Os químicos que, esta semana, provocaram a maior explosão de que há memória no Líbano em tempos de paz foram transportados para o porto de Beirute há sete anos por um navio russo decrépito que, de acordo com o próprio capitão, nunca deveria ter atracado ali.
"Eles foram gananciosos", acusa Boris Prokoshev, capitão do navio Rhosus em 2013, quando o seu patrão o mandou fazer a paragem não-planeada no porto de Beirute para uma recolha de carga.
Prokoshev diz que, nessa viagem, o navio de carga transportava 2.750 toneladas de um químico altamente combustível da Geórgia para Moçambique quando foi obrigado a fazer um desvio para a capital do Líbano.
Em Beirute, foi pedido à tripulação que carregasse o navio com algum equipamento rodoviário pesado e o transportasse para o porto de Aqaba, na Jordânia, antes de seguir viagem até África, com destino a Moçambique, onde o nitrato de amónio deveria ter sido entregue a um fabricante de explosivos.
O navio, contudo, nunca chegou a abandonar o porto de Beirute.
O que aconteceu?
De acordo com fontes à Reuters, a embarcação e respetiva carga tornaram-se protagonistas de uma longa disputa judicial sobre taxas aduaneiras, deixando as toneladas de nitrato de amónio estacionadas na zona portuária.
Foi esse mesmo nitrato de amónio, um fertilizante muito utilizado no fabrico de explosivos, que esteve na origem do desastre da passada terça-feira, que vitimou pelo menos 145 pessoas, a juntar a cerca de 5 mil feridos e meio milhão de pessoas desalojadas.
"Tornou-se impossível", conta Prokoshev, 70 anos, à Reuters, sobre a operação de carregar o navio com a carga extra e zarpar.
"[O equipamento] poderia ter arruinado completamente o navio, então recusei-me [a carregá-lo]", explica à agência numa chamada telefónica a partir de Sochi, a sua terra-natal, na Rússia.
O capitão e advogados envolvidos no processo acusaram o dono do navio de abandonar a embarcação e conseguiram que fosse arrestada. Meses mais tarde, por questões de segurança, o nitrato de amónio foi retirado do barco e armazenado num depósito portuário.
Se tivesse sido possível carregar o navio Rhosus com o equipamento rodoviário adicional, a embarcação teria seguido a sua rota com o nitrato de amónio a bordo.
Entre o equipamento em questão contavam-se escavadoras e cilindros. A tripulação ainda tentou acomodar as máquinas junto do nitrato de amónio, mas não havia condições para transportar tanto peso.
"O navio era velho e a tampa do porão cedeu e dobrou-se", conta à Reuters Boris Musinchak, contramestre do navio à data. "Decidimos que era melhor não correr riscos", adianta o ucraniano.
O capitão e os três tripulantes da embarcação passaram 11 meses a bordo do navio atracado, enquanto a disputa judicial se desenrolava, sem que lhes fossem pagos salários e com acesso limitado a comida. Quando chegou a hora de partirem de Beirute, e dado o estado da embarcação, as toneladas de nitrato de amónio foram retiradas do navio e armazenadas no porto da capital libanesa.
"Era carga altamente explosiva, era nitrato de amónio de elevada concentração", recorda Prokoshev. "Foi por isso que a mantivemos a bordo enquanto ali estivemos."
Rumo à Fábrica de Explosivos
O dono do navio, adianta Prokoshev, é o empresário russo Igor Grechushkin, que a Reuters tentou contactar, até agora sem sucesso.
O nitrato de amónio foi vendido por uma produtora de fertilizantes, a georgiana Rustavi Azot LLC, a um fabricante de explosivos em Moçambique, a Fábrica de Explosivos. A Reuters tentou contactar uma fonte bem colocada na empresa moçambicana através do LinkedIn, mas até ao momento não conseguiu obter reações nem esclarecimentos.
À mesma agência, Levan Burdiladze, diretor de infraestruturas da Rustavi Azot, diz que só nos últimos três anos é que a empresa opera a fábrica de químicos onde funciona atualmente, pelo que não pode confirmar a origem do nitrato de amónio em causa.
Sobre a decisão de armazenar a carga explosiva no porto de Beirute, Burdiladze reconhece que é uma "grave violação das medidas de armazenamento seguro" deste tipo de componentes, até porque "o nitrato de amónio perde as suas propriedades úteis no espaço de seis meses".
Investigações preliminares das autoridades libanesas ao que aconteceu esta semana indicam inação e negligência na gestão das toneladas deste perigoso químico que ficaram esquecidas no porto de Beirute desde 2014. Ontem, o Governo libanês ditou prisão domiciliária para todos os responsáveis pela segurança do porto de Beirute desde esse ano.
No rescaldo da explosão de terça-feira à tarde, o presidente da autoridade aduaneira libanesa e o diretor do porto de Beirute garantiram que foram enviadas várias cartas às autoridades judiciais do país, pedindo-lhes que garantissem a remoção do material, o que nunca chegou a acontecer. O Ministério da Justiça ainda não respondeu às acusações.
Ainda segundo o capitão Prokoshev, quando a tripulação partiu da Geórgia o navio já apresentava problemas, entre eles fugas, mas foi considerado seguro o suficiente para a viagem. A mesma fonte diz que as autoridades libanesas não quiseram saber do nitrato de amónio, guardado em sacos empilhados uns por cima dos outros a bordo do navio.
"As autoridades libanesas devem ser castigadas, não quiseram saber da carga que transportávamos, de todo", defende o capitão russo. "Lamento pelas pessoas [que morreram ou ficaram feridas no desastre]."
Informações enviadas a Prokoshev por um advogado envolvido neste processo em maio de 2018 dão conta de que o navio Rhosus foi abandonado e acabou por se afundar ao largo do porto de Beirute anos mais tarde. No email em questão, o advogado diz que esse incidente aconteceu "recentemente".
[correção: a versão original deste artigo indicava no título que o navio Rhosus partiu da Rússia com destino a Moçambique; na verdade, a embarcação partiu da Geórgia. Pelo erro, as nossas desculpas]