1. Sou contra o aborto enquanto direito. Não quero uma mulher presa por causa de um aborto, até porque a mulher pode ser forçada pela acção ou inação do namorado ou marido. No entanto, não aceito a tese do aborto como uma liberdade, um direito ou um acto médico como outro qualquer. Não aceito, mas compreendo-a. Compreendo as razões do Roe Vs. Wade. São válidas. No aborto, temos dois direitos em choque, o direito da mulher à sua privacidade e ao controlo sobre o seu corpo “versus” o direito à vida do bebé por nascer. Considero que o segundo direito tem prevalência sobre o primeiro, mas sei que o primeiro existe e é legítimo. É uma situação trágica, dois direitos, duas ideias de bem em choque. No caso da eutanásia, este choque não existe porque não existe um direito à morte. O direito à morte é uma contradição nos termos.
2. O direito existe para regular a vida. A história do direito ocidental tem sido, de resto, uma batalha em defesa da inviolabilidade da vida contra o poder. Devemos lutar contra a pena de morte, porque a morte não pode estar no contrato social. Devemos lutar contra a posse massificada de armas, porque a morte não pode fazer parte da textura da comunidade. Se os extremos à esquerda recolocarem a morte no contrato social através da eutanásia, vamos ter com toda a certeza os extremos à direita a recolocar a morte no contrato social através da exigência do regresso da pena de morte. Os dois extremos estão errados. O acto de matar não pode fazer parte do contrato social. Matar é algo que uma república só pode fazer num estado de guerra contra o inimigo.
3. Por falar em guerra, os defensores da eutanásia usam uma linguagem militar. Falam por exemplo do "tiro de misericórdia" que se deve dar no moribundo. Num tribunal militar, os juízes talvez compreendam o soldado que deu um tiro de misericórdia no amigo estropiado, porque estavam num cenário de guerra, porque a ajuda médica era inexistente. Mas, nós, nas nossas sociedades pacificadas, ricas e altamente medicadas, não estamos num cenário de guerra. Invocar a moral do "tiro de misericórdia" fora de um cenário de guerra ou é desonestidade intelectual ou é uma desistência, um encolher de ombros.
4. Não há direito a morrer, porque não pode existir o dever de matar. O dever de matar, visto no passado como um direito inalienável do estado, não pode regressar debaixo da ideia de que estamos só perante um acto médico.
5. A discussão está centrada no sofrimento do doente. É um erro. O ponto central aqui não é quem quer morrer, mas sim quem tem de matar. Os médicos não podem ter o dever ou a missão de matar. Se um juiz não pode condenar à morte um assassino, porque é que um médico poderá decidir a morte de um doente acamado?
6. Uma pessoa pode matar-se quando quiser. Tem essa liberdade radical e egoísta. Chama-se suicídio. Ora, esta trágica possibilidade do livre arbítrio, o suicídio, não pode ser transformado numa liberdade constitucional. Um estado de direito que consagra o direito ao suicídio está ele mesmo a cometer suicídio.
7. Se não pode ser um direito constitucional, o suicídio não pode ser um direito social exigível aos hospitais do estado. Colocar o suicídio no cardápio de "direitos adquiridos" do estado social até parece humor, humor negro.
8. Se não é um direito constitucional, se não é um direito social, o suicídio também não pode ser uma mercadoria adquirível no mercado. O suicídio não tem lugar no direito comercial. O suicídio não pode estar disponível numa clínica privada ao lado de uma operação plástica - de novo, entramos num humor negro que ameaça ser a nossa realidade. O facto de haver gente disponível para comprar um suicídio numa clínica não torna essa transação legítima, da mesma forma que a compra de bebés não legitima o negócio das barrigas de aluguer.
9. Como é que se legisla a dor? Como é que se tabela a ideia de “dor intolerável”? Quem decide o que é uma “dor intolerável”? É desta imprecisão e desta subjectividade insanáveis que nasce a tal rampa deslizante: começámos com doentes oncológicos ou tetraplégicos, e já vamos em adolescentes deprimidos ou em velhos cansados de viver.
10. A sociedade é um contrato entre crianças, adultos e velhos. É um laço entre gerações. A sociedade deve exigir que os mais novos tomem contam dos mais velhos. Se os nossos pais tomaram conta de nós em criança, nós temos de cuidar deles na velhice. Se uma dada família não tem meios para suportar a velhice deste ou daquele idoso ou doente, o estado tem a responsabilidade social de aparecer e proteger as pessoas mais frágeis e “inúteis”. A eutanásia, tal como a eugenia de bebés com trissomia 21, consagra a ideia terrível de que há seres humanos inúteis e que são um fardo para os outros. Se isto não é inconstitucional, não sei para que serve uma constituição. É uma constituição só para os saudáveis e instagramáveis?