No início do outono, os Salem gozavam pacatamente a sua reforma em Beit Lahia, uma cidade localizada no norte da Faixa de Gaza, a pouco mais de 5 kms da fronteira com Israel. Este casal de palestinianos mal podia imaginar que os massacres do Hamas de 7 de outubro seriam o rastilho para uma mudança radical na sua vida.
Apenas dez dias depois de o grupo islamita ter matado mais de mil e duzentas pessoas em Israel e raptado pelo menos 240, das quais cerca de 100 continuam em cativeiro, já a casa dos Salem tinha ficado fortemente danificada pelos bombardeamentos ordenados pelo governo de Benjamin Netanyahu.
O choque para Mohammad, de 77 anos, e a mulher, Naima, de 70, foi enorme. “Fiquei muito triste, foi muito difícil. Trabalhei naquela casa durante 20 anos por uma única razão, a fé. Em poucos segundos ficou destruída. Não esperava que os israelitas atacassem daquela maneira”, admite com amargura o antigo professor de Filosofia.
A partir desse momento a vida dos Salem sofreu uma reviravolta brusca e as traves que balizavam o seu mundo pareceram ruir, juntamente com os alicerces da casa.
"Partimos sem nada. Só com as roupas que tínhamos no corpo"
Nesta nova etapa, contaram com a ajuda de uma das filhas, Heba, mas os medicamentos de que necessitavam, sobretudo Mohammad, que sofre de diversos problemas de saúde, deixaram de estar acessíveis como antigamente. A comida e a água passaram a escassear. Os seus bens pessoais ficaram reduzidos a cinzas.
O que talvez ainda não suspeitassem é que os “cães da guerra” iriam persegui-los de forma implacável de uma ponta à outra do estreito território situado na costa leste do Mediterrâneo. São apenas 40 quilómetros que separam Beit Lahia, a cidade onde viviam no norte, de Rafah, situada no extremo sul. O que certamente não saberiam é que cinco meses depois do início da guerra de Israel com o Hamas seriam retirados para Portugal e estariam a viver em Braga com o filho e a nora.
Um êxodo que ligou Gaza de norte a sul
A primeira paragem do êxodo dos Salem foi uma escola das Nações Unidas, ainda em Beit Lahia. “Partimos sem nada. Só com as roupas que tínhamos no corpo. Pusemo-nos ao caminho sem saber para onde ir. Sem comida, sem bebida, sem nada. Decidimos partir e essa escolha deixou-nos paralisados”, recorda Naima. A partir daí a bússola da sobrevivência apontou sempre para sul, no sentido em que as Forças de Defesa de Israel avançavam.
"Decidimos partir e essa escolha deixou-nos paralisados”
Seguiu-se Az Zawayda, depois da ordem de evacuação do norte de Gaza por Israel. Uma imposição do país vizinho que nunca tinham sentido: “Nunca os israelitas nos tinham forçado desta maneira”, vinca a palestiniana. Permaneceram até final de dezembro nessa localidade situada ao centro da Faixa de Gaza, quando decidiram tomar o caminho de Khan Yunis, onde achavam que estariam mais seguros.
“Andávamos de escola em escola”, relata Naima. “Imagine quantas histórias ouvimos. Como tudo isto pôde acontecer?” Uma pergunta que deixa sem resposta, enquanto recorda todos os perigos por que passaram. “O nosso povo foi atacado, atiraram-nos bombas, dispararam armas sobre nós. Muitos morreram no meio do conflito. Estávamos lá e sabemos como foi”.
O percurso até Khan Yunis foi penoso. Israel não permitia o uso de veículos e a condição física do casal estava muito debilitada, sobretudo de Mohammad. Num posto de controlo à entrada da cidade, conta o ancião, os militares ofereceram-lhe uma cadeira de rodas para facilitar a locomoção, mas nem isso muda a sua opinião sobre o povo que habita do outro lado da fronteira: “Eles só compreendem uma linguagem: a do genocídio e da destruição. São inimigos cruéis”.
Em Khan Younis viveram o momento mais difícil, quando a universidade de Al-Aqsa, onde se tinham refugiado, foi alvo de um ataque aéreo. “Foi Alá que me salvou”, declara Mohammad. “De repente ouvi um estrondo, uma explosão. Pensei que ia morrer. Uma bomba caiu mesmo ao nosso lado. O meu sobrinho ficou ferido. Quatro homens levaram-nos para fora. Por que os israelitas nos atacaram? Para quê?”, interroga-se.
"Uma bomba caiu mesmo ao nosso lado"
Seguiu-se nova paragem, em Rafah. Mohammad, Naima e Heba chegaram a 20 de janeiro ao campo onde estão atualmente concentrados 1,5 milhões de pessoas. O que aí encontraram não é fácil de recordar para Naima: “Em Rafah ficámos em tendas. Não havia usava casa-de-banho, tínhamos de usar uma garrafa. Mesmo se vendesse um jarro bom por uma libra... Não há nada para comprar”.
O casal conta que passou as últimas semanas em Rafah a alimentar-se uma vez por dia, com pouco mais do que feijão e arroz. Mesmo assim “estavam ali melhor do que no norte, porque aí já nada restava”, avalia Naima.
A passagem de fronteira que custou 5 mil euros
Enquanto os Salem faziam o que podiam para suportar a carestia, em Portugal o filho Alshaarawi tinha começado a fazer contactos com a embaixada portuguesa no Egito e a Autoridade Palestiniana, em Ramallah, para tentar trazer os pais para Portugal.
O pós-doutorando da Universidade do Minho tem passaporte português há quase dois anos. A Renascença teve oportunidade em novembro de o entrevistar na sua casa, em Braga, onde vive com a mulher, Rema, que trabalha numa empresa informática, e Salma, a filha de dois anos. Um segundo filho do casal está prestes a nascer.
Da parte da embaixada portuguesa, a resposta foi logo positiva. Se Mohammad e Naima passassem a fronteira para o Egito seriam transportados para Portugal através dos serviços consulares, explicou Alshaarawi.
"Tens no Egito uma coisa chamada 'coordenação'. Pagas o dinheiro e ele sai."
A Autoridade Palestiniana deu também a garantia de que o casal reunia as condições para deixar a Palestina. Assim, os pais, com o apoio da irmã Heba, fizeram várias tentativas para atravessar o controlo de fronteira, mas havia sempre uma contrariedade que aparecia do lado egípcio e que impedia a passagem do Mohammad para o outro lado.
Até que Alshaarawi compreendeu o que era necessário fazer. “Tens no Egito uma coisa chamada 'coordenação', [que quer dizer] pagar dinheiro. É muito fácil. Pagas o dinheiro e ele sai. E eu paguei”. A passagem da fronteira custou 5 mil euros aos bolsos do investigador.
A 28 de fevereiro o casal Salem estava em território egípcio e recebeu o apoio previsto da embaixada portuguesa, que tratou da transferência para o Cairo, da passagem de avião para Portugal e dos cuidados médicos de que os dois idosos necessitavam.
As marcas da guerra continuam bem vivas
Apesar de terem sobrevivido a todas estas provações e estarem agora em segurança a celebrar o Ramadão, as marcas do conflito continuam bem vivas no espírito do casal Salem.
"A nossa cabeça não está bem. Vimos as crianças mortas."
“A minha saúde ficou destruída com a guerra”, admite Mohammad. A ausência de medicamentos e de uma alimentação adequada prejudicou a evolução do seu quadro clínico, nomeadamente de hipertensão e de Parkinson. “Antes conseguia caminhar um pouco, ir à casa-de-banho, mas agora deixei de ser capaz”, lamenta-se. Sem a ajuda dos filhos não é capaz de abandonar a cadeira de rodas, de que nunca mais se separou desde Gaza.
Naima, por seu turno, enfatiza os problemas de saúde mental. “A nossa cabeça não está bem. Vimos as crianças mortas. As pessoas em Gaza estão deprimidas, tristes, exaustas, incapazes de se levantar. Não há água, comida. Nada. A situação está muito má”, admite a septuagenária.
Hamas tem capacidade militar, mas a Fatah é que pode negociar
Um eventual regresso a Gaza é algo inconcebível neste momento. “A alma está lá, em Gaza, mas agora é impossível”, declara Mohammad. Uma realidade incontornável porque a guerra, no seu entender, não tem fim à vista.
"A alma está lá, em Gaza, mas agora é impossível [regressar]"
“Existe uma ocupação. Não vejo uma solução através das negociações”, atira o palestiniano, antes de dar a sua opinião sobre a situação política: “o Hamas tem a capacidade militar, mas não tem a capacidade de negociação. Mahmoud Abbas e a Fatah conseguem negociar e têm os contactos necessários no plano internacional.”
Em parte, as premonições de Mohammad parecem confirmar-se. O processo negocial mediado pelo Qatar, o Egito e os Estados Unidos da América continua a não ter uma evolução favorável para um conflito que, segundo dados fornecidos pelo Ministério da Saúde de Gaza, gerou mais de 32 mil mortos, aos quais se juntam cerca de 75 mil feridos, dos quais mais de 70% são mulheres e crianças.
Entre os mais de 2,4 milhões de habitantes ameaçados pela guerra continua Heba. “Tenho muito medo por causa dela”, balbucia Naima. Os seus olhos brilham. Mal consegue conter a emoção. A esperança da família é que em breve também seja possível trazê-la para Portugal.