Antiga deputada socialista, autora da Lei de Bases da Habitação diz que há culpas de quase todos no caso de Odemira: das empresas que contratam os trabalhadores e dos seus intermediários até ao Governo e à autarquia local. Helena Roseta defende que era possível ter planeado uma resposta no plano do Urbanismo para ajudar Odemira a lidar com um volume de migração que se encontra agora no centro de um furacão sanitário no litoral alentejano.
Qual é a sua avaliação sobre a crise desencadeada em Odemira?
Estamos a assistir a uma catástrofe anunciada. Em 2019, quando foi aprovada em Conselho de Ministros uma resolução para colocar os migrantes que trabalham na agricultura em Odemira em contentores com determinadas condições, pronunciei-me publicamente, dizendo que era uma violação à Lei de Bases da Habitação. Os contentores não são uma forma de resolver um problema de habitação de ninguém, a não ser em situação absolutamente transitória.
Entretanto, Odemira tem estado desde 2019 debaixo de uma enorme vaga de imigração. Odemira é um concelho muito grande, teve várias vagas de imigração. Esta é mais recente, quando foram aliviadas regras para a entrada de imigrantes. É uma imigração sobretudo asiática. Os números que tenho visto recentemente na comunicação social e pelo SEF falam em 15 mil imigrantes e os números da Pordata falam em oito mil em situação legalizada. Portanto temos aqui uma população imigrante fortíssima num concelho com 25 mil habitantes. É uma taxa enorme de população de fora, que não fala a língua, que não tem condições de habitação. Isto é um problema evidente que já devia ter sido atacado, muito antes da Covid-19 ter aparecido.
E porque é que isso não aconteceu?
Porque acho que há um pouco a ideia no Governo de que as questões da habitação são para as câmaras. As câmaras que façam as estratégias locais de habitação e os problemas hão de se resolver por si. Não é assim. Agora finalmente no PRR [Plano de Recuperação e Resiliência] vão colocar uma verba elevada e estão à espera que seja aprovada para investir em habitação pública, mas para pagar as estratégias locais de habitação que os municípios estão a fazer.
Há responsabilidades de habitação do Governo, não são só das câmaras. Isso é muito claro na Lei de Bases da Habitação. Aliás, a lei entrou em vigor em 2019 e ainda não foi regulamentada. Passou quase um ano e meio. Há uma data de coisas que não estão a ser resolvidas. Esta fiscalização que está a ser feita agora - e bem - tinha mesmo de ser feita às condições de habitabilidade - que se percebeu não eram aceitáveis para muitos imigrantes em Odemira - é obrigatória em todo o país, nos termos da Lei de Bases.
Parece que as pessoas só dão pelo problema quando ele estoira. Isso eu lamento. Naturalmente agora já está tudo mobilizado, pelo Governo e pelo município. Por várias vezes o município queixou-se de que não tinha meios. E não tem [porque] um município com 25 mil habitantes não tem meios para fazer frente a uma entrada de 15 mil pessoas. Bem sei que não é permanente, é uma população que entra e sai. Mas isso ainda levanta mais problemas. Há responsabilidades das empresas que contratam estes trabalhadores, dos intermediários que os mandam vir, do Governo, da autarquia. Tudo isto já deveria ter sido feito há muito tempo.
Houve muitas denúncias de muitas entidades, houve até posições oficiais da autarquia, movimentos que surgiram, petições na Assembleia da República, audições e há aqui várias questões. A dimensão do problema tornou-se incomportável para a estrutura local porque se deixou avolumar?
O avolumar foi intencional. Quando se autoriza a instalação daquela agricultura intensiva - não é só em Odemira, em todos os locais em Portugal onde tem sido instalada agricultura intensiva -, nos momentos da apanha da colheita, há concentração de migrantes. Mas então estamos de olhos fechados ou quê? Passam a vida a dizer que o país está a envelhecer. Não, o país está a sofrer alterações demográficas, demograficamente há situações locais em que estamos com alterações demográficas explosivas. E isto tem de ser visto no conjunto do país e nos sítios onde isto está a acontecer.
Há alguma desatenção para o que se passa em territórios do interior português, como aconteceu com Pedrogão?
São situações diferentes. Nas outras zonas do interior, temos situações de declínio demográfico e essas também têm problemas. Aqui não estamos com declínio demográfico, mas com uma mudança demográfica explosiva num curto espaço de tempo, uma mudança também cultural. Estas pessoas vêm de países distantes, não falam português, não têm as famílias com elas, não estão enraizados na sociedade portuguesa e é muito difícil uma comunidade do interior português - Odemira é no litoral mas enfim, é uma pequena comunidade - receber de repente uma quantidade tão grande de pessoas de fora, sem ter uma ajuda e sem ter planos preparados. Isto não pode ser assim. O concelho de Odemira fez um excelente plano relacionado com a questão dos migrantes, aprovado no ano passado.
Só que esse plano não teve resultados nas condições concretas de acolhimento e de habitação. Aí é que está a falha. Nem Odemira apresentou a sua estratégia local de habitação, que já o podia ter feito, nem o Governo propôs nada; a única coisa que o Governo fez, antes desta vaga da Covid, foi a resolução dos contentores, o que é um disparate.
São aldeias de contentores espalhados pelo território, com área útil de 13,7 m2 para alojar quatro pessoas em dois beliches.
Quatro pessoas e que pode ir no máximo até 16 pessoas em oito beliches. Os contentores podem ter mais gente mas o problema não é esse. O problema é que a questão dos contentores não é solução.
Há aqui um equívoco muito grande. A proposta aprovada em Conselho de Ministros foi apresentada pelo Ministério do Ambiente. Na altura protestei e agora vem o ministro do Ambiente dizer: "bom, mas é aquilo é uma zona agrícola, não se pode lá construir habitação". Mas esse não é o problema. Então não se pode construir habitação mas enfia-se pessoas em contentores e diz-se que aquilo não é habitação? Isso não resolve o problema. O que é preciso é haver, num concelho tão grande e com uma área geográfica tão enorme e freguesias muito despovoadas, com imensa habitação devoluta e aldeias sem pessoas, onde é possível crescer e construir habitação em condições, porque é que esse trabalho não foi feito? Porque é que não houve um trabalho de planeamento urbano, de proposta de instalação de zonas habitacionais, com características apropriadas a uma população migrante? Nada disso foi feito e, entretanto, foi-se deixando crescer a agricultura intensiva.
E é possível fazer isso agora de emergência?
Do ponto de vista de emergência, o que está a ser feito está bem feito: testar as pessoas, separar os que estão infetados dos que não estão e as pessoas de risco, dar as condições de habitação. Agora, por trás dos problemas de habitabilidade que estão a ser identificados, o que é que vemos? Os imigrantes que nem contentores têm acabam por tentar alugar quartos que estão cada vez mais caros. Estão já na base de 200 euros por cama, a monte, numa casa com não-sei-quantas-pessoas. Tudo isto também é uma exploração dos próprios imigrantes.
São situações inaceitáveis. A questão de fundo é a da explosão demográfica e do acolhimento daquelas pessoas em condições habitacionais decentes.
E aí a tal estratégia pode passar pela recuperação de edifícios devolutos?
Pode passar por isso. Pode passar por construir habitação nova em zonas que possam ter aptidão para isso, mas isso implica planeamento urbanístico, implica plano diretor, uma data de coisas que têm de ser feitas pela autarquia. E, neste caso concreto, porque é uma situação realmente desproporcionada para as capacidades da autarquia, [tem que haver] o apoio do Governo. Não vejo outra maneira. O Governo não pode dizer que é com a autarquia, porque a autarquia não consegue.
Isso exclui a possibilidade dos contentores ou os contentores são um mal necessário?
Os contentores podem ser utilizados para situações muito pontuais, situações de estada de um mês ou dois. Agora, não são soluções para ficar um ano. Muito desta população é flutuante - temos esse problema adicional - que vai de uns lados para os outros.
E também há outro aspeto que tem de ser considerado: quem é que os traz? Como é que eles aparecem? Há empresas intermediárias que recolhem estas pessoas, recebem o dinheiro, metem-nas cá, tratam dos papéis e cobram altissimamente. Esta gente, para poder vir trabalhar em Portugal ganhar 600 euros, tem que despender milhares de euros. A quem? E onde estão esses intermediários? E quem fiscaliza isso?
Todos os sítios onde há exploração de agricultura intensiva, com mão-de-obra migrante, são sítios onde potencialmente isto pode acontecer. Em Odemira a proporção é muito grande; noutros sítios serão proporções mais pequenas, mas isto pode acontecer em vários pontos do país onde há agricultura intensiva, seja na região do Douro, de Torres Vedras, seja noutros sítios.
Em Espanha, este tipo de casos levou a um debate político aceso e com consequências políticas relevantes...
Mas houve já um debate de urgência na Assembleia da República sobre Odemira, em 2019, com uma data de resoluções, a que não foi dado seguimento. Isso já foi feito, a AR já se pronunciou, já chamou, já alertou. Antes da Covid, não aconteceu nada. Temos de ter uma atenção ao que se está a passar neste momento e acudir ao imediato. Como diria Keynes, a longo prazo estamos todos mortos. Acudir ao imediato é urgente, por todas as razões, sanitárias, de direitos humanos, tudo, mas temos de perceber que há aqui questões estruturais.