O diretor artístico do Teatro Nacional São João, no Porto, Nuno Cardoso, justifica a encenação de "Ensaio Sobre a Cegueira" com a possibilidade de expor uma sociedade cega, ao estar "tão encerrada na raiz da sua razão".
"Está toda a gente tão encerrada na raiz da sua razão que cega, e portanto não discute. Só vê quem vê da mesma maneira. Eu já pensava isto há dois ou três anos, portanto foi isto que me levou a escolher o "Ensaio Sobre a Cegueira"", disse hoje aos jornalistas o encenador.
A obra literária de José Saramago foi adaptada para uma versão cénica pela dramaturga catalã Clàudia Cedó e conta com encenação de Nuno Cardoso, numa coprodução bilingue (português e catalão) do Teatro Nacional São João (TNSJ) e do Teatre Nacional de Catalunya (TNC), e estará em cena no teatro portuense entre 10 e 19 de junho.
"A cegueira de que ele [José Saramago] nos fala é a cegueira da razão, a cegueira das pessoas que não enxergam, mas se veem, que não reparam, mas que se aprimoram perante o espelho para saírem bonitas à rua, e daí tudo o que vivemos, tudo o que estamos a viver agora na Europa", considerou.
Afirmando que a obra de Saramago, de 1995, é também "uma parábola sobre o nosso mundo das redes sociais", Nuno Cardoso ilustra esse pensamento observando que "toda a gente que anda a olhar para o telemóvel está cega, está mesmo cega".
Mesmo que o ecrã do telemóvel seja "o sinal da nossa interconectividade", e da possibilidade de dar conta de que "o homem nunca teve paz, está sempre em guerra", como sociedade "não reparamos" nisso.
"Essa mesma possibilidade é a possibilidade também que nos dá um outro espelho, que nos enclausura nesta nossa narrativa que é só nossa, em que nós somos a multidão que nos rodeia, somos uma multidão de nós mesmos", disse o diretor artístico do TNSJ.
"A cegueira do telefone é uma pessoa não se ver, não ver os outros", acrescentou.
Apesar dos possíveis paralelismos entre a obra de Saramago e a pandemia de covid-19, Nuno Cardoso lembrou que a escolha do objeto de trabalho foi feita ainda antes da pandemia, elegendo como a "grande dificuldade" do seu trabalho "verter para uma linguagem teatral, para uma dramaturgia, um texto de raiz narrativa".
A peça desenvolve-se "num jogo, seja de personagens, seja de línguas", que se vão revezando num "trabalho sobretudo coral, no sentido em que estes 14 atores, em duas línguas, são um grupo de pessoas".
"É um trabalho em que os atores não assumem só uma personagem, rodam pelas personagens todas, como a língua roda pelas personagens", explicou, rejeitando qualquer responsabilidade acrescida por encenar o Ensaio Sobre a Cegueira no ano do centenário do nascimento de José Saramago.
"Nem penso nisso", disse hoje aos jornalistas, classificando o seu processo de trabalho como sendo "de pânico e desenrascanço", que foi e está a ser "muito violento".
É a segunda encenação do "Ensaio Sobre a Cegueira" no TNSJ, após a feita pela companhia Teatro O Bando, em 2004.
Após a estreia no Porto, o espetáculo estará no TNC, em Barcelona, de 29 de setembro a 30 de outubro, e voltará a Portugal para exibições no Theatro Circo (Braga, 25 e 26 de novembro), no Teatro Aveirense (3 de dezembro) e novamente no TNSJ, no Porto (9 a 18 de dezembro).