Posso estar a ser injusta. Não queria estar na pele de nenhum deles. Mas não há forma de opinar com certezas. Nem os dados ajudam, nem os especialistas, nem sequer o confronto com a realidade que os jornalistas, no terreno, vão fornecendo à redação.
Os testemunhos dos médicos e enfermeiros não deixam dúvidas: o tsunami que se adivinhava em junho parece estar a ser combatido, cinco meses depois, com os mesmos sacos e a mesma areia, onde enterramos as cabeças e nos atiram aos olhos, e pelos mesmos homens e mulheres de sempre que enfiaram as braçadeiras do socorro a náufragos e que não dormem desde março.
O desnorte é total. Os números matraqueados, todos os dias, não ajudam a perceber o que de facto se está a passar. E se não há ideologia a mais e cooperação a menos, além do colapso do SNS assistimos também ao colapso privado. Os surtos multiplicam-se. Eram lares, agora é um pouco de tudo -- empresas, corporações de bombeiros, ou prisões. Descobertos sempre da mesma forma.
Sabe-se lá porquê “fulanito” testou positivo, e a correr testam-se, finalmente, todos. Conclusão: 20, 50, 100, ou até mais se os houver, já estavam todos infetados. E vão ser imediatamente separados dos que por acaso testaram negativo: 5, 10, 20? Depende da dimensão da instituição onde se deu a descoberta. Quem fica a tratar dos doentes? Os assintomáticos. E os outros? Ficam noutra ala, noutra instituição, noutra terra se já não restar lugar ali.
Perdemo-nos nos milhares dos números diários. Isso é o quê? Os curados (bela lembrança de Marcelo para tornar os quadros ainda mais confusos). E esses outros milhares? (os infetados desde ontem? Não, os internados!) . E aqueles? Os que estão em cuidados intensivos. E esses? Os mortos. Tantos? Pois.
Talvez se devessem substituir tantas informações que mais parecem o boletim meteorológico por uma única: a lista nominal dos mortos. Assim teríamos uma melhor ideia do que significa o boletim da DGS. Menos curvas, menos achatamentos, menos desculpas e menos teorias sobre a falta de senso dos nossos concidadãos. E, sobretudo, menos perda de tempo de quem não tem, ou não devia ter, tempo a perder.
As conferências de imprensa seriam substituídas por uma única informação. O dr. Lacerda dava uma palavra de boas vindas e o adjunto do subchefe do chefe de gabinete da diretora adjunta da diretora-geral anunciava com voz pesarosa: “Passamos então a revelar os nomes dos mortos de hoje (pausa). Aureliano Matos Lopes, Auzenda Fazenda, Domítilia Barreira (…) José Ferreira Mindinho, Manual Francisco Silva, Maria Violeta Ferreiro e assim sucessivamente até ao septuagésimo oitavo: Zélia Manhão de Almeida”.
Quem quisesse chegava à redação e contactava mais dois ou três hospitais cujos dados não tinham chegado a tempo à central de informação e somava os restantes, para reduzir falhas e erros de pormenor.
São nomes falsos, mas fossem verdadeiros e por detrás deles estariam as famílias inteiras, velhos amigos, colegas, vizinhos , conhecidos, à espera de saber, colados às rádios e TVs , ávidos a comprar jornais, quem sucumbira à guerra, e perecera na frente de batalha. Gente lá do lar, do centro de dia, ou da solidão dos montes. Poupava-se nas análises, nas explicações, evitavam-se contradições. Acabam-se com os debates. Dizia-se o que se diz em casos de catástrofe e emergência, apenas o essencial. Quem morreu.
E em matéria de números a coisa reduzia-se aos que permaneciam desaparecidos entre os corredores dos hospitais, as salas de espera improvisadas, as tendas de campanha montadas ao ar livre para triagens várias, e os quartos “isolados” lá de casa ou das variadíssimas instituições vagamente requisitadas para o efeito, clubes desportivos, santas casas, ou seminários.
Nas guerras também é assim. Já aqui relatei uma vez o que ouvi de uma freira que, na Síria, quando apenas as escolas e o comércio alimentar estavam a funcionar, e ao soar o alarme de bombardeamento as pessoas fugiam o mais rápido que podiam em direção aos abrigos na residência universitária, onde morava. Durante a fuga, estranharam a atitude de uma aluna decidida a voltar para trás. Que fazes? Vou buscar a mochila porque, se sobreviver a este, tenho, na terça, teste de matemática.
Não estamos aí. Mas às vezes só a caricatura nos abre os olhos para a realidade. Vamo-nos habituando e parece que, a par desta desgraça, só se pensa nas compras. “Vamos ao supermercado a que horas? Compramos os brinquedos para as crianças este fim de semana? É prudente. Parece que às 6h30 já podemos. Até quando? Às 13h há recolher obrigatório”.
Percebo que, sem compras, não se consegue dar de comer à economia. E, sem isso, à lista de mortos vão somar-se os desempregados e os famintos.
Os jovens em geral não morrem! A frase dita por Óscar Felgueiras numa das muitas análises televisivas que, ao longo do dia, nos vão acompanhando o teletrabalho chama a atenção, pela banalidade. Passa pouco das quatro e está enquadrada numa previsão do agravamento do número de mortes, maioritariamente de idosos, durante a próxima semana, e por isso ganha outra força.
Os jovens em geral não morrem. Mas os idosos sim. E a sua morte é dada como certa. Talvez às centenas. Não sabemos. Só sabemos que os números vão ainda piorar. Antes de se revelar o impacto das medidas de recolher obrigatório. Vão piorar e possivelmente colocar-nos na situação que o conselho de ética da Ordem dos Médicos gostaria de orientar: o problema da escolha. Não é constitucional, garantem os especialistas. Talvez, mas eles não são os médicos de serviço. Exaustos, sem meios, a decidir em plena batalha quem pode sobreviver.
Levanta-se a questão: e o que podemos fazer para o impedir? Nada. Já devíamos ter feito. Isto é o efeito de há duas semanas. Dos jantares de família, dos lanches escolares? Dos cafés com amigos? Para o fazer tinha sido precisa mais coragem e melhor planeamento. Parar tudo. Poupava vidas, mas quanto custariam em desemprego e falências, fome e desespero, essa decisão? Não critico. Pergunto.
E agora? O sistema já está em sobrecarga, sobretudo a Norte, onde os hospitais já se encontram rodeados de tendas de campanha e onde os médicos e enfermeiros começam a deixar o discurso politicamente correto para adotar a denúncia da impotência total. Não é possível tratar três vezes mais doentes com os mesmos meios humanos.
Há uns dias vimos Marta Themido num desses hospitais, em visita, mas sem nenhuma confusão à volta. O que se passou então?
A segunda vaga da pandemia de Covid-19 teria, segundo o especialista, tido origem num avolumar de casos entre a população ativa mais jovem, só depois viria a atingir de novo os mais velhos, entre os quais a mortalidade da doença é muitíssimo maior.
Vamos ficar mais pobres. Económica, social e culturalmente, e até familiarmente com os nossos maiores a partirem mais cedo, no meio desta pandemia desnorteada onde nada parece poder ser contido dentro de um mínimo de racionalidade.
Nem na mensagem existe coerência. A culpa é minha, diz Marcelo. Claro que só posso ser eu o culpado, assume humildemente Costa, depois de sete horas de Conselho de Ministros que se resume a um passar de 121 concelhos em estado de emergência para 191. A culpa desta vez tem noivos. Veremos se casa.
Havia ainda uma notícia adicional: não vai dar para contornar a lei. Ao sábado e domingo o comércio só poderá abrir normalmente das 8h às 13h, ou talvez não exatamente às 13h, porque a essa hora começa o recolher obrigatório. É só fazer as contas. Ou seja, fecha às (?) …bom, a tempo de tudo estar em casa a partir das 13h. Com as devidas exceções. Mas essas são pouquíssimas: funerárias, lojas de comida para cães e gatos, gasolineiras, enfim… as óbvias.
Qual é a parte do ”é para ficar em casa" que ainda não percebemos?! Nem nós, nem o próprio Governo. É assim tão complicado?