​Da Venezuela para Portugal. Da crise para o paraíso
13-11-2018 - 12:03
 • Olímpia Mairos

A vida coube-lhe em duas malas. Viajaram para Bragança, para serem acolhidos pelo serviço diocesano das migrações, praticamente sem nada. “Passávamos fome e, se ficasse lá com o meu bebé, não ia ter nem leite nem medicina.”

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Angel Mayz, de 34 anos, e Luiseiny Mays, de 23 anos, chegaram a Bragança sem nada. Vieram de Carúpano, na Venezuela, à procura de uma vida nova. Venderam tudo o que possuíam: carro, televisão, eletrodomésticos, computador, móveis… para comprarem o bilhete de avião e virem para Portugal de forma legal.

A Venezuela, onde nasceram e cresceram, mudou muito e para pior. E o casal decidiu partir, com apenas duas malas, em busca de melhores condições, sobretudo de um futuro melhor para o filho que esperavam e que, entretanto, já nasceu em Bragança, a terra onde, graças ao serviço diocesano das migrações, foram recebidos.

Licenciado em educação e técnico superior de marketing, Angel foi gerente de vendas numa empresa com 110 trabalhadores. A seu cargo teve uma estrutura de 62 pessoas com administradores de vendas, supervisores, chefes de marketing e vendedores.

Tinha uma vida estável, um bom ordenado, ganhava um salário que correspondia a seis vezes o salário mínimo, uma família e projetos, mas tudo se desmoronou com a chegada da crise. Uma crise que trouxe atrás de si insegurança, fome, degradação social.

“O que mais me impressionou foi a velocidade com que se estragou a economia, a falta de uma boa administração, a velocidade com que se degradou a sociedade e as pessoas. Gente que tinha estudos universitários, que trabalhava e tinha bons cargos e empregos e o ordenado não chegava para comprar comida suficiente ou medicamentos”, conta à Renascença.

“Só podíamos comer uma vez por dia e outros dias nem comíamos”

Luiseiny abandonou o mestrado em contabilidade a três meses de o concluir. Não se arrepende, porque a vida na Venezuela era muito complicada. Em casa, onde viviam pais, avós, irmãos, apenas o progenitor trabalhava, o que se tornou insustentável.

“Passávamos fome. Às vezes, só podíamos comer uma vez por dia e outros dias nem comíamos. Também não havia condições de saúde. O meu papá é diabético e não havia medicamentos. Já não aguentava a situação”, relata com a voz embargada.

Luiseiny confessa que tem muitas saudades da família, que deseja trazer para Bragança, mas sente que tomou a decisão certa, porque, diz, “se ficasse lá com o meu bebé, não ia ter nem leite nem medicina”.

“Quero trazer os meus papás para cá, mas, primeiro, tenho que trabalhar para ter dinheiro e, além, disso está a ser difícil conseguir os passaportes, o governo não está a facilitar, não quer deixar sair os cidadãos”, diz.

“A situação atual na Venezuela é muito complicada. A delinquência começou a aumentar e as ruas não são seguras, não há alimentos nos supermercados, nem medicamentos nas farmácias. Há gente a morrer, doentes de cancro e de sida que não conseguem os seus medicamentos e, simplesmente, morrem. Doentes com alguma infeção que morrem nos hospitais, por falta de antibióticos”, acrescenta Angel.

“A governação deve seguir as regras de um jogo de beisebol”

O técnico de marketing dá voltas à cabeça para tentar encontrar algo de positivo, atualmente, na Venezuela, e não encontra.

“Eu estou a ser objetivo, porque vivi lá. A Venezuela vive uma das crises mais terríveis da sua história, uma crise que retirou às pessoas a capacidade de reagir, pela pobreza, destruição da sua saúde e pela violação dos seus direitos fundamentais”, sublinha.

O venezuelano, que escolheu Bragança para viver, considera que “só a mediação da Comunidade Internacional pode ajudar a sair da crise que abrange todas as áreas, desde a economia, passando pela segurança até à ética e a encontrar soluções”.

“Penso que seria importante uma intervenção internacional para ajudar a mudar este país, governado pela extrema esquerda”, defende, explicando que “um Governo não pode ter 20 anos”.

“Tem que haver alternância de poder e tem que haver oportunidades para todos os partidos políticos e não permanecer no poder 30, 40, 50 anos, como se fosse uma ditadura cubana”, considera Angel, elucidando que a governação deve seguir as regras de um jogo de beisebol em que quando uma equipa apanha as três bolas toca à outra fazer o mesmo”.

Para Angel a democracia na Venezuela é questionável. “Existe uma democracia, mas nós não sabemos se os resultados não são manipulados. As votações são com máquinas, mas as máquinas são vulneráveis e podem ser manipuladas de diferentes modos”, observa Angel.

A felicidade em Trás-os-Montes

Angel e Luiseiny Mays escolheram Bragança por intermédio de um casal transmontano amigo que viveu na Venezuela e que, devido à crise, regressou à terra onde investiu no ramo da panificação. Foi aí que Angel começou a trabalhar como padeiro, mas, atualmente, já está numa empresa do ramo da eletricidade.

“O trabalho é porreiro. Estou a sentir-me mesmo bem com a equipa de trabalho e a minha meta, o meu objetivo é melhorar como trabalhador e poder dar de mim o melhor, também como cidadão, e fazer vida, uma boa vida aqui em Bragança”, explica Angel.

O casal não pensa em regressar à Venezuela, “que tardará a recuperar”, porque se sente bem em Bragança, onde tem encontrado ajuda e apoio. “Queremos ficar aqui, porque gostamos muito da cidade. É muito bonita, dá segurança, temos tudo o que nós precisamos, o ambiente das quatro estações e das pessoas”, diz Angel.

Luiseiny acrescenta que “aqui a vida é tranquila, temos tido muita ajuda e o pequenino vai poder crescer com condições de saúde, educação, segurança, alimentação”.

E depois do Angel e da Luiseiny já chegou a Bragança María Gabriela, de 39 anos, licenciada em educação com especialização em música. É irmã de Angel e deixou Valencia, onde “tinha um trabalho que amava, que adorava”.

“Era professora de música infantil e tinha momentos belíssimos com as minhas crianças. São como meus filhos. Amo-os muito. É sobretudo isto que custa deixar. Já o que está a acontecer no nosso país, não nos identifica. Isso não dói deixar. Depois, deixar a terra e o que representa a terra, a tua gente. Obviamente, os teus costumes, levas contigo, onde quer que fores”, conta Gabriela à Renascença.

E o que mais a fez sofrer na Venezuela? Perguntamos. “A crise afetou todos os setores da sociedade, tornando-se cada vez mais difícil aceder a certas coisas, por exemplo, medicamentos que antes era normal, comer dignamente. O dinheiro já não dava”, afirma.

E prossegue: “Podias ganhar um bom salário que já não chegava. Eu ganhava quatro vezes mais o salário mínimo e já não me chegava, porque a hiperinflação, que lamentavelmente começamos a viver, levou tudo, arrasou com tudo. A segurança, também foi um fator determinante. Lamentavelmente temos esse problema ali”.

Para começar uma vida nova

“Esta cidade, este país é tão belo, oferece tantas coisas bonitas, qualidade de vida, que é o que procuramos, viver tranquilos, viver dignamente, que ganhes o teu salário com o teu esforço e que vejas o resultado disso. Que com o teu salário possas ter uma vida digna, bonita, e ir conseguindo todas as coisas lindas que sonhaste”, conta Gabriela.

Gabriela vive com o irmão, a cunhada e o pequeno sobrinho e está à procura de trabalho.

“Se, por acaso, se apresentarem oportunidades, são muito bem-vindas. Estou à procura de oportunidades, quem dera, na área musical. Adoro trabalhar com crianças. E seria lindíssimo continuar esse trabalho. Na Venezuela tive o trabalho de resgatar a música tradicional do meu país e ensiná-la às crianças para fomentar nelas o sentido de pertença ao país e foi muito bonito”, refere a venezuelana.

E sem que o esperássemos, Gabriela pega no seu cuarto (um instrumento da família da guitarra) e começa por dizer “obrigada por esta oportunidade, por este acolhimento, tão bonitos que nos estão a oferecer. Bragança parece-me um paraíso, não apenas pela sua beleza, mas pela qualidade humana que encontramos verdadeiramente. Quero manifestar isto, porque estou como que alucinada com tanta coisa bonita”.

E de seguida, “em gratidão”, canta uma canção tradicional da Venezuela, uma “malagueña”, que relata o amor de um marinheiro que, “quando está no mar, canta o mar com todas as suas alegrias e as suas tristezas” e, ao ver passar uma jovem, que pertencia a uma classe superior à sua por quem se apaixona, lhe canta o seu amor.

Igreja atenta e solidária

A família Mays está a ser acompanhada e apoiada Serviço Diocesano das Migrações e Minorias Étnicas. A diretora, Fátima Castanheira, conheceu o casal no curso de português para estrangeiros, por si lecionado no agrupamento de escolas Emídio Garcia, em Bragança, e a partir dali não mais os largou.

“Numa fase inicial, eles vinham sem nada, devido aos problemas que sabemos que estão a acontecer na Venezuela e conseguimos encontrar uma casinha muito pequenina, muito modesta, mas essa casa não tinha nada. Foi preciso mobilar, limpar, pintar, arranjar os equipamentos necessários, desde as panelas aos pratos, ao fogão e conseguimos, com a ajuda de muitos voluntários”, conta Fátima Castanheira.

A diretora do Serviço Diocesano das Migrações e Minorias Étnicas destaca que “Bragança é uma cidade muito solidária” e que, por isso, “foi fácil “rapidamente equipar uma casinha muito modesta, onde estão a viver e, entretanto, já chegou o pequenino Diego e as coisas estão a correr bem, estão a melhorar de dia para dia”.

O serviço da Igreja está agora a “tentar orientar a família, a traduzir currículos e a procurar emprego para todos, para que esta família, com formação superior, tenha todas as condições para estarem connosco e ter sucesso em Bragança”.

E, segundo a responsável, aguardam-se, na cidade de Bragança, mais venezuelanos nos próximos tempos e todos serão bem acolhidos.

“Sabemos, por contactos que temos tido, que vão vir mais emigrantes venezuelanos, que são bem-vindos a Bragança. Eles próprios reconhecem que Bragança é uma cidade acolhedora que os está a saber receber e vamos aguardar que sim, que tudo corra pelo melhor, e que seja a cidade de eleição deles e que consigam fazer futuro aqui”, conclui Fátima Castanheira.