O Parlamento tem seis meses para não deixar morrer a criminalização dos maus-tratos a animais de companhia.
A constitucionalista Teresa Violante, que durante 10 anos foi assessora do Tribunal Constitucional (TC), diz que a declaração de inconstitucionalidade da norma do Código Penal com força obrigatória geral “demorará pelo menos meio ano, e estando a ser otimista, até lá o legislador pode intervir, de forma a reformular a norma, indo ao encontro das dúvidas suscitadas pelos juízes" do Palácio Ratton.
O Tribunal Constitucional já declarou inconstitucional em 11 decisões o artigo do Código Penal que considera crime os maus-tratos a animais de companhia, com base na falta de tutela constitucional e na imprecisão da lei. Se vier a declarar a inconstitucionalidade com caráter geral e obrigatório, como pediu esta semana o Ministério Público, a norma terá de ser retirada do Código Penal, a menos que o legislador intervenha, reformulando a norma.
Teresa Violante acredita que será suficiente mexer no Código Penal para responder às dúvidas do TC. E defende que o legislador poderia ter prevenido a questão.
"Os problemas já estavam identificados em alguma doutrina, antes de 2021.Um legislador diligente, na minha opinião, mesmo que não concorde com os problemas levantados pelo TC, identifica-os e promove ativamente a sua resolução.”
Como isso não aconteceu, Rui Pereira entende que o problema com o TC só pode agora ser resolvido de forma eficaz através do processo de revisão constitucional em curso. O antigo juiz do Tribunal Constitucional lembra que "os juízes têm usado dois argumentos para anular as condenações por maus-tratos e apenas o da imprecisão do artigo 387 do Código Penal pode ser resolvido pelo legislador ordinário”.
Considera por isso "mais seguro resolver as dúvidas dos juízes em sede de revisão constitucional”, consagrando no texto da lei fundamental a proteção dos animais de companhia.
Reformular a lei
O constitucionalista e penalista adverte que qualquer reformulação da norma que criminaliza os maus-tratos a animais de companhia apenas poderá ser aplicada aos novos casos, porque o Direito Penal nunca pode ser retroativo. Se entretanto o Tribunal Constitucional declarar a inconstitucionalidade com força obrigatória geral, todas as condenações caem por terra. E as pessoas que já foram condenadas podem vir a exigir uma indemnização ao Estado.
“O que fizermos agora não salva tudo porque todos os processos, incluindo aqueles em que houve decisões transitadas em julgado, são afetados pelas declarações de inconstitucionalidade com força obrigatória geral, com recursos extraordinários de revisão, e possíveis indemnizações no futuro.” Pagas por todos nós? “Pois claro.”
A líder e única deputada do PAN Inês Sousa Real adverte que haverá ainda outra consequência.
"Além das indemnizações, há um grave problema que é a devolução de animais ao agressor."
Estes animais, ressalta, "estão neste momento apreendidos, ao abrigo de processos-crime, e estão à guarda não só de associações mas também de famílias de acolhimento temporário, animais que foram vítimas dos mais grosseiros maus-tratos, e vão ter de voltar para as mãos do agressor” se a criminalização for revertida.
Inês Sousa Real acredita que haverá acordo entre os partidos para melhorar a norma do Código Penal. E também que será possível, em sede de revisão constitucional, consagrar na lei fundamental a proteção dos animais de companhia.
Opinião idêntica tem Cristóvão Norte, que foi um dos pais da norma do Código Penal que criminaliza os maus-tratos. O antigo deputado social democrata sublinha que o processo legislativo nesta matéria sempre foi uma resposta ao apelo feito pela sociedade civil, que fez chegar à Assembleia da República dezenas de petições, a última das quais com mais de 66 mil assinaturas.
Aproveitar o momento para correções
O dirigente distrital acredita que, não prevendo a questão no seu projeto de revisão constitucional, o PSD dará o seu apoio à proposta do PS.
"Quando constatei que o projeto do PSD era omisso em relação a essa matéria, sabendo de antemão as vicissitudes por que esta lei passa, de imediato falei com as mais altas esferas do partido."
Até porque, adianta, "seria um bocadinho absurdo deixar esta lei morrer, quando o PSD foi um dos seus autores.” Será possível um entendimento entre o PS e o PSD em sede de revisão constitucional? “Tenho essa convicção inabalável, até porque o contrário seria completamente desprovido de sentido.”
E o constitucionalista Bacelar Gouveia desafia o legislador a aproveitar o momento para corrigir algumas desproporcionalidades do Código Penal, lembrando que destruir uma árvore pode dar uma pena superior a matar um cão.
"Destruir espécies protegidas da fauna e da flora, não só animais mas plantas, a pena prevista no Código Penal vai até cinco anos. Portanto é muito mais grave do ponto de vista penal, e alguém pode ser punido até cinco anos, destruir uma árvore ou plantas, do que por matar ou infligir mau tratos a animais ,em que a pena, a não ser em casos mais graves , só vai até aos dois anos.”
Posições do TC criticadas
Qualquer um dos três constitucionalistas ouvidos pelo programa Em Nome da Lei critica as posições que o Tribunal Constitucional tem adotado em todos os casos de condenações por mau tratos.
Rui Pereira diz que há uma contradição com decisões anteriores. ”É uma argumentação de um positivismo legalista que não tem nada a ver com a tradição do Tribunal Constitucional. O TC conseguiu desenvolver o chamado princípio da confiança, que deduz da ideia de Estado de Direito Democrático, a partir do artigo 2.º da Constituição, e que nada diz sobre o assunto. Por exemplo o Tribunal Constitucional nunca disse, e eu arrisco-me a dizer que nunca dirá, que incriminações como ofensa à memória de pessoas falecidas ou profanação de cadáver são inconstitucionais. E é muito mais difícil, francamente falando, encontrar de forma precisa e positivada os bens jurídicos protegidos no casos dessas normas protegidas. A não ser que se diga que são projeções de personalidade de pessoas vivas.”
Rui Pereira entende que a proteção dos animais está contemplada por um artigo da Constituição referente às tarefas fundamentais do Estado.
"A possibilidade de proteção dos animais para mim resulta também de uma norma expressa da Constituição que é o artigo 9.º, que fala das missões e incumbências do Estado, e que na alínea d) contempla a proteção da natureza e do ambiente. Ora aí está incluída, do meu ponto de vista, também a proteção dos animais de companhia e sem ser de companhia”.
Rui Pereira defende ainda que “a defesa dos animais não deve ser feita em nome dos bons sentimentos do homem, mas em nome dos próprios animais, e nesse sentido todos têm de estar abrangidos e não apenas os de companhia”.
Declarações proferias ao programa Em Nome da Lei, editado pela jornalista Marina Pimentel, e transmitido aos sábados, ao meio-dia, na Renascença e disponível em todas as plataformas de podcast.