A Igreja não pode estar nas redes sociais como está “num boletim paroquial” ou “no púlpito”. O conselho é dado por Guilherme Peixoto. O “padre DJ”, como é conhecido, é o convidado da entrevista conjunta Renascença/Ecclesia deste domingo, para falar da alegria e humor com que marca presença no Facebook ou no Instagram, num exemplo que contrasta com a imagem mais “sisuda” que muitos têm da Igreja e dos sacerdotes.
Pároco de Amorim e Laúndos, na arquidiocese de Braga – onde há 17 anos nasceu o “Ar de Rock”, uma discoteca que serve a comunidade – diz que não se pode desperdiçar esta nova forma de evangelizar.
A propósito da situação na Ucrânia - a entrevista foi gravada antes da invasão russa -, deixa o alerta: a paz pode e deve ser cultivada na forma como se usam as redes sociais e se consome informação, que no caso da guerra não pode ser olhada como um “reality show”.
Para além de ser o pároco de Amorim e Laúndos, na Arquidiocese de Braga, é também capelão militar, DJ (Disc Jockey) e presença habitual nas redes sociais, em programas de televisão e até em spots publicitários, onde se apresenta sempre com humor. Podemos dizer que a alegria é uma das marcas do seu sacerdócio?
Sim, sempre foi, mas não tão visível como agora, as redes sociais têm destas coisas. Mas, quem me conhece, já desde o seminário, sabe que a alegria, o bom humor esteve sempre presente.
Dá muito trabalho a linguagem específica das redes sociais, onde tem uma presença muito diversificada?
Quem está nas redes sociais tem de trabalhar, as redes sociais dão muito trabalho, porque é preciso produzir conteúdo. Estar por estar, mais vale não fazer nada. Tem de se olhar para as redes sociais como mais um trabalho, que eu acho que é fantástico, faz-nos chegar a tanta gente que de outra forma não conseguiríamos, mas é um trabalho, e dá trabalho.
É também conhecido como o “Padre DJ”, pela animação musical que faz no “Ar de Rock Laúndos”, um espaço que criou ao lado da capela do Monte de S. Félix, na sua paróquia, para dinamizar a comunidade local. Como é que os paroquianos reagiram a isso?
Se eu fosse para uma paróquia e criasse tudo isto lá, ia ser muito estranho para todos. O certo é que isto nasceu na paróquia e com a paróquia, com os paroquianos.
Acabava a catequese no mês de junho e no início de julho abrimos este espaço, que geralmente terminava no primeiro fim de semana de setembro. Quem lá trabalha são membros dos grupos corais das duas paróquias, Amorim e Laúndos, ministros da comunhão, do conselho económico, e outras pessoas que se juntaram às equipas que lá estão, todos eles voluntários.
Isto começou com um pequeno espaço que depois foi aumentando, as pessoas foram trabalhando, e quem chega lá hoje e vê a dimensão daquele espaço acha tudo isto quase inacreditável. Para a comunidade é algo normal, porque nasceu com eles, acompanharam e já dizem: “senhor padre, este ano vai abrir?”, e eu: “calma, vamos ver como é que corre isto da pandemia”.
Tem estado interrompido por causa da pandemia?
Mal chegou a pandemia encerrámos. São todos voluntários e também temos esta responsabilidade para com as pessoas que lá trabalham de não proporcionar nada que possa ser um perigo para a sua saúde.
Isto começou há quanto tempo?
Começou em 2005.
Portanto, já apanhou várias gerações de jovens?
Já apanhou várias gerações, e nas equipas de trabalho há alguns que vêm desde o início, chegaram lá como jovens, hoje são menos jovens, mas continuam dedicados a este projeto.
Com este “Ar de Rock Laúndos” chegámos também ao “Laúndos em movimento”, outro evento que criámos com o apoio destas equipas. Têm-nos feito alguns convites para aqueles dias especiais da cidade da Póvoa de Varzim, através da câmara municipal, neste caso, os “Dias no Parque”, que é uma espécie de uma feira local das associações, e convidam-nos a estar presentes, e a mim, como DJ, para animar uma das noites.
No S. Pedro, que é a grande festa da cidade, ao longo dos últimos anos também nos têm convidado para animar lá uma praça, com as nossas barraquinhas e o palco, é mais uma das fontes de receita da paróquia, e tem sido assim nos últimos anos. A brincar, a brincar, e no meio desta alegria toda, pagámos a dívida, restaurámos a igreja matriz e agora estamos a trabalhar para a sede dos escuteiros. Infelizmente tivemos de parar estes dois anos. Vamos ver se agora, ao retomar, vamos encher o peito, cheios de força.
Durante o confinamento teve de recorrer à internet e às redes sociais para ir partilhando música, como DJ. Continua a fazê-lo?
Sim, sim. Foi curioso que a primeira comunicação que eu fiz foi um PDF, que partilhei no Facebook da paróquia e no Facebook pessoal. Enviámos esse PDF para os colaboradores principais da paróquia, com avisos sobre como é que ia ser com a pandemia, com o encerramento das igrejas, como é que podíamos fazer a catequese em casa, não presencial.
Um documento extenso, com os cuidados sanitários a ter. Foi algo que deu trabalho e até tive alguns amigos médicos que me ajudaram, um deles ligado ao Instituto Ricardo Jorge. E quando envio o documento a pensar: “temos aqui uma obra de arte de comunicação”, muitos dos que receberam o documento ligavam a perguntar: “como é que vai ser isto e aquilo?”. E eu: “não leram? Está lá”. Foi aí que comecei a pensar que tinha de se facilitar a comunicação, ou ia correr mal.
Os tempos de atenção são cada vez menores.
É isso. E foi então que, junto com o texto, comecei a fazer uns vídeos com algum humor. Foi aí que apareceu a veia humorística nas redes sociais, foi a necessidade de fazer um clique que prendesse as pessoas, para que elas depois lessem o texto. Começámos com uma série “A vida de um padre em confinamento”, ia partilhando com humor alguns momentos do meu dia a dia em casa, com a minha cadela, a celebrar a missa sozinho, as minhas orações. Começámos também com os “lives” nas redes sociais, com música. Mas este clique veio desse PDF, que eu tive tanto empenho em fazer e que algumas das pessoas que o receberam ligavam a perguntar sobre coisas que estavam lá escritas e tudo explicado.
Há pouco, quando nos dirigíamos ao estúdio para esta entrevista, falou sobre a importância de se criarem conteúdos específicos para cada rede social, e que para poder ter alcance com aquilo que diz sobre a Igreja e vida católica precisou de produzir muitos conteúdos que não tivessem nada a ver...
Uma coisa é uma instituição, outra coisa é a título pessoal. A partir do momento em que comecei a produzir conteúdos que não tinham nada a ver com a Igreja, isto é, que iam para além do terço e da missa - claro que a igreja nas paróquias não é só isso, mas as pessoas percebem -, conteúdos com humor, ligados às mais diversas situações do meu dia a dia, as pessoas começaram a partilhá-los, a seguir, e reparei que depois, quando publicava alguma coisa mais específico da Igreja, as pessoas comentavam e interagiam, quem tinha fé e quem não tinha. E ainda hoje é assim, as pessoas vão seguindo pelo humor, e quando aparece algum conteúdo mais alegre partilham e andam por ali.
Portanto, isto também tem ajudado a sua missão de sacerdote, chegar às pessoas?
Ajudou muito nos confinamentos, na pandemia. Ajudou-me também muito a passar algum tempo em casa. Hoje podia dizer: “será que ainda fazem assim tanta falta as redes sociais, com tanto trabalho que já temos nas paróquias, está tudo a mexer?”. Mas, agora vou parar tudo isto que começou? Será que faz sentido parar?
Já é muito popular, no bom sentido, e tem muitos seguidores. A fé também se alimenta assim, nas plataformas digitais, estando onde as pessoas estão e falando a sua linguagem?
É uma coisa curiosa que consegui, com o apoio da Ecclesia, criar um link direto em que quando a Ecclesia transmite uma série de cerimónias religiosas - o terço é uma delas - entra em direto na minha página de FB, e àquela hora já estão as pessoas à espera para rezar o terço e comentar, à noite.
São as boas sinergias que se vão criando...
Há uma altura do ano, em agosto, em que os profissionais estão de férias e a transmissão é suspensa, por algumas semanas, e na rua, por duas ou três vezes, encontrei pessoas que perguntavam como podiam fazer para rezar o terço.
Como é que é visto pelos seus pares, por outros padres da diocese, por exercer o seu ministério desta forma, sempre com alegria e bom humor, e com a música a ter um lugar importante? Isto não contrasta com o resto da Igreja, que para muitos ainda dá uma imagem “triste” e “sisuda”?
Eu, sinceramente, o que os outros padres pensam não me interessa. Interessa-me o que é que o meu bispo pensa.
E o que é que o seu bispo pensa?
Ele [o arcebispo emérito, D. Jorge Ortiga] dizia muitas vezes: “oh rapaz, tem juízo, mas continua”. Também já falei com o D. José Cordeiro sobre todo este trabalho, mas o D. José entrou há dias na diocese de Braga, não tenho ainda à vontade. O D. Jorge já o conhecia, era bispo auxiliar andava eu no seminário. Sou padre desde 1999, praticamente desde que o D. Jorge era arcebispo de Braga, são 20 e tal anos, já me conhece desse tempo.
Quando comecei a fazer estes vídeos, enviava-lhos por WhatsApp, ele ia vendo, às vezes respondia e ria-se, sempre esteve dentro de todo este processo.
O importante na vida do padre é a comunhão com o seu bispo. Claro que alguns padres vão gostar, outros não vão achar piada nenhuma, porque é um estilo que não lhes diz nada, mas o importante é que cada um veja como é que pode levar a mensagem.
Hoje as pessoas andam com o telemóvel na mão o dia todo, antigamente a bateria chegava a durar quase uma semana, hoje são muito poucos os que a bateria dura um dia, quando isso acontece ficamos todos contentes, quem usa as redes sociais.
A Igreja, se está lá, tem de jogar as regras do jogo. Isto é, a Igreja não pode querer estar nas redes sociais da mesma forma que está no jornal diocesano ou na internet, no site, no formato de púlpito.
Claro que, num site, a Igreja publica os conteúdos, e as pessoas leem, partilha quem quiser; num jornal publicam-se os conteúdos; nas redes sociais, é uma rede, se a Igreja está lá só a publicar conteúdos, está a fazer delas um boletim paroquial, não cria relação com quem a segue. As redes sociais são relação, é a relação que se cria ali, também.
Falou do recurso ao humor para apresentar uma figura que é diferente. Um padre alegre ainda é algo estranho, para muita gente?
É estranho. Comecei a ver isso quando cheguei ao TikTok, a quantidade de pessoas que me perguntava: “mas você é mesmo padre?”.
Olhando para a representação dos padres em novelas ou sketches humorísticos, não se está a repetir sempre os mesmos clichés e a passar uma imagem que não é assim tão atual?
A maior parte das pessoas não conhece o padre fora do altar. As pessoas dizem-me muito: “senhor padre, temos de ir às suas missas, devem ser um espetáculo”. E eu digo-lhes: “cuidado, que pode ter uma desilusão”. Sou muito tradicionalista no respeito e no amor à tradição, na Igreja. Fora da igreja, naturalmente no respeito pelos princípios que me norteiam e no que é ser padre, posso rir à vontade, ser alegre, contar uma anedota, embora nem tenha muito jeito.
As pessoas habituam-se a ver o padre sério, na igreja, sisudo, concentrado na homília, na reflexão. Até porque muitas poderão ir à igreja numa cerimónia, num batismo, num funeral… Tirando aquelas pessoas que vão à missa aos domingos, a maioria tem com o padre um contacto pontual, muito formal. É a imagem que acabam por ter.
Os padres devem usar sem medo as redes sociais – e é preciso usar sem medo, com a noção de que vamos fazer muita coisa que não resultará, ou até ficar mal. Mas temos de ter a capacidade de ser os primeiros a analisar o que fizemos para corrigir, evoluir.
Numa altura, a falar com D. Jorge Ortiga, dizia-lhe: “D. Jorge, diga-me, quer que esteja nas redes sociais?”. E ele disse que sim, que queria, mas que visse bem o que ia fazer. “D. Jorge, diga-me um padre que esteja nas redes sociais ou arranje-me um manual para seguir”.
E não há manuais para isso…
Nem há manuais nem há muitos padres, de uma forma mais exposta, nas redes sociais. É um caminho que cada um tem de fazer e, nesse caminho que vou fazendo, há coisas que resultam melhor e outras que não resultam tão bem. Mas se não fizermos o caminho, nunca vamos saber.
Estamos no domingo que antecede o Carnaval. São dias associados ao excesso, habitualmente, mas estão ligados ao início da Quaresma, o tempo de preparação para a Páscoa. Aliás, é por isso que a data é móvel. No imediatismo em que vivemos hoje, deixou de haver esta consciência da ligação entre as duas vivências?
É curioso que, mesmo no meu trabalho como capelão militar no Exército, uma das coisas que fazia eram palestras de âmbito cultural, e nesta altura falava sobre o Carnaval. Muitos ficavam admirados como é que o Carnaval tinha tanto a ver com a Igreja – pode-se comer carne porque depois entramos na Quaresma; o entrudo é o “introitus”, a entrada na Quaresma.
Das palavras que nós usamos para dizer Carnaval, até às máscaras - na Idade Média era feita uma grande festa nos adros das igrejas, onde o povo se mascarava, com medo de represálias, e tinha a liberdade de poder criticar tudo e todos, foi quando surgiram as sátiras. O certo é que a máscara aparece quase como uma proteção, para que houvesse alegria, sátira. A Igreja permitia que isso acontecesse. Depois entrava no tempo da Quaresma, mais de recolhimento, de penitência - que na altura era maior do que hoje - o jejum, a abstinência. Por isso, mais importância tinha esta festa, o Carnaval, para as pessoas se libertarem, porque na nossa vida há espaço para tudo, a alegria, a oração e uma coisa não impede a outra.
Não podemos deixar de falar da sua vertente militar, porque para além de padre é major do Serviço de Assistência Religiosa do Exército, e chegou a ser capelão militar no Kosovo, junto das forças portuguesas da NATO. Como é que vê a escalada de tensão entre a Rússia e a Ucrânia?
Fui capelão no Kosovo e no Afeganistão, com os Comandos. No Kosovo o país estava praticamente em paz e, pouco tempo depois, a força (de manutenção de paz) deixou de estar no terreno, era a reta final do apoio que Portugal estava lá a prestar.
No Afeganistão, o que mais me impressionou foi haver uma espécie de desfile de moda militar: cada país colocava lá o melhor que tinha. Claro que nós não entrávamos nesta equação, mas o certo é que dos EUA à Alemanha, a França… víamos lá carros de combate que nem imaginávamos que existissem!
Era importante que o mundo chegasse ao ponto de não permitir que a indústria do armamento fique nas mãos de civis, porque as empresas precisam de “passerelles” para mostrar o material.
E costuma dizer-se que os militares querem a paz, nunca a guerra…
Sim, disso não tenho qualquer dúvida. Às vezes, as pessoas esquecem-se de que os militares também têm família, têm filhos, o que querem é estar preparados para defender o seu país, preparados para o pior, mas que não aconteça. Isso é sagrado na vida de um militar.
Espero que os interesses económicos não se sobreponham à guerra. O Papa Francisco dizia que os prémios Nobel da Paz estão muito associados à guerra, e a paz deveria ser uma cultura de um país, que vai para além das próprias armas: viver em paz connosco, sem conflitos, sem guerras, seja nas redes sociais ou no nosso dia a dia. Quando falamos em paz, ainda nos esquecemos de tantos pormenores da nossa vida que são conflito permanente. Ainda se cultiva muito a guerra, mesmo fora das armas.
Este conflito na Ucrânia… Espero que a indústria da guerra não fale mais alto do que a importância da paz e da dignidade humana, com toda a miséria que pode resultar de um conflito.
É importante que nós olhemos para as notícias. Às vezes dá-se mais atenção a programas de entretenimento do que a isto, que está a acontecer tão perto de nós. Devia tirar-nos o sono pensar que, de um momento para o outro, milhões de pessoas podem não apenas morrer, mas ficar deslocadas, refugiadas. Temos um drama terrível às nossas portas, e não podemos olhar para estas notícias como se fosse um “reality show”. É grave demais.
Se há uma explosão na Síria, por exemplo, tão depressa se partilha isso nas redes sociais como depois nunca mais se quer saber.
É a questão do tempo e do consumo, nas próprias redes sociais que precisam de ser alimentadas constantemente.
Temos de ter muito cuidado com esta cultura, em que vivemos, do imediato, do descarte. Há dramas a acontecer no mundo que não podem ser descartados.
É importante, como cristãos, que não deixemos de rezar, e rezar muito pela paz, porque estes tempos que vivemos são tremendos e muito duros.
Entrevista gravada antes da Rússia ter lançado a ofensiva militar contra a Ucrânia, na madrugada de 24 de fevereiro