A inteligência artificial (IA) pode representar um “perigo real” para o mercado de trabalho e agravar o problema da desinformação, diz à Renascença Arlindo Oliveira, professor do Instituto Superior Técnico (IST).
Os receios em relação à Inteligência Artificial existem desde o início da era tecnológica, nomeadamente a ideia de que os robôs podem substituir as pessoas. Com o rápido desenvolvimento de novos sistemas com a capacidade de gerar texto (como ChatGPT) e imagens (como o Dall-E 2), as implicações da IA regressam ao centro do debate.
Em entrevista à Renascença, Arlindo Oliveira abordou as diversas preocupações relacionadas com a IA - desde a possibilidade de sistemas mais complexos desenvolverem agendas próprias às várias possibilidades do impacto da IA no mercado de trabalho.
Recentemente, Geoffrey Hinton, que trabalhava para a Google, anunciou a saída da empresa para discutir os riscos da inteligência artificial: a desinformação, o potencial de substituição de empregos pela automação e a possibilidade de sistemas de IA se tornarem perigosos para a sociedade.
Arlindo Oliveira analisou os riscos apontados por Hinton e questiona se os sistemas de IA irão, realmente, causar um impacto significativo nestas áreas, pelo menos num futuro próximo.
“Os dois perigos que Hinton referiu, explicitamente, foram os da desinformação - da possibilidade desses sistemas serem usados para criar desinformação - e a possibilidade de sistemas virem a criar desemprego, substituindo as pessoas. Qualquer um desses riscos é um perigo real. Seguramente que estes sistemas podem ser usados para criar desinformação, mas já há tantas maneiras de criar desinformação atualmente, que se levanta a questão se estes irão mesmo alterar muita coisa”.
No que diz respeito ao potencial de substituição de empregos, relembra que a automação também pode aumentar a eficiência dos trabalhadores, reduzindo a necessidade de pessoas em determinadas funções mais perigosas e monótonas.
“É muito provável que os sistemas venham a aumentar a eficiência dos trabalhadores e, portanto, a reduzir a necessidade de pessoas. No mundo ocidental, não diria que isso seja um problema muito grave, porque neste momento estamos é com falta de pessoas, mas é um risco”, explica Arlindo Oliveira.
Além desses dois riscos, que o professor do IST considera possibilidades “reais”, Hinton mencionou um terceiro: a possibilidade de sistemas de IA se tornarem perigosos para a sociedade e a humanidade, algo que Arlindo Oliveira considera “um pouco mais discutível”.
Um futuro mais produtivo ou o adeus ao pleno emprego?
A IA pode vir a desempenhar tarefas que, atualmente, são executadas por seres humanos, como já acontece nos atendimentos automáticos de serviços de apoio ou até em alguns ‘drive-thru’, que já contam com 'chatbots' no atendimento.
O impacto da IA no futuro do mercado de trabalho é um tema que provoca divergências, uns com uma visão mais otimista, outros mais pessimista. Arlindo Oliveira relembra, porém, que, historicamente, a tecnologia tem destruído empregos, mas também criado oportunidades.
“Esta é a pergunta de um milhão de dólares para a qual ninguém realmente tem resposta. Ao longo dos últimos 250 anos, a tecnologia tem, de facto, substituído pessoas em muitos empregos e esses empregos são destruídos, mas tem também criado muitos empregos e, nestes últimos 250 anos, o saldo é essencialmente positivo”, garante o docente.
Enquanto alguns acreditam que a IA vai dar lugar a novos empregos mais sofisticados – eliminando os mais aborrecidos ou perigosos – , outros levantam preocupações. Para já, salvaguarda o docente, não há indícios de que a IA possa levar ao aumento do desemprego, mas a adaptação da força de trabalho será crucial no futuro.
“Os mais otimistas pensarão que é isto que vai acontecer, quase garantidamente: desaparecem alguns empregos, de tarefas aborrecidas, mas vão aparecer outros mais sofisticados, com maior valor acrescentado. Não sou assim tão otimista. Acho que, a partir de um certo nível, será relativamente difícil que as pessoas que ficam sem emprego – porque fazem tarefas rotineiras – tenham as competências necessárias para fazer estes tais empregos de maior valor acrescentado”, aponta.
O docente explica que estas transições são lentas e poderá levar décadas até afetarem significativamente o mercado de trabalho, pelo que, caso tal se verifique, teremos tempo para nos adaptarmos a "uma sociedade onde o pleno emprego poderá desaparecer".
"É preciso dizer que, até agora, não há nenhum indício disto. No mundo ocidental, o que nós temos é falta de pessoas para os empregos que existem e, provavelmente, isso vai manter-se durante algum tempo", salvaguarda Arlindo Oliveira, relembrando que, neste momento, "até são boas notícias haver aumento de produtividade e redução do número de pessoas empregadas" já que Portugal tem falta de mão de obra em determinados setores.
“Num futuro um bocadinho mais distante, é possível que tenhamos de nos adaptar a uma situação em que o pleno emprego deixa de ser a norma e onde teremos de arranjar soluções para uma fração eventualmente significativa da população que não tem emprego. Isso pode perfeitamente acontecer. É muito difícil prever se isso vai acontecer e quando é que vai acontecer. Mesmo os economistas e os tecnólogos divergem fortemente nesta análise", sugere o professor do IST.
“Há as duas visões: A visão de que vai causar uma rápida redução do número de empregos disponíveis e o aumento do desemprego e a visão oposta, que vai criar novos empregos e, portanto, vamos ter sempre essencialmente o pleno emprego que temos hoje. A realidade será uma destas duas ou, eventualmente, alguma coisa no meio”.
Além disso, para Arlindo Oliveira, mesmo com a automação, haverá procura por determinados serviços específicos, como os cuidados de saúde, particularmente devido ao envelhecimento da população: “Há muito trabalho para ser feito e, neste momento, é difícil arranjar pessoas para fazer esse trabalho. Agora, se as pessoas vão estar adaptadas às necessidades do mercado é uma outra questão”.
De acordo com os cálculos apresentados no último inquérito “Future of Jobs”, elaborado pelo World Economic Forum (WEF), também a procura por analistas e cientistas de dados, especialistas em 'machine learning' e peritos em cibersegurança, verificará um aumento estimado de 30% até 2027. A mesma análise sugere uma profunda disrupção do mercado de trabalho: quase um quarto dos empregos, a nível mundial, vão sofrer mudanças.
O docente do Técnico defende ainda que, no contexto específico de Portugal, a IA pode até ser benéfica se contribuir para o aumento da produtividade, já que esse é “um dos problemas centrais” do país em comparação com outros países europeus.
Desinformação: Quando ver para crer já não é suficiente
Todos nos lembramos da imagem que viralizou nas redes sociais do Papa Francisco com um quispo branco. A imagem foi gerada pela ferramenta Midjourney e veio relançar a preocupação em relação à divulgação de imagens e vídeos falsos, já que com o avanço dos sistemas de inteligência artificial torna-se cada vez mais difícil distinguir o que é real do que é criado.
Até então, a falsificação de textos já era um problema, mas as imagens continuavam a ter uma certa credibilidade. Contudo, esta “confiança” tem sido abalada perante a facilidade de criar imagens falsas e, segundo Arlindo Oliveira, em breve também será relativamente fácil criar vídeos falsos, aumentando ainda mais o desafio de determinar sua autenticidade.
“Já é muito fácil falsificar textos. Por enquanto, ainda acreditávamos em imagens quando víamos uma fotografia, embora muitas já pudessem ser falsificadas. Neste momento, estes sistemas tornam muito mais fácil criar imagens falsas e muito em breve vão tornar relativamente fácil criar vídeos”.
Perante esse cenário, a necessidade de estabelecer garantias de autenticidade torna-se evidente para o professor do IST.
“Da mesma maneira que também não acreditamos agora num texto ou numa frase atribuída a uma pessoa, a menos que haja uma prova independente, provavelmente também vamos começar a exigir provas independentes de que uma fotografia ou um vídeo são reais”.
Embora a questão seja preocupante, não é algo novo. A adulteração e falsificação de conteúdos sempre foi uma possibilidade, agora, torna-se apenas mais difícil de serem detetadas devido aos avanços tecnológicos. Apesar dos desafios impostos pela disseminação de conteúdos falsos gerados através de sistemas de IA, o docente acredita que não haverá uma mudança radical, mas que será necessário ter estratégias para lidar com os novos problemas.
“O ‘ver para crer’, como dizia São Tomé, deixa de se aplicar”, afirma Arlindo Oliveira, que sugere a necessidade de desenvolver “técnicas para detetar vídeos falsos”.
“Os tribunais, quando for esse o caso, vão utilizar estas técnicas da mesma maneira que agora também se fazem análises periciais para saber se uma assinatura é de uma pessoa ou se uma gravação é a voz de uma pessoa”.
Uma outra preocupação sobre o impacto da IA na desinformação é a aplicação destes sistemas na criação de perfis falsos em redes sociais, simulando milhares de pessoas.
Embora isto também já seja uma realidade, mas em menor escala – "Bots" já fingem ser pessoas nas redes sociais –, a evolução tecnológica pode agravar este problema, tornando mais difícil distinguir entre o que é gerado automaticamente do que é produzido por pessoas.
“Estes sistemas podem ser usados para fingir que são pessoas. Por exemplo, numa rede social ou noutro ambiente (digital), podemos ter milhares de pessoas a defender ou a concordar com uma certa posição”, exemplifica.
Há, contudo, a possibilidade de estes agentes de IA poderem desenvolver agendas mais complexas no futuro, combinando tarefas e até mesmo desestabilizando setores da sociedade, como regimes políticos ou instituições financeiras.
“É possível que estes agentes comecem a ter agendas mais complexas e possam combinar tarefas para atingir objetivos mais complexos. Um exemplo disso é a desestabilização de um regime ou fazer cair uma companhia ou um banco e, portanto, é perfeitamente possível imaginar sistemas destes mais complexos que tenham várias ações nas redes sociais, nas transações financeiras, nos media, etc.”, alerta Arlindo Oliveira.
Esta é a terceira preocupação de que Hinton falava: sistemas mais complexos podem "tornar-se perigosos, porque são agentes adicionais na sociedade”.
Segundo os dados do Our World in Data, o investimento em IA no mundo empresarial excedeu os 176 mil milhões de dólares em 2021. Se em tempos a IA parecia ser apenas um futuro distante, agora já integra o nosso dia a dia com as mais variadas aplicações em áreas como finanças, saúde, automóveis, geração de texto – como é o caso do ChatGPT – e assistentes de voz – como a Alexa, Siri ou Google Assistant.
Esta tecnologia será certamente um fator de incentivo à mudança global, resta saber se será aplicada por forma a contribuir para melhorar a qualidade de vida e estimular o crescimento económico através de um aumento de produtividade ou se o seu impacto será precisamente o inverso, afetando negativamente o mercado de trabalho e a sociedade.