Falar de encarniçamento terapêutico para justificar a necessidade de legalização da eutanásia devia ser considerado crime porque das duas uma: ou é pura ignorância ou deliberada manipulação. Contudo, aconteceu este fim de semana pela voz da mais insuspeita das vozes: Francisco George.
A eventual “ignorância” está à partida excluída porque se trata de alguém que percebe de saúde e em concreto de problemas de saúde pública (com a agravante de ser médico), mas, conhecendo-o, a hipótese de “manipulação” deveria estar ainda mais excluída porque nos habituou a décadas de seriedade intelectual. Como explicar então a infelicidade das suas declarações do fim de semana?
Recordo o que disse nas jornadas do Bloco de Esquerda: "Esta lei tem de ser aprovada no interesse público porque no final da vida há abusos médicos muitas vezes, por pressão de administrações sobretudo no setor privado, onde se mantém a vida artificial, que não são aceitáveis – nem no plano moral, nem no plano da ética, nem no plano médico, nem no plano económico".
Claro que há ainda uma terceira opção: ser verdade o que diz. Ou seja, ser testemunha dessa má prática médica, quer no SNS, onde nos custará, enquanto contribuintes, milhões e milhões de gastos inúteis (com o inerente agravamento do sofrimento dos doentes suas vítimas perante o silêncio cúmplice de toda uma classe), quer nos privados (com a agravante de se estar a ceder a uma pressão ilegítima proibida pelo código deontológico e que se traduz objetivamente na exploração “económica” dos doentes e suas famílias).
Começando pelo mais básico:
O que é o encarniçamento terapêutico? Recorro ao documento da Conferência Episcopal Portuguesa de Março de 2016, “Contributos para o diálogo”, elaborado quando começou a discutir-se o tema da eutanásia na Assembleia da Republica para evitar que, misturando conceitos, acabemos a enganar-nos uns aos outros num dialogo de surdos muito pouco sério.
1. Diz a nota expressamente: “Distinta da eutanásia é a decisão de renunciar à obstinação terapêutica, ou seja, ‘a certas intervenções médicas já inadequadas à situação real do doente, porque não proporcionadas aos resultados que se poderiam esperar ou ainda porque demasiado gravosas para ele e para a sua família.” A nota continua a citar o ensinamento de João Paulo II, publicado na Carta encíclica “Evangelium Vitae” (25 de março de 1995), n. 65: “A renúncia a meios extraordinários ou desproporcionados não equivale ao suicídio ou à eutanásia; exprime, antes, a aceitação da condição humana perante a morte’”.
2. E acrescenta o texto cuja releitura vivamente recomendo e que está elaborado sob a forma de perguntas e respostas: “A obstinação terapêutica corresponde, assim, à aplicação de todos os métodos, diagnósticos e terapêuticos conhecidos, — mas que não visam proporcionar qualquer benefício ao doente —, com o objetivo de prolongar de forma artificial e inútil a sua vida, impedindo, portanto, através de uma atuação terapêutica desadequada e excessiva (desproporcionada), que a natureza siga o seu curso. Esta abordagem não é desejável; é, aliás, eticamente condenável, corresponde a má prática médica e conduz à chamada distanásia”.
3. Por fim, acrescenta-se: “O que é a distanásia? o contrário de eutanásia. A distanásia consiste em utilizar todos os meios possíveis — sem que exista uma esperança de cura — para prolongar de forma artificial a vida de um doente moribundo. Está associada à obstinação terapêutica. A distanásia é também considerada como a morte em más condições de apoio clínico e humano (“má morte”), associada à dor, sofrimento e a outros sintomas causadores de desconforto e incómodo significativo.” Exatamente o que ninguém quer, e fica assim muito claro.
Pode esta prática de excesso terapêutico estar a ocorrer quer nos hospitais públicos quer em privados? Pode. Mas não deve.
Basta, por exemplo, nos privados que os doentes e suas famílias sejam literalmente “exploradas” não os informando do momento certo a partir do qual o mais adequado passa a ser recorrer ao serviço de cuidados paliativos, uma vez que a cura já não é possível e os tratamentos adicionais, embora possam constituir até um prolongamento artificial da vida, apresentam já uma relação custo para o doente/benefício para a respetiva qualidade de vida nulo ou negativo.
É isto o que acontece, por exemplo, quando se sugere, recomenda ou simplesmente permite a um doente oncológico terminal o início de um novo ciclo de quimioterapia cujo efeito se sabe de antemão ser unicamente uma degradação ainda mais rápida do estado geral do doente com um sofrimento inútil e acrescido. Criando assim uma esperança que se sabe não fazer sentido.
A menos que o doente ou a família devida e claramente informada sobre o estado do doente reclamasse esse tratamento adicional, a mera sugestão de uma utilidade que se sabe inexistente é, em si mesmo, uma violação da boa prática médica. Desse ponto de vista, a Igreja é, aliás, muito clara quando frisa o direito inalienável do doente a não aceitar qualquer prática que possa ser vista como “encarniçamento terapêutico”.
Chegamos assim ao ponto: não é preciso fazer mais nenhuma lei para proibir o que é já está proibido, pelo respeito pela deontologia e ética médica e evitar o que já devia ser evitado ou legitimar o que é já hoje um direito consagrado a todos os doentes de reclamar o fim de tratamentos desproporcionados com o direito a uma morte natural e sem sofrimentos (ou os cuidados paliativos reduzem praticamente a zero esse sofrimento se devidamente prestados).
A menos que o que se diz não seja exatamente o que se pretenda – o que seria não apenas gravíssimo como verdadeiramente repugnante. Isto se quisesse acrescentar à definição de encarniçamento terapêutico (que o simples bom senso de uma equipa médica não tem a menor dúvida de fixar com maior ou menor grau de subjetivismo em determinado ponto da doença), uma espécie de lista de tratamentos que universalmente ficariam “proibidos” para que não se sobrecarregasse o orçamento do SNS já depauperado ou os orçamentos familiares com tratamentos ditos ”inúteis”, mas ainda plenamente justificáveis e eficazes do ponto de vista da pessoa doente.
Se vamos legislar sobre a eutanásia para “poupar” tratamentos demasiado caros (o utilitarismo reinante considera que o custo da sobrevida conseguido é desmesurado para o sistema), então legislar sobre a eutanásia não é apenas perigoso: passa a ser não apenas inconstitucional como um crime também (de desrespeito pela vida). É por isso aliás que vale a pena revisitar a tempos os sistemas belgas e holandês e o que neles se passou pós liberalização da eutanásia a par das “poupanças” efetivamente aí conseguidas. O histórico é preocupante.
Em que casos isso se aplicaria? Quando, por exemplo, um doente de 80 anos pode razoavelmente ser curado de um cancro através do recurso a tratamentos normais e apropriados embora a sobrevida expectável com qualidade de vida seja, apenas em função da idade, já lamentavelmente pequena (dois/três, dez anos?).
Os dois problemas (excesso terapêutico e eutanásia) não podem ser misturados.
Não se pode criar uma mentalidade capaz de dizer à avozinha se não seria melhor marcar o dia e hora da sua morte em vez de desperdiçar a herança no pagamento do seu tratamento hospitalar privado
Isso não é pôr fim ao encarniçamento terapêutico. É descartar os velhos que pesam na sociedade esquecendo que eles têm natural direito à vida e também eles contribuíram com os seus impostos para um sistema de que todos beneficiamos.
Se Francisco George foi mal interpretado ou as suas frases retiradas de um eventual contexto que nos escapa, era urgente que viesse à liça explicar o que pretendia efetivamente dizer quando misturou dois conceitos imisturáveis: o de Eutanásia e Distanásia. Para acabar com uma má prática médica, como a do encarniçamento terapêutico, basta usar o bom senso. Para isso, não precisamos de leis e menos ainda de uma para a liberalização da eutanásia.