Que desafios Portugal enfrenta? Para responder a esta pergunta em tempo de eleições legislativas, a Renascença fez uma série de entrevistas temáticas, onde se inclui a atual entrevista a Tiago Oliveira, sobre trabalho.
Veja algumas das entrevistas:
- Entrevista a Manuel Tão sobre mobilidade: Aeroporto de Beja "vai ser necessário para complementar" Lisboa e Faro
- Entrevista a Pedro Vaz Patto sobre os riscos destas eleições: Cristãos na política? “É importante que marquem a diferença”
O poder político acordou tarde para o problema da falta de professores, diz o diretor executivo da Associação de Estabelecimentos de Ensino Particular e Cooperativo (AEEP), lamentando que só agora se esteja a falar dele “quando a casa está a arder”. Por isso, Rodrigo Queiroz e Melo defende mudanças estruturais para libertar mais docentes para o ensino. Em entrevista à Renascença - a propósito das legislativas - o também conselheiro de Educação aponta outro desafio: o aumento do número de alunos imigrantes nas escolas que pode fazer crescer os conflitos sociais se os políticos ignorarem medidas que promovam a integração.
Ao mesmo tempo, responsabiliza o Estado pela “segregação social” por não permitir a liberdade de escolha entre ensino público e privado. Questionado sobre os contratos de associação, Rodrigo Queiroz e Melo avisa que o “setor tem memória e o que se passou foi indecente”.
O responsável da AEEP considera ainda que o Ministério da Educação não pode tomar partido por opções que não são aceites por grande parte da sociedade e avisa que abordar temas sensíveis sem falar com os pais é “uma receita para a asneira”.
Queiroz e Melo defende ainda que não é possível haver “um sistema educativo sem nenhum tipo de responsabilização pelos resultados”, por isso, vê com bons olhos o regresso de exames ou provas de aferição no final do 1.º e 2.º ciclo de escolaridade.
Ao nível das propostas eleitorais, têm sido objetivas relativamente à educação no seu todo, ou estão muito centradas na questão dos professores e recuperação do tempo de serviço congelado?
Parece que até ao momento, infelizmente, a grande questão da educação, que tem sido discutida na praça pública, é a recuperação do tempo de serviço pelos professores do ensino público estatal. Não negamos a importância dessa questão, mas essa não é a única e, se calhar, nem é a principal do ponto de vista estrutural do sistema de ensino português.
Acima de tudo, parece haver um consenso e, portanto, seguramente será resolvido. O que era mesmo importante é falarmos das questões estruturais, que são desafios para o sistema de ensino e que se não for feito nada, arriscamos a que esta grande queda nos resultados do PISA continue a acentuar-se ao longo dos anos.
Vamos, então, olhar para uma das grandes questões estruturais: a falta de professores. O que é que é preciso fazer para captar mais pessoas para o sistema de ensino?
É um problema estrutural do nosso sistema e é um bocadinho estranho só agora se estar a falar dele quando a casa está a arder, quando já sabíamos que a casa iria estar a arder nesta altura. A falta de professores deriva do facto de, no final dos anos 1970, 80 e 90, ter havido uma expansão muito rápida e muito grande do sistema de ensino. Foi necessário recrutar dezenas de milhares de professores ao longo dessas décadas. O que sucede é que estamos a fechar os 50 anos do 25 de Abril e estes professores da década de 80 e 90 têm 40 anos de serviço, ou seja, estão a aproximar-se da idade da reforma e é absolutamente previsível que vá haver uma aceleração e vai haver muitas reformas todos os anos.
Em 2023, cerca de 3500 professores aposentaram-se, este ano, só no primeiro trimestre de 2024, já vamos em 1048.
Entretanto, em 2012 licenciaram-se 7214 pessoas na área de educação, enquanto em 2022 foram 3800 pessoas. Se hoje já temos falta de recrutamento em alguns grupos disciplinares e muitos alunos sem aulas, no futuro isto vai agravar-se, porque não estamos a repor as gerações.
O que tem de ser feito?
O que nos parece é que os partidos políticos deviam apresentar propostas de duas naturezas diferentes: por um lado, como atrair pessoas para a carreira docente. Parece-nos que é necessário, mas não é a única solução.
A segunda questão, seria, não só criar outra lógica profissional, mas pensarmos sobre o sistema de ensino. Se calhar podemos ser muito mais eficientes, as crianças podem aprender mais, e, se calhar, não precisamos de uma força de trabalho tão grande.
Isso passava por reestruturar o processo de ensino?
Parece-nos que sim. Em primeiro lugar, era altura de olharmos definitivamente para esta questão do segundo ciclo. Portugal é o único país do mundo, de acordo com todos os estudos que conhecemos, com o quinto e sexto ano, separados do terceiro e do primeiro ciclo. Na generalidade dos nossos parceiros europeus, o que temos é um primeiro ciclo de seis anos. O que é que isso significa? Acima de tudo, que o quinto e o sexto ano podem ter menor expressão curricular.
Pode concretizar?
Podemos ter grandes áreas: área de ciências sociais, área de ciências da natureza, área de artes. Isto tem logo um impacto imediato, porque em vez de precisar de dez professores, posso ter menos professores por turma.
De sublinhar que um dos grandes problemas do sistema, e que afasta as pessoas da profissão, é que destes milhares de professores que o Estado recruta todos os anos, a muitos está a oferecer horários incompletos, que não pagam quase nada, e ninguém vai trabalhar para o Algarve para ganhar 300 ou 400 euros. Enquanto se forem para um horário completo, as pessoas já estão disponíveis para mudar a sua vida, por isso, parece-nos que a questão do segundo ciclo é muito importante.
Depois há um segundo ponto, que ajudava a libertar professores para se focarem mais naquilo em que são insubstituíveis, que é a integração de tecnologias na educação. Há um grande número de tarefas, como por exemplo: tudo o que é exposição de matéria e tudo o que é produção de instrumentos de avaliação, que estão a ser feitas por professores.
Portanto, a questão da integração da tecnologia devia estar a ser falada ao nível da política educativa nos programas eleitorais.
A reestruturação do ensino, pode também passar por mexidas nos currículos? Temos aulas muito expositivas, muito teóricas, considera que há margem para mudar, até para tentar captar mais a atenção dos alunos?
Ao nível dos currículos formais que temos, claramente há espaço para melhoria. Percebemos que os partidos políticos sejam menos claros em tratar este tema, porque cada vez que se fala do currículo começam as pessoas a fazer contas de cabeça sobre o número de aulas ou horas letivas para cada grupo disciplinar, mas não é razoável pensar que os jovens entre os 12 e os 17 anos são capazes de estar cinco horas por dia em trabalho intelectual, sentados na sala, a ouvir e a resolver exercícios.
Apesar de toda a modernidade e de muitas escolas e professores estarem a fazer um grande esforço, tipicamente o que se passa na generalidade das escolas, é o professor a falar, os alunos a ouvir, a escrever no caderno e a resolver exercícios. Portanto, o que sucede na prática é que muitas destas horas são desperdiçadas. Parece-nos, por isso, que há espaço para termos menos horas letivas, mas isso não significa menos tempo de escola, porque podemos ter mais horas de expressões artísticas, de desporto e de estudo acompanhado ou estudo individual.
Tendo em conta a falta de professores, consegue-se perceber a resistência que existe em contratar pessoas de várias áreas, que possam trazer para a escola outras vivências, mas que não tenham formação na área pedagógica? No seu entender porque é que existe esta resistência? Isto poderia ou não ser olhado como uma mais-valia para a escola?
Por razões históricas tivemos muitas pessoas pouco qualificadas, que vieram para a escola nos anos 80 e 90, porque não tínhamos licenciados. Todo o sistema foi criado em cima de baixas qualificações, por isso, foi preciso arranjar um currículo nacional com um Ministério da Educação muito intrusivo, que dava as instruções.
Felizmente o país evoluiu muito e agora praticamente todos os professores são licenciados e profissionalizados, mas ficou um trauma do passado. Cada vez que se fala em trazer outros talentos para a escola, que não fizeram a formação inicial de professores, há uma grande “nervoseira”. O certo é que antigamente grandes escritores eram professores de liceu. Ora, desses grandes escritores, nenhum deles tinha formação inicial de professores. Eram bons intelectualmente e, portanto, o nosso argumento continua a ser: é importante haver pessoas que adquiriram o saber próprio da profissão na formação inicial, mas também é importante e rico para a escola ter, na equipa educativa, pessoas que adquiriram o saber próprio da profissão docente no exercício e com os seus colegas.
Parece-nos que há aqui uma oportunidade grande. Não é para baixar o nível de exigência da escola é, pelo contrário, para trazer gente diferente para as escolas, com outras maneiras de pensar.
Por exemplo?
Neste momento é mais fácil ingressar num curso inicial de formação de professores do que em muitos outros cursos.
Quando me dizem que alguém que entrou para a formação inicial, muitas vezes com negativa a matemática, é mais competente como professor de matemática do que uma pessoa que fez um curso de matemática e que teve de ter boas notas para poder ingressar nesse curso... Vamos lá ver, estamos a brincar!
A falta de professores pode ser que ajude a ultrapassar esta questão, porque com a formação continua é muito fácil formar estas pessoas.
Para isso ser possível, não seria necessário ultrapassar a barreira dos sindicatos?
Eu acredito que 50 anos depois do 25 de Abril, Portugal é um país livre. Penso que haverá um governo adulto capaz de agir, aliás, ao longo do tempo já tivemos muitos exemplos de questões importantes no ensino que foram ultrapassadas e nem sempre com o acordo das forças sindicais, que têm o seu papel e são muito importantes, mas que não podem determinar a educação em Portugal.
Os sindicatos existem para defender os direitos dos trabalhadores, não existem para discutir a política educativa.
De alguma forma condicionam as políticas educativas, nomeadamente quando defendem um sistema centralizado de colocação de professores. Falou num governo adulto que já deveria ser capaz de agir. Um governo que entrasse em funções depois das eleições de 10 de março deveria mexer nesta questão para dar mais autonomia às escolas?
Sabe que o concurso centralizado de professores tem dois grandes defensores e que são forças muito diferentes, mas muito poderosas.
Por um lado, não há dúvida que um sistema centralizado de contratação facilita muito a vida às forças sindicais, na medida em que eles são os guardiões do acesso entre o empregado e o empregador.
Por outro lado, para o Ministério das Finanças, este concurso é bestial, porque o Ministério das Finanças só está preocupado em não gastar mais um cêntimo do que aquilo que tem de gastar. Não está muito preocupado com a qualidade do serviço educativo. Aliás, se houvesse um grande problema ao nível dos pagamentos, bastava não abrir concurso ou retirar vagas e poupava-se dinheiro.
Este sistema é único na Europa, o que nos deveria levar a pensar: como é que um sistema de colocação feito por um algoritmo centralizado, pode colocar professores que se identifiquem com um determinado projeto educativo?
É muito difícil gerir uma organização onde se pede que se faça inovação, que se comece a ensinar de forma diferente e que tem de lidar com novos públicos, nestas condições.
Por exemplo, os imigrantes em Portugal são atualmente um número não desprezível de alunos nas nossas escolas. Como se lida com isto? Isso precisa de muito trabalho interno, de concertação, de criar regras, de seguir essas regras.
Quando as pessoas andam a saltar de um lado para o outro, colocadas por um algoritmo, é evidente que é muito difícil criar uma verdadeira cultura de escola. Atrevo-me a dizer que esta é também uma das razões que leva à falta de professores. Nenhum jovem com 18 ou 19 anos, que está a decidir o seu futuro profissional, quer uma profissão onde é colocado por concurso, por um algoritmo absolutamente absurdo, que junta anos de serviço e a nota da formação inicial.
Falou sobre a questão dos alunos imigrantes. Nos anos mais recentes estamos a assistir a uma grande entrada de alunos, não só provenientes de classe média/baixa, mas também da classe média/alta. Que tipo de desafios é que isto coloca à educação no nosso país?
É verdade que há aí um desafio. Sempre houve migrantes, mas tipicamente eram migrantes de língua oficial portuguesa, que têm a mesma língua, que têm a mesma religião e que tem muitos hábitos semelhantes.
A parecença cultural, digamos assim, levantava desafios, mas nada que se compare com os desafios de hoje nas escolas estatais, que recebem alunos com outra religião, com outra língua, alunos que nunca cantaram em português, que nunca ouviram o português. Há aqui um desafio muito grande de integração. É um desafio a que os partidos políticos deveriam estar atentos e pronunciar-se nos seus programas eleitorais, porque se não tivermos modos nem instrumentos para tentar integrar convenientemente estas crianças no sistema educativo, estamos daqui a uma década com um país a ter questões sociais, de conflito e de exclusão, que vemos acontecer em muitos dos nossos parceiros da Europa. Há uma necessidade absoluta dos partidos se pronunciarem sobre esta questão e darem as suas propostas.
Outra das novidades da situação atual é que isto não é apenas um problema de escolas públicas estatais com alunos oriundos de classes sociais bastante desfavorecidas, isto é uma questão que se coloca também no ensino particular e cooperativo. Há muitíssimos alunos de outras nacionalidades, na generalidade dos colégios.
Isto traz questões relevantes, por exemplo, a língua portuguesa: quando estou a classificar provas, o que é que eu aceito ou não aceito como sendo erro gramatical ou erro de sintaxe ou erro de português? Uma coisa é o português de Portugal, outra coisa é o português de outros países e outra coisa ainda é o que eu posso exigir a um aluno de um país eslavo, que está a aprender português.
Só para dar aqui algo que me parece bastante expressivo: no ano letivo passado houve um colégio, que quando abriu as pré-inscrições, 80% dos candidatos ainda não viviam em Portugal. Portanto, há uma vaga muito grande de pessoas a procurar Portugal como refúgio de paz, de bom tempo e cada vez mais também de capacidade de criar riqueza à distância.
Como é que pode ser feito o acompanhamento destes alunos imigrantes, se há falta de professores e os professores de português de língua não materna não são uma exceção?
Há poucos dias tivemos conhecimento que, na Universidade de Coimbra, um dos problemas é exatamente a falta de formadores ou de académicos, que têm a sua carreira associada ao português de língua não materna. Se nós precisamos de cinco anos para formar um professor, vamos precisar de 15 ou 20 anos para formar um professor de professores.
Não sei bem quais são os incentivos que o Ministério do Ensino Superior e Ciência pode encontrar, mas espero que as faculdades, estejam a pensar como podem acorrer a esta necessidade do país.
Relativamente à questão do ensino privado, e já que falou sobre os colégios, as famílias deveriam ter a possibilidade de escolha, independentemente da capacidade financeira?
É um fenómeno que temos acompanhado. Se, por um lado, enquanto pessoas responsáveis pelo setor do ensino particular e cooperativo, estamos contentes por o setor estar a crescer, por outro lado, enquanto pessoas da educação e preocupados com a inclusão social, cria-nos preocupação.
De forma sustentada ao longo dos anos, o particular e cooperativo representa uma percentagem cada vez maior dos alunos no sistema.
Temos imensas situações onde a mensalidade do colégio é paga pelos avós ou é paga pelos avós juntamente com os pais ou ainda pelos tios, portanto, há uma mobilização de muitas pessoas, com muita dificuldade, para poder pagar a mensalidade e, assim, ter os filhos no colégio, porque procuram estabilidade.
Isso não é bom para Portugal. Neste momento somos 20% do sistema e, para que as pessoas percebam, o país da Europa que está mais próximo disso é o Luxemburgo, onde 11% dos alunos frequentam o particular e cooperativo, pagando. Mas há países da Europa onde ele tem uma expressão muito maior, como a Suécia, a Bélgica, a própria França - no particular e cooperativo católico -, a Holanda. Nestes países, o que sucede é que os pais não têm de pagar a educação dos filhos. Há mecanismos de financiamento através dos quais o Estado suporta a opção educativa das famílias.
Nesta pré-campanha eleitoral já ouvimos falar sobre a questão dos contratos de associação, com o PSD a defender um aumento do número de contratos de associação.
Estamos todos de acordo que a escolaridade obrigatória tem de ser gratuita. Já sabemos que o Estado tem de ter este encargo. Agora o que não é muito claro é porque é que esse encargo tem de ser gasto numa escola oferecida pelo Estado e não pode ser também, se a família assim quiser, numa escola oferecida por outras entidades. Há aqui para nós um problema de escolha porque quem pode está a escolher, somos 20%. Só os que não podem é que não estão a escolher e isto está a criar uma segregação social e uma perpetuação de níveis de exclusão, que apenas é imputável ao Estado português.
Para nós, nesta matéria, era muito importante que o próximo governo tivesse políticas inclusivas e não divisíveis.
Vemos positivamente que alguns partidos apresentem propostas para mitigar um bocadinho esta situação, mas o setor tem memória e, por isso, aquilo que se passou há dois governos foi absolutamente indecente. Destruiu-se valor educativo, obrigando as famílias com menos recursos a ir para escolas que não queriam e que estavam vazias.
Estas políticas inclusivas e não divisíveis têm de ser sólidas e também é preciso que sejam sustentáveis a longo prazo. Um projeto educativo não é feito para, na próxima roda da tombola política, se deitar fora. O que nós temos dito é: o privado não precisa do Estado, mas o país precisa de todos. O privado está a crescer, não precisa do Estado, mas num momento de grande dificuldade, o país precisa de todos.
Aliás, se por alguma razão acabassem com o ensino particular e cooperativo, o que é que acontecia a 20% dos alunos? Se já não há professores suficientes no setor público para os alunos que tem, quanto mais ter de suportar mais 20%.
Parece-nos indecente os alunos do privado estarem fora da possibilidade de ter um computador, quando todos eles, ricos e pobres, estão a receber no público e parece-nos indecente as famílias do privado não terem apoios para os manuais escolares, quando no público, ricos e pobres, estão a receber manuais escolares.
A possibilidade de as famílias poderem escolher entre o público e o privado poderia passar através do cheque ensino?
Há muitas soluções que nos parecem possíveis e instrumentos fáceis de usar. A solução que veríamos mais viável e mais interessante era, por um lado, uma dedução fiscal relevante e específica para quem, pagando a mensalidade, também paga impostos, portanto, deveria ter no IRS, uma dedução dos montantes que paga na educação dentro da escolaridade obrigatória.
Por outro lado, para as famílias que não têm rendimento suficiente para pagar impostos, fazia sentido associar ao abono de família, um voucher escolar que lhes permitisse suportar a mensalidade.
Gostávamos muito que pudesse haver uma maior consciência nacional de que o país precisa de todos e de que faz sentido o privado ser mais heterogéneo na composição social dos seus alunos.
Há um argumento nesta questão do público/privado que está sempre a surgir e que nos parece bastante insidioso: o privado é muito elitista e, portanto, não faz sentido. Peço desculpa: o privado é muito elitista porque o Estado não apoia as famílias. Ao final do mês, nós precisamos de dinheiro para pagar aos professores, eles não aceitam santinhos e, portanto, se houver financiamento estatal, o privado pode ser menos elitista.
Temos colégios que têm sistemas de bolsas fortíssimos. Há um grande colégio, na região norte, que já está a gastar um milhão de euros anuais e onde 10% dos alunos são bolseiros, ou seja, há um esforço grande no setor para chegar a um público mais diversificado. Parece-nos que é chegado o momento de o Estado também fazer parte desse esforço.
Isto leva-me a outra questão relacionada com o papel da família na educação das crianças e dos jovens e na sua relação com a disciplina de Cidadania. Até que ponto se justifica esta disciplina, que tem gerado alguma contestação?
A disciplina de Cidadania faz todo o sentido por duas ordens de razão. A primeira é que há, pelo menos, um espaço no currículo de total autonomia e liberdade das escolas. Faz todo o sentido.
Em segundo lugar, o modo como está concebida na lei em Portugal, parece-nos razoável. A lei, o que estabelece, é que há esta disciplina de Cidadania, que deve abordar determinados tópicos, que são relevantes, como por exemplo, a questão dos imigrantes. Num país que tem cada vez mais imigração, é importante haver uma disciplina onde são abordados os princípios gerais e os valores que regem a nossa vida em sociedade.
O que está errado e onde tem havido alguma contestação que compreendemos e acompanhamos? É que depois deste enquadramento legal geral, o Ministério da Educação não deve e não pode tomar partidos em opções de valores, de propostas, que não são aceites por grande parte da sociedade.
Aí é que entram materiais que estão disponíveis na página do Ministério da Educação e que nos parecem abusivos na medida em que o Estado não pode entrar no conteúdo de questões que são sensíveis.
Nós cumprimos a lei, não somos obrigados a cumprir os manuais do Ministério e abordamos todos aqueles temas segundo a cosmovisão de cada um dos nossos projetos educativos.
Parece-nos que abordar temas sensíveis de moralidade sexual, de religião, de identidade, fora de um contexto bem conversado com os pais, bem pensado, é uma receita para a asneira, que não faz nenhum sentido. Na verdade, quer gostem, quer não gostem, educar as suas crianças, é um direito fundamental da família.
O Estado não se apoderou dos nossos filhos para lhes ensinar o que entender. Aliás, a Constituição proíbe que o Estado determine a educação segundo princípios filosóficos ou religiosos. Portanto, aqui é muito importante o papel das escolas, dos professores e da liberdade de escolha da escola, porque este problema, na verdade, não se coloca no privado, porque as pessoas quando escolhem uma escola privada, já sabem ao que vão.
Portanto, essa questão da liberdade é importante e a disciplina de Cidadania tem de se manter, enquanto obrigatória, naquilo que são os valores partilhados da sociedade portuguesa.
Com capacidade de se adaptar ao contexto e de respeito pela família?
De respeitar os pais! Parece-nos que esta questão, que foi muito pública com uma família do Norte e o conflito com o Ministério da Educação, se por um lado nos parece exagerado não querer a disciplina de Cidadania, não temos argumento legal para tal, por outro lado, parece-nos absolutamente exagerada a posição do Estado de se impor a uma família absolutamente integrada.
O que nos preocupa sempre é o respeito do Estado pelos indivíduos, pela liberdade individual e pela primazia da família. Penso que em Portugal, apesar de tudo, ainda há esta ideia de que pobre não escolhe. Não é verdade! Não pode ser verdade. Parece-me que é uma postura de atentado aos direitos humanos. Enfim, é rebaixar as pessoas e do ponto de vista do respeito humano, é uma coisa bastante inaceitável, mas são resquícios ideológicos muito profundos e temos pena quando o Ministério da Educação se torna muito ideológico. Esperemos poder continuar a trabalhar com calma na educação e nos verdadeiros problemas do sistema.
Isto leva-nos à questão da autodeterminação da identidade de género. Foi na reta final da legislatura que se aprovou as adaptações nas escolas sem ouvir as partes interessadas. Como olhou para este facto?
Esta é uma questão que uniu pais, professores, diretores do público e do privado. Todo o sistema educativo se uniu e foi a Belém para mostrar a sua preocupação ao senhor Presidente da República.
Os responsáveis das escolas são pessoas a quem, ou reconhecemos a competência e a capacidade de gerir uma escola, ou, se não reconhecemos, temos de os substituir rapidamente e esta questão da identidade de género é uma questão muito sintomática do que é o excesso de ação política na escola.
Há crianças em sofrimento, há famílias em sofrimento, há escolas que têm sabido lidar com esta questão e há ótimos exemplos em todo o país, no público, no privado e de acordo com as necessidades e a vontade destas crianças e destas famílias.
Estamos a falar de questões sensíveis e torná-las em bandeira política e vir arvorar numa necessidade de uma intervenção do Estado central ou do Parlamento, é um absurdo.
Fragiliza estas pessoas, expõe-nas de uma forma absolutamente brutal e não resolve problema nenhum!
A AEEP, com a Confederação das Associações de Professores de Educação Física, e com a Confederação Nacional das Associações de Pais (CONFAP) foi dizer a Belém que não é possível o Parlamento lidar com matérias tão sensíveis, sem ouvir os pais, as escolas e os professores.
Ainda por cima uma matéria que não pode ser resolvida por atacado. Era uma lei que abria tudo, seja para quem tem dez anos, seja para quem tem 12.
Ninguém deste grupo nega um problema real, de pessoas concretas, mas isso é algo a ser resolvido localmente. Não é para o Estado intervir e dizer como é que vamos fazer.
Não faz sentido, por isso, legislar para uma maioria quando é uma minoria que se debate com esse tipo de questão?
Não faz sentido, absolutamente, nenhum. A questão do desconforto que uma criança, com problemas de identidade, pode sentir num espaço da escola é um problema que só pode ser resolvido por essa escola. Estamos a falar de uma criança num universo de milhares de crianças. É um problema específico de pessoas concretas que só pode ser resolvido pela escola. Nós temos imensos exemplos de como estas situações estão a ser resolvidas. Tive imensos colégios que me telefonaram a dizer que têm o problema resolvido e também pais que não queriam que a sua criança fosse o centro da atenção da escola, quando tudo estava a correr tão bem.
Houve aqui claramente um excesso eleitoral e um excesso de procura de adesões políticas, que nos pareceu bastante errado, porque cria pressões políticas e ideológicas no sistema, que neste momento, o sistema dispensa bem.
Falemos agora da transição digital, quer ao nível das avaliações externas, quer ao nível dos manuais escolares. Isto tem pernas para andar?
Nesta matéria o que mais nos preocupa é que o governo ou o parlamento venha a legislar. No particular e cooperativo, temos neste momento muitos estabelecimentos de ensino que estão muitíssimo digitalizados, significando isto que os alunos têm dispositivos nas aulas e muita tecnologia integrada.
Temos outros estabelecimentos de ensino que não querem nem ouvir falar em tecnologia, porque entendem que a tecnologia deve entrar muito mais tarde no processo. Aqui o primeiro ciclo, o segundo ciclo, o terceiro ciclo e o secundário são mundos completamente diferentes. O que é que é o entendimento comum?
Não faz sentido os alunos passarem por toda a escolaridade sem acesso à tecnologia, porque a tecnologia pode-nos ajudar com muitas tarefas desnecessárias e porque nos dá acesso a imensa informação. Todos os pais vão ao caderno do filho ver quais são os trabalhos de casa ou quais são as datas dos testes, mas com a tecnologia tudo é muito mais fácil e acessível.
Temos muito medo de que o Estado venha a tomar grandes decisões sobre tecnologia. No setor privado, queremos crer que vai prevalecer o bom senso e o Estado não se vai meter. No setor público assistimos com alguma estupefação, ao gasto de largos milhões de euros em computadores e há escolas onde eles existem, escolas onde eles já não existem, há escolas onde não funcionam e, portanto, esta política muito centralizada que ainda vigora em Portugal, parece-nos um desperdício de recursos indecente.
E quanto à avaliação em suporte eletrónico?
Não nos conseguimos pronunciar sobre a questão, que tem sido muito discutida relativamente ao segundo ano de escolaridade: se os alunos são ou não demasiado novos para fazer em suporte informático.
De resto, a avaliação externa eletrónica de alunos, através do Instituto de Avaliação Educativa (IAVE), tem vantagens muitíssimo grandes, seja ao nível da classificação ou ao nível da leitura dos resultados. Parece-nos que este é um passo que já não deve voltar para trás. Isso também não significa que passemos a ter uma escola sem livros.
Em Portugal temos um bocadinho esta dificuldade em aceitar a mudança e quando se fala em mudança arranjamos logo questões catastróficas: agora os meninos não vão saber ler nem escrever porque é tudo nos computadores. Não é verdade! Mesmo nas escolas privadas, que estão mais baseadas em tecnologia, há livros e os alunos escrevem e leem.
Já agora, relativamente à avaliação externa, defende o regresso dos exames no final de ciclo?
Isso parece-nos absolutamente fundamental. Para nós, AEEP, no 9º ano do ensino básico, deve haver exames de português e de matemática. Já quanto ao final do primeiro e segundo ciclo, ser prova de aferição ou exame não é para nós muito importante, mas é importante que seja no final do ciclo.
O que é que sucede com os exames? Na verdade, os governos anteriores olhavam para as provas de aferição como algo, mesmo, só para a aferição. Tomem lá a informação e agora recuperem os meninos, mas toda a evidência e relatórios da OCDE mostram que os sistemas educativos com melhores resultados têm avaliação externa, em finais de ciclo. Portanto, parece-nos fundamental no final do quarto ano de escolaridade haver uma prova externa que dê um resultado que seja comparável. Porquê? Porque, como dizia um ex-ministro da educação do PSD, no silêncio somos todos iguais. Na verdade, é muito importante que os pais possam ver, no final do quarto ano, porque é nesta escola a generalidade dos meninos não aprendeu a ler nem a escrever e na escola do lado, aprendeu.
Não é possível haver um sistema educativo, sem nenhum tipo de responsabilização pelos resultados. Portanto, para nós, provas externas no final de ciclo, que deem um resultado qualitativo, mas também quantitativo, é absolutamente fundamental. Mesmo para os nossos colégios é muito importante termos um comparador externo.
Isso leva-nos aos rankings.
Os rankings não são o alfa e o ómega de um sistema educativo, mas os rankings são um instrumento que obriga as pessoas a pensar o que estão a fazer e cria incentivos corretos.
Os argumentos que se utilizam geralmente contra os rankings batem sempre na questão do público e do privado, mas ninguém está à espera de ver uma escola de Territórios Educativos de Intervenção Prioritária (TEIP) nos primeiros dez lugares, mas toda a gente está à espera que uma escola TEIP não seja a última do país.
Apesar de tanta gente dizer tão mal dos rankings, não conheço ninguém que não olhe para eles e, acima de tudo, a maior parte das pessoas toma decisões com base neles.
Os rankings deixarão de ter relevo no dia em que encontrarmos outro sistema de responsabilização, mas enquanto não tivermos outros sistemas de responsabilização, os rankings são como a democracia: são um péssimo sistema, mas são o melhor sistema que temos.
O Estado e as escolas têm de ser transparentes sobre o que se está a passar e quando se acabam com as provas externas e se, por absurdo, se proibissem os rankings, iriamos ter a degradação do serviço educativo, isso é absolutamente evidente.
Uma última questão: os telemóveis. O ministro da Educação pediu um parecer ao Conselho das Escolas, que disse que a sua utilização ou não, cabia à autonomia das escolas. Depois deste parecer, o ministro já deveria ter vindo falar?
Esteve muito bem o ministro João Costa. Isso é uma decisão pedagógica. O senhor ministro pediu um parecer ao Conselho das Escolas, que disse que é da nossa autonomia. Aliás muito ganharíamos todos, se a posição dos governos fosse: só vou fazer coisas quando o Conselho das Escolas pedir!