EUA pedem extradição de Assange com base em acusação minimalista
11-04-2019 - 23:06
 • José Alberto Lemos, em Nova Iorque

O pedido de extradição de Julian Assange para os Estados Unidos é minimalista e ignora a principal acusação contra o fundador da WikiLeaks. Um caso que suscita mais interrogações do que certezas.

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Não deve haver muitas detenções que suscitem tantas interrogações, perplexidades e ironias quanto a de Julian Assange, fundador da WikiLeaks, consumada nesta quinta-feira em Londres.

A detenção foi feita pelas autoridades britânicas ao abrigo de um pedido de extradição das autoridades americanas. E a primeira interrogação diz respeito justamente ao âmbito desse pedido. Os EUA acusam Assange de um único crime: conspirar para obter o código de acesso a um computador governamental. Nada mais. Um crime que lhe pode custar até cinco anos de prisão.

Bem diferente seria se Assange fosse acusado de espionagem para divulgar documentos confidenciais do governo americano. Essa foi a acusação feita ao então soldado Bradley Manning, hoje Chelsea Manning, que foi condenado a 35 anos de prisão por ter cometido tal crime. Só cumpriu sete anos porque o presidente Obama comutou-lhe a pena e Branning vive hoje em liberdade.

Mas foi ele que acedeu aos documentos e os passou à WikiLeaks, que os divulgou ao mundo.

Do computador “pirateado” saíram cerca de 250 mil documentos confidenciais do Departamento de Estado, 400 mil sobre a guerra no Iraque e 90 mil sobre a guerra no Afeganistão.

Ao restringir a queixa de Assange a uma espécie de co-conspirador em pirataria informática, as autoridades americanas evitam uma acusação de espionagem por ter acedido e divulgado publicamente segredos governamentais. Essa, sim, seria uma acusação controversa, que enfrentaria seguramente contestação em tribunal. Segundo inúmeros juristas, o manifesto interesse público daquilo que a WikiLeaks divulgou em 2010 coloca-a ao abrigo da Primeira Emenda da Constituição americana que garante a liberdade de expressão e de imprensa.

Tal entendimento teve o então procurador-geral de Obama, Eric Holder, quando abdicou de acusar Assange para não abrir um precedente. Acusar alguém que se diz jornalista de espionagem por ter divulgado informação verdadeira desencadearia enorme polémica e despertaria muitos fantasmas.

Ben Wizner, um jurista da ACLU, um dos grupos cívicos mais ativos nos EUA, alertou para os perigos de tal acusação para a imprensa americana, que frequentemente desafia leis e regras para publicar informação com manifesto interesse público.

São inúmeros os casos ao longo da história em que a imprensa americana o fez. E na medida em que a WikiLeaks reclama ser uma organização jornalística, o caso em apreço parece enquadrar-se no âmbito da liberdade de imprensa.

Entendimento diferente parece ter o atual secretário de Estado americano, Mike Pompeo. Quando era diretor da CIA, em abril de 2017, classificou a WikiLeaks como “um serviço secreto não-estatal hostil” aos EUA. Um “estatuto” que aparentemente não vingou no seio da própria administração que Pompeo integra, caso contrário a acusação a Assange não teria sido tão restritiva.

Mas a perplexidade acentua-se quando se verifica que as autoridades americanas decidiram ainda ignorar o papel de Assange nas eleições presidenciais de 2016. Recorde-se que durante a campanha eleitoral, a WikiLeaks divulgou dezenas de milhares de emails do Comité Nacional Democrático e do diretor de campanha de Hillary Clinton, John Podesta. Os serviços secretos americanos concluíram sem margem para dúvida que os emails tinham sido pirateados pela espionagem russa e cedidos à Wikileaks para divulgação.

O procurador especial Robert Mueller, que investigou a interferência russa na campanha eleitoral, incriminou, em julho de 2018, doze militares de uma das agências de espionagem do Kremlin por terem discutido com a WikiLeaks o conteúdo e o timing de divulgação dos emails pirateados ao Partido Democrático, com vista a aumentar o seu impacto na campanha eleitoral.

Houve neste caso uma clara conspiração com a Rússia com o intuito de prejudicar Hillary Clinton e favorecer Donald Trump. Aliás, o candidato republicano exprimiu nos comícios o seu deslumbramento pelo que estava a acontecer. “Adoro a WikiLeaks”, “espantoso”, “inacreditável”, proclamou, encorajando os seus fãs a lerem os emails revelados. Segundo uma contabilidade da NBC, fê-lo 141 vezes em 56 aparições públicas só no último mês de campanha.

Um “amor” que alastrou aos seus maiores fãs. Sean Hannity, uma das mais destacadas vedetas da Fox News e grande amigo de Trump, foi à embaixada do Equador em Londres entrevistar Assange já depois das eleições. Perante os desmentidos do entrevistado em ter conspirado com a Rússia na campanha eleitoral americana, Hannity confessou: “Para ser totalmente sincero, acredito em cada uma das palavras que ele disse”.

As ironias abundam, portanto, nesta história de Julian Assange. A primeira tem a ver com os democratas. É um homem em relação ao qual a administração Obama se conteve em pedir extradição por boas razões — para não suscitar fantasmas quanto à liberdade de imprensa. E o próprio presidente acabou por comutar a pena ao soldado Manning, que conspirou com Assange. No entanto, foi este mesmo Assange que prejudicou o Partido Democrático na campanha de 2016, conspirando com a Rússia para favorecer Trump.

A segunda ironia tem a ver com os republicanos. Assange é um homem que ajudou significativamente os republicanos na campanha eleitoral e que se tornou um herói de Donald Trump. Mas agora é a administração republicana que pede a sua extradição. No entanto, fá-lo de uma forma mitigada, minimalista, ignorando mesmo a principal acusação de que foi alvo pelos serviços secretos americanos e pelo procurador especial. Uma acusação que, a ser provada em tribunal, abriria caminho a uma pena superior a 30 anos de prisão e não inferior a cinco. Isto numa administração que até teria entendimento diferente quanto ao estatuto da WikiLeaks, a crer nas palavras de Mike Pompeo.

A terceira ironia veio do frio. Reagindo à detenção de Assange, a Rússia acusou o Reino Unido de “estrangulamento da liberdade”.