavam, por exemplo, o caso de um arquiteto que, neste momento, já está num gabinete de arquitetura. Também temos casos de engenheiros eletrotécnico e engenheiros mecânicos que vão ser repositores em algumas cadeias de distribuição alimentar.
Temos um grupo que nos está a apoiar - mais uma vez, são as pessoas que estão à frente, esta empatia que as pessoas que estão a chefiar determinadas áreas proporcionam e sensibilizam internamente e que faz toda a diferença. Estamos a falar da Sonae, nomeadamente da loja Continente de Vila Nova de Gaia, que tem sido um parceiro fantástico. Nós precisamos das mais pequenas coisas, para as casas de banho, os quartos, a limpeza, e os produtos foram doados.
Quem chega sem nada, acaba por precisar de tudo o que podemos imaginar…
Não são todos os que chegam sem nada, mas todos necessitam de ser resgatados. Isto é muito importante, porque depois também há esta situação: “ah, mas eu estou a ver aqui carros estacionados ucranianos de uma determinada gama”. Sim, mas foi o único meio que sobrou para fugirem e agora, cá, precisam de coisas tão simples como conseguirem ter uma morada para poder abrir uma conta bancária. E é nesse aspeto que estamos a ajudar. Não estão todas as pessoas no mesmo patamar. Nós temos pessoas capazes de pagar rendas na ordem dos 500 euros, no máximo, está a ser complicado por causa da especulação imobiliária.
Que já existia antes e agora…
Exatamente. Nós fazemos, sob as instruções do JRS - ainda não existe nada formal entre nós, mas eles têm sido de um profissionalismo, estamos a falar de gente que se entrega realmente à causa, não precisa de ser apenas o voluntariado pelo voluntariado. Têm sido aqueles que nos aconselham a desenvolver todos os procedimentos que temos de desenvolver. Estamos a falar de uma rede: JRS câmaras municipais, ARS Norte, entidades privadas, o segredo está aqui. Nós só conseguimos ajudar se formos humildes, o suficiente, para perceber que não conseguimos fazer nada sozinhos.
A onda solidária demonstrada pela sociedade portuguesa no início da guerra mantém-se ou o conflito começa a ficar no esquecimento?
Seria injusta se não valorizasse mais a rede que está criada do que propriamente essa parte, mas também não seria correto se não dissesse que temos sentido realmente que temos situações em que realmente percebemos que as pessoas já perderam aqui algum interesse.
Já passou aquele mediatismo e temos situações bastante complicadas de pessoas que receberam - de pessoas que resolvem receber nas suas próprias casas, abrindo a sua intimidade para uma situação que não é temporária, mas mais definitiva. E isto é um perigo. Depois pode gerar conflitos, porque estamos a falar de pessoas diferentes, culturas diferentes e torna-se muito complicado. E depois temos pessoas que estão numa situação como essa. Temos pessoas que nos telefonam a dizer onde é que eu posso ir buscar apoio? O que é que eu agora faço? E ainda por cima, com o nível de vida, entretanto, a subir. Iniciativas particulares, e de gente que achou que podia fazer tudo sozinho...
Estão agora a sentir dificuldades?
Estão, estão. E depois recorrem, evidentemente, a quem se tenta muscular através disto, de uma rede. E nós tentamos ajudar da maneira que podemos, porque essas pessoas também se viram numa situação de dificuldade. Parece contraditório o que eu vou dizer, mas para ajudar nós temos de ser muito racionais. A emoção pode jogar contra a própria ajuda e dizer “não”, às vezes, é estar a dizer “sim” a uma série de situações.
Tem conhecimento de muitas situações iguais àquelas como estava a descrever?
Exatamente, algumas, sim.
Tem a ver com o facto de as pessoas terem respondido muito epidermicamente sem procurar uma rede de apoio?
É isso mesmo. Esse é o perigo. Primeiro e mais uma vez, a JRS aqui tem um lema que para mim acho que é fundamental: ajudar a integrar com a máxima autonomia. E depois temos aqui os dois extremos. Temos as pessoas que tratam infantilmente quem chega, e que não pode acontecer porque as pessoas têm de ser autónomas, têm de ser integradas para a autonomia.
E depois temos aquelas pessoas que reagiram a uma situação porque viram na televisão e tiveram imensa pena e não refletiram no médio e longo prazo. E então reagiram.
Isto prejudica, porque depois vai tirar o foco a quem está nestas redes de trabalho, porque têm de andar a apagar fogos de outros lados.
A situação já em si não foi planeada; ninguém nos avisou que ia estourar uma guerra. O senhor Putin não nos avisou para prepararmos aqui as coisas. E, portanto, nós estamos a reagir. Tudo o que nós temos criado tem sido mesmo em termos de espaços de logística; tem sido construído e em reação. Portanto, não houve aqui planeamento. Planeamento é agora pensar no que temos de continuar a pensar no futuro.
Chegaram-lhe relatos de situações de refugiados que tenham conseguido fugir a tentativas de tráfico e de exploração?
No Seminário Redentorista Cristo Rei não temos nenhum caso desses, mas sabemos que aconteceram. E há aqui um braço desta rede que eu não estava a referir e que é muito importante por causa desta situação. Nós pedimos para ter ajuda ao nível de proteção policial, precisamente para evitar situações menos boas e até bastante perversas de gente que quer avançar com tentativas de abordagem e de aproveitamento. Isto porque nós temos ali crianças, temos as mães.
E depois também sabemos que existe este tipo de situações, de gente que procura para trabalhos forçados e, então, para nós estarmos protegidos também temos aqui esta ajuda da polícia de proximidade, que é a mesma que faz o trabalho na escola e que é que também tem sido incansável connosco e ajudado.
Outra situação muito ligada a esta questão dos refugiados tem a ver com a discriminação. O Alto-Comissário para as Migrações, António Vitorino, alertou para essa situação e, numa recente entrevista à Renascença, o presidente da Obra Católica Portuguesa das Migrações denunciou que nas fronteiras, pessoas de tez mais escura foram ficando para trás. Tem ideia deste fenómeno, chegaram-lhe denúncias desta discriminação?
Sim. A realidade dos refugiados não existe só com os ucranianos. Portanto, esta realidade de refugiados está todos os dias a acontecer. Quem desenvolve realmente um bom trabalho em Portugal relativamente a esta questão de acolhimento, e integração de migrantes e refugiados, é mesmo a JRS. O que nós fazemos é pôr-nos à disposição destas entidades para podermos também cumprir aqui a nossa missão, o nosso carisma.
Mas existem situações de discriminação?
Existem. Existem porque, por exemplo, situações como o tráfico humano. Ainda esta semana ou a semana passada, também por causa da rede que temos aqui criada com a Proteção Civil do Porto, recebemos pessoas, senegaleses, que foram enganados numa rede de tráfico humano. E, portanto, esta realidade acontece ao minuto.
Era um conjunto grande de pessoas?
Era. Era um conjunto grande de pessoas e que nós acolhemos a altas horas da noite no seminário, porque é essa nossa vocação.
E como é que chegaram?
Foi a Proteção Civil do Porto que pediu a nossa ajuda e nós ajudamos. Basicamente é assim que esta rede funciona. E sem querer aqui entrar em pormenores ficam a perceber que realmente estamos a falar de uma realidade que ultrapassa qualquer tipo de país e qualquer tipo de cor de pele. E é evidente que os ucranianos estão a ter uma estrada mais livre para entrar porque são europeus do que propriamente um afegão ou um sírio, ou alguém de outra proveniência, nomeadamente mediterrânica.
Já tem a perceção de pessoas que estão a regressar à Ucrânia depois, por exemplo, da saída das tropas russas das áreas em volta de Kiev e se de alguma forma são pressionadas para este regresso por motivos profissionais ou familiares?
Sentimos isso diretamente com duas mães, com dois filhos cada uma, que regressaram a Kiev porque os maridos estavam lá e os meninos não aguentavam as saudades dos pais. Foi a única situação e, nestas circunstâncias, elas disseram: “Inês, nós vamos querer regressar”. Eu perguntei se tinham certeza, se era seguro, mas é evidente que esta questão de não sabermos o que faríamos no lugar destas pessoas, a única coisa que nós fizemos foi preparar os lanches para a grande jornada de viagem que iriam fazer. Elas estavam em carro próprio e regressaram. E este foi o único caso.
E mantêm contacto com eles?
Sim, sim. Não estão numa situação propriamente fácil, mas sentem-se mais felizes por estarem perto dos que amam. É perfeitamente natural. Pessoalmente custou-me bastante, mas é mesmo assim que funciona.
Recorrendo à sua experiência, há necessidade de melhorar, ou apurar os mecanismos de defesa e de proteção do acolhimento de refugiados?
Ui, há tanto caminho a fazer. E eu acho que o segredo, mais uma vez, está na criação de uma rede. Quanto mais nós tentamos fazer as coisas por nós próprias e por um grupo de amigos que se resolve reunir e agora forma mais uma associação e agora forma mais isto; só vai gerar ruído e confusão. E não vamos cumprir a missão última que é de ajudar toda a gente que merece.
Nós somos todos hóspedes de uma terra chamada Planeta; um sítio chamado Planeta, um país chamado Planeta, e, portanto, toda a gente tem o direito a ter paz, meios de sobrevivência e qualidades, até de sobrevivência. E quanto mais se unirem esforços e menos houver preocupação com projeção, protagonismos e houver aqui a humildade de reconhecer que nós em rede funcionamos.
Esta expressão e este cliché do “juntos somos mais fortes” é de facto verdade. Só é pena que as coisas depois fiquem um bocadinho estragadas quando entram muito no discurso. Mas só assim somos capazes de fazer um verdadeiro trabalho de redenção, de libertar estas pessoas, sejam elas da proveniência de onde forem; venham em barcos de borracha, venham em carros topo de gama, precisam igualmente de ser acolhidas, recebidas, integradas. E que encontrem abraços, e que encontrem a possibilidade e oportunidade de refazerem as suas vidas, porque nós não somos ninguém para julgar quem é que merece ou não e por isso vamos fazer o bem só porque está bem.