​A declaração de guerra palaciana Costa vs Marcelo
02-04-2021 - 14:58

O Presidente reconheceu que o Governo pode sempre pedir a fiscalização sucessiva, mas alerta que talvez não seja a melhor ideia. Contudo, e ao que parece, Costa não conseguiu evitar cair na armadilha da arrogância.

A estratégia política de Rui Rio, a existir é, pelo menos para mim, uma caixinha de surpresas incompreensível que, ora me surpreende por bons motivos, ora me ultrapassa por maus. Pelo contrário, a de Costa, é altamente previsível e segue uma lógica de inteligente ambição, sem olhar a meios para atingir os fins, e embora gire em torno de um só homem tem a grande vantagem de ser coerente com uma mente brilhante mesmo quando nos parece perversa. Sempre numa linha consistente. Por isso, ao mandar para o Tribunal Constitucional os três diplomas promulgados pelo Presidente da República, fiquei finalmente surpreendida.

A primeira reação de António Costa foi a esperada: desvalorizou o facto e chutou para canto. Usou a ironia, neste caso um bocadinho deslocada, mas menosprezou a argumentação presidencial classificando-a como “rica”, “inovadora”, “criativa”. Tudo aplicado à interpretação feita em relação à possível constitucionalidade da violação da lei travão nos três casos. Tão inovadora que iria merecer, por isso, a profunda reflexão do Governo, antecedendo a decisão de mandar, ou não, os três diplomas promulgados para o Tribunal Constitucional com pedido de “apreciação sucessiva”.

Até aqui tudo bem. Nada de pressas, se o Presidente é constitucionalista e viu ali um nicho de conformidade com a Constituição (como aliás outros constitucionalistas ouvidos na Renascença, como Bacelar Gouveia, também tinham visto) talvez fosse boa ideia não entrar em guerras inúteis que se podiam perder.

Numa segunda reação António Costa, vestindo o fato de presidente da União Europeia, voltou a desdramatizar e deu a entender que, cito de memória, tinha mais “ que fazer” do que inventar querelas institucionais e dar corda a crises políticas ficcionais. Ou seja, fez o expectável: chutou efetivamente para canto. Já que os diplomas entrariam em vigor e a despesa seria feita na mesma, sem possibilidade de devolução retroativa, e um peso orçamental máximo de 400 milhões, para quê fazer notar uma coligação negativa, acentuando o isolamento governamental, ainda por cima em três matérias altamente populares como o alargamento de 9 para 12 anos dos apoios aos pais em teletrabalho obrigados a acompanhar os filhos, a majoração das remunerações do pessoal de saúde na linha da frente no combate ao COVID e a extensão de algumas medidas de apoio a trabalhadores independentes (sobretudo micro-sócios gerentes).

Aliás, era esse o conselho dado pelo próprio Presidente na justificação que acompanhava a promulgação onde, no ponto 8, mostra a “preocupação de evitar agravar querelas politicas, em momentos e matérias sensíveis, o que é ainda mais evidente em situações extremas de confronto entre Governo minoritário e todos os demais partidos com assento parlamentar”. Marcelo acrescenta no ponto 10 (…) “é visível o sinal político dado pelas medidas em causa e não se justifica o juízo de inconstitucionalidade dessas medidas. O que aliás parece ser confirmado pela votação do partido do Governo em diplomas com a mesma essência no conteúdo (…)”.

Implicitamente o Presidente reconhece que o Governo pode sempre pedir a fiscalização sucessiva, mas alerta que talvez não seja a melhor ideia. Contudo, e ao que parece, Costa não conseguiu evitar cair na armadilha da arrogância. O erro de se meter numa nova guerra quando tem tanta coisa difícil que aí vem para discutir. Os apoios à TAP, que é um sorvedouro sem fundo; os reforços de capital do novo banco; a questão das moratórias que exigem que Costa puxe dos galões, de Presidente da União Europeia. para poder combater aí os danos colaterais sobre a banca nacional ou a falência em cadeia de centenas de famílias. Múltiplas matérias onde pode ficar de novo sozinho se continuar a ignorar que a partir daqui a negociação não é só à esquerda, mas à direita, ao centro e em Bruxelas (onde muito mudou mas não o suficiente).

Resumindo:

1. Costa garante que não há nenhum conflito com o presidente, mas haverá?

Num momento em que impera o Estado de Emergência e estão suspensos direitos liberdades e garantias absolutamente fundamentais, não perceber que o “estado de necessidade”, da nossa economia, mais do que justifica uma leitura flexível da “lei travão” é confundir o acessório com o essencial. É a primeira vez desde 76 que existe essa leitura? E desde essa data, quantas vezes estivemos em Estado de Emergência?

2. O primeiro-ministro acrescenta que se abre um precedente perigoso, permitindo que a Assembleia da República passe a desfigurar constantemente o Orçamento do Estado. O risco existe?

Marcelo no próprio texto de promulgação não se esquece de recordar a forma sempre “criativa” que o Governo tem adotado na execução orçamental. O PR recorda que é conforme à Constituição “os diplomas poderem ser aplicados na medida que respeitem os limites resultantes do Orçamento do Estado vigente”. João Leão tinha, aliás, admitido expressamente essa possibilidade ao dizer que a despesa (expectável embora impossível de antecipar com certeza!) era acomodável, sem necessidade de nenhum orçamento retificativo. As dotações orçamentais talvez também possam servir para este tipo de medidas? Ou não?

3. O risco de se abrir aqui uma crise política ou uma guerra de palácios desta vez é verdadeiro?

Sempre achei ficção, mas sabendo-se que Marcelo está empenhado em ensinar Costa a governar em minoria e a negociar, diria que sim. Não é impunemente que numa crise desta dimensão passa pela cabeça de alguém governar sem permanentes cedências. Pior do que isso, ninguém está, neste momento, interessado nessa. E, quando rebentar a crise económica que se joga agora com o plano de vacinação, a popularidade do PS rapidamente pode cair a pique. As autárquicas dificilmente serão o pontapé de saída, mas se Moedas surpreender em Lisboa e o Chega subir, está criado o caldinho para um enorme berbicacho. Lembram-se do pântano? E não estávamos com uma pandemia…

4. Com o tempo que o Tribunal Constitucional vai levar a decidir e como a decisão não vai ter impacto no que, entretanto, tiver de ser pago, para que serve então a fiscalização destes diplomas?

Para doutrina futura, mas não vai ser por aqui que dispara o défice. Costa como Marcelo preparam o terreno, há mais orçamentos para aprovar.

5. Se os diplomas forem mesmo declarados inconstitucionais, como fica a posição de Marcelo que, além de Constitucionalista é por definição o primeiro guardião do texto que jurou “cumprir e fazer cumprir”?

Na mesma. Fez o que a consciência lhe indicava. Pôs o “direito ao serviço da política” como sempre defendeu. Juntou-se ao Povo. Não impediu a Governação e como ele próprio diz, será simplesmente a “Democracia a Funcionar”.

Marcelo não é nunca previsível. Mas já vai nos 70 e, em matéria de criatividade, leva a palma a Costa. Hélas!