São às centenas, as pessoas que esperam no grande pátio de entrada da Morgue Municipal da Beira, próxima do Hospital. Lá fora, no parque de estacionamento improvisado no meio de lixo e restos de chapas metálicas – que antes do ciclone Idai cobriam os telhados das redondezas – estão dezenas de viaturas, desde carros de funerárias a carrinhas de caixa aberta, que farão o mesmo serviço.
Debaixo de sol intenso e em grupos organizados em fileiras de bancos que percorrem o perímetro do pátio, muitas mulheres de capulana na cintura e alguns homens de fato, algo sujo e gasto, e de chinelos nos pés. Aguardam pela vez para se despedirem dos seus familiares, alguns deles vitimas das cheias que deixaram grande parte da província de Sofala inundada.
Os corpos estão no interior do edifício, nas salas mortuárias, onde à vez, chegam as famílias para entrarem em pequenas salas com duas portas para a rua. No interior, a meio, o caixão, por onde passam familiares e amigos para um último adeus, respeitando a indicação que uma das portas é de entrada e a outra de saída da sala mortuária. Ouve-se uma ladainha, num dos dialetos locais, que termina quase sempre com um ámen.
De caixão ao ombro, os familiares transportam-no para a carrinha de caixa aberta, colocam a urna a meio, na longitudinal, e sobem, para acompanhar o trajeto até ao cemitério.
Nenhum destes corpos foi autopsiado, apesar de terem passado pela medicina legal. Por falta de condições. “A nossa capacidade é limitada”, admite Virgílio Seia, responsável pela Medicina Legal em Moçambique, que explica que não há muito mais a fazer quando alguém morre na Beira e se sabe o nome de quem morreu.
Quanto à maioria das pessoas que foram recolhidas dos campos agrícolas ou do mato, ou que foram encontrados nas margens do Púngwè ou do Buzi, não têm a mesma sorte. Foram enterradas logo após terem sido encontradas.
Sem autópsia, “porque a maior parte dessas pessoas encontram-se em sítios distantes da cidade da Beira”, onde a capacidade para fazer uma autópsia ordinária é limitada. E sobretudo porque a maioria não é documentada. É quase como se não existisse.
“Sabemos que é um desafio, que parte da população não tenha nenhum registo, principalmente as crianças”. Mas mesmo assim, Virgílio Seis garante que estão a dar o máximo “no sentido de recolhermos algumas características que possam ser armazenadas em algum documento, para que seja usado à posteriori caso alguém venha a reclamar por algum desaparecimento”.
Uma base de dados, inexistente, e sem a qual Maria Cristina de Mendonça, que coordena a Unidade de Intervenção Forense em Catástrofes do Instituto Português de Medicina Legal e chefia um grupo de uma dúzia de especialistas portugueses nesta área, não consegue prestar qualquer auxílio às autoridades moçambicanas.
“Nós utilizamos outro tipo de metodologia, que aqui não é possível aplicar. Não há dados 'ad mortem', há muita dificuldade em haver bases de dados, por exemplo, de impressões digitais”. E por isso tem de utilizar uma metodologia mais simplificada.
Ressalva, contudo, que para além de vítimas locais, poderão existir vitimas estrangeiras, “que parece não ser o caso”. Mas é uma possibilidade que não pode ser excluída.