Primeiro fumou um cigarro, depois veio para a entrevista. Mário Zambujal diz que tem 84 anos “e meio” e admite que ainda tem livros para escrever. O autor homenageado este ano do Festival Escritaria, de Penafiel, confessa que escreveu o seu livro de maior sucesso, “Crónica dos Bons Malandros”, para os amigos. Não tinha intenção de ter entre mãos um sucesso que está agora, 40 anos depois, a ser adaptado à televisão. Em entrevista ao “Ensaio Geral” da Renascença, o escritor que foi jornalista critica a morte dos jornais em papel e admite que ainda escreve à mão, com uma resma de papel e caneta.
O Festival Escritaria é lhe dedicado este ano. Como se sente perante esta homenagem?
É uma distinção que sabe bem. Vou estar com gente amiga. Vai correr bem!
A “Crónica dos Bons Malandros" está a ser adaptada a uma série televisiva. O que representa para si?
É uma série baseada no livro, não é exatamente o livro página a página. Tem umas derivações e novidades. Pelo que vi, suponho que vai ser uma série divertida! É uma quadrilha de terceira divisão que vai fazer um assalto à Gulbenkian e depois poderá haver aqui umas novidades, mas é a “Crónica dos Bons Malandros"! Os atores têm muita pinta! E o realizador Jorge Paixão da Costa é ótimo. Estou a ver aquilo com muito bons olhos.
Ao fim de todos estes anos, a “Crónica dos Bons Malandros" continua a ser o seu livro mais lido, apesar de já ter muitos outros publicados.
Contra todas as minhas expetativas e intenções. A “Crónica dos Bons Malandros" é um fenómeno. Tem 40 anos! Tem resistido ao longo das épocas sempre com novas gerações. Continuam a sair reedições, por mais que eu diga que os meus outros livros têm ciúmes de "Crónica dos Bons Malandros". Tenho alguns livros melhores, do ponto de vista literário, mas a “Crónica” é que vai marcar sempre no meu percurso pelos livros. É já um clássico.
Ainda se lembra quando escreveu esse livro, há 40 anos?
Foi uma coisa escrita sem nenhuma intenção, para além de divertir os meus amigos, que era quem eu pensava que seriam os únicos leitores do livro. Depois aquilo começou a crescer e a multiplicar-se o número de leitores e continua a sair e a ser a minha marca de água. Tenho a impressão que outros livros como o "Cafuné", estão mais esmerados e cuidados, e têm maior qualidade na forma e no conteúdo. Mas é a “Crónica” que me marca.
Os seus livros, como este que agora é reeditado, "Uma Noite Não São Dias", têm muito humor fino. O Mário diverte-se a escrever? Ri-se das suas piadas?
Eu escrevo muito seriamente, não me riu das minhas piadas. Sinto quando encontro fórmulas de divertir o leitor ou de o sensibilizar, ou mesmo emocionar. Sinto quando o decorrer da escrita provoca emoções. Mas não tenho nenhuma intenção.
Como é a sua oficina de escrita?
Normalmente, quando escrevo já tenho a história na cabeça e passo ao papel. Eu escrevo como os gajos do século XVIII, à mão, e quando estou a passar para o papel estou a escrever algo que já está construído na minha cabeça. Os livros escrevem-se na cabeça, não se escrevem espontaneamente no computador. Não vou para a frente de uma resma de papel com caneta e digo: “agora vou escrever”. Não. Tenho de saber o que vou escrever. Já construi na cabeça aquilo que vou fazer. É a cabeça que me vai dizendo as palavras.
E acha que o escritor tem idade para se reformar?
Minha menina, eu tenho 84 anos e meio de idade! Espero ainda não ter acabado de escrever. Tenho aí mais qualquer coisa pensada. Mas não penso fazer uma carreira muito longa. Mas espero não ter dado por encerrado o meu percurso de autor.
Sobre o que lhe interessa escrever? Nos seus livros há sempre um olhar sobre os hábitos das pessoas, as relações.
Eu escrevo sobre pessoas. As reações, a mentalidade, os sentimentos e escrevo, sobretudo, aquilo que é o ser humano na sua múltipla forma de se mover no mundo. Isso é inesgotável. Cada ser humano é em si mesmo um universo. Quando se juntam dois e três universos distintos, pode dar-se aquelas situações bizarras que levam às histórias. Inventa-se tudo, mas não se inventam sentimentos. Esses são sempre os mesmos que acompanharam a natureza humana.
Como é que tem vivido estes momentos de pandemia?
É muito aborrecido! Muito aborrecido! Mas do aborrecido ao dramático vai a diferença de quem não lhe aconteceu nada de grave e não viu a sua vida demasiado afetada. É tão chato, a máscara, e isto e aquilo e a distância. Estou nessa fase e espero não a ultrapassar! É uma coisa muito contrária à nossa vida livre, de andar na rua e sentarmo-nos com quem quisermos e falar livremente.
Foi jornalista toda a vida, é presidente do Clube dos Jornalistas. Com a pandemia, os média foram muito afetados. Como vê o futuro da imprensa?
Começou há uns anos uma espécie de pandemia nos jornais que foram as tecnologias que foram liquidando um a um, e poucos vão restar, aqueles instrumentos de conhecimento que eram os jornais. Eu continuo a ter o hábito de comprar jornais. As tecnologias vieram dar um arraso total no velho jornal de papel. Agora há os jornais pelas vias digitais, mas não é a mesma coisa. As tecnologias vieram substituir de forma imperfeita o velho jornal de papel que está a morrer.
E a rádio?
A rádio tem uma enorme vantagem sobre os audiovisuais. Eu sou um grande fã da rádio e é a que menos tem sofrido e há de sofrer nesta avassaladora ofensiva das tecnologias. A rádio só vai beneficiar com as tecnologias. A rádio é a transmissão da voz e do conhecimento através dos nossos sentidos e vai permanecer sempre.
A sua editora, a Clube do Autor, vai agora reeditar o livro "Uma Noite Não São Dias", que vai ser lançado em Penafiel. É um livro que é passado no futuro, em 2044.
É uma paródia sobre o que pode acontecer ao mundo no futuro, em 2044. Vemos as grandes transformações na vida do cidadão comum, no tempo em que quase tudo já começou a ser diferente. Um tipo da minha idade, de 84, já passou por muitas gerações, muitos hábitos e estilos de vida. Eu mantenho alguns hábitos da minha infância, como gostar de rir e de me divertir, mas não deixo de ser imune às transformações. O percurso já longo da minha vida vai-me mostrando que os seres humanos continuam a ser semelhantes. Há excelentes pessoas, há 'melgas', há isto e aquilo, mas o que não muda são os sentimentos.