A presidente do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida, Maria do Céu Patrão Neves, alerta para a necessidade de estarmos preparados para novas situações de emergência sanitária.
Em entrevista à Renascença, por ocasião da 13ª cimeira mundial dos conselhos nacionais de ética, que decorre até sábado, dia 17, na Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa, a professora catedrática caracteriza a resistência crescente aos antibióticos como uma bomba-relógio e considera que “os pareceres dos diferentes conselhos nacionais de ética não foram tidos em conta na gestão da pandemia”.
Portugal recebe a 13.ª Cimeira Global dos Conselhos Nacionais de Ética. Quais são as questões mais prementes em discussão, neste momento, na disciplina?
Estamos a sair de uma pandemia em que claramente os conselhos nacionais de ética foram chamados a intervir. É interessante verificar que, no contexto global, em abril de 2020, grande parte dos conselhos nacionais de ética já tinha tomado posições, elaborado recomendações, sobre a melhor forma de gerir a pandemia em função dos direitos humanos, da dignidade das pessoas e da justiça social. Os conselhos nacionais de ética estavam atentos à gravidade da situação, e reconheciam claramente que a ética é um fator importante na gestão, sobretudo na gestão de crises. Quanto mais grave é a crise, mais importante é que haja procedimentos associados a essa gestão da crise. Da parte dos Conselhos Nacionais de Ética havia essa consciência e o trabalho foi feito. Aquilo que, entretanto, é a experiência de quem faz parte de comissões de ética é que este trabalho não foi tomado em devida consideração. Por isso verificamos que a gestão da pandemia, mais até a nível nacional, mas também a nível internacional, não tomou em devida conta os pareceres que foram emitidos em tempo oportuno. Ora, este aspeto é para nós por demais importante. Agora que estamos a sair da pandemia, há um coro de vozes muito mais alargado a dizer que era importante ter tomado em consideração requisitos éticos, desde o início.
Em que temas em particular?
Talvez o mais grave de todos seja a própria seleção de pacientes, a priorização de pacientes quando há uma afluência muito grande, e num tempo muito curto, às unidades de cuidados de saúde. Como é que se faz essa seleção? Temos exemplos de Itália, de Espanha, em que houve eliminação tácita de pessoas que tinham determinada idade. Quando não havia possibilidade para atender todas as pessoas de 80 anos, não seriam atendidos. Depois as de 75 e assim sucessivamente. Ora, nós nos conselhos nacionais só podemos achar absolutamente surpreendente e contracorrente daquilo que são os valores que partilhamos em sociedade, porque, em primeiro lugar, estamos a avaliar cada uma das pessoas a partir de uma característica, a idade. Desde há muito, felizmente, deixámos de admitir classificar as pessoas a partir da cor da pele, da religião, do género, da orientação sexual. Não admitimos que as pessoas sejam discriminadas em função de características físicas ou opções pessoais, mas desta vez admitimos que fossem excluídas, a partir de uma característica pessoal inevitável e não controlável que é a própria idade. Percebemos facilmente que isto vai contra a dignidade humana. Como é que deixámos que acontecesse? Como? Este é um dos exemplos flagrantes que mostra como seria importante ter tomado em linha de conta aquilo que eram as orientações éticas em relação à pandemia em geral e, já agora, em relação a esta matéria em particular. Não houve nenhum conselho nacional de ética a nível mundial que fosse favorável a este tipo de discriminação. Bem pelo contrário, referiram-se sempre contra, propondo outras formas de priorização de pacientes.
O tema desta cimeira é Health Justice: Health Care 4 All (Justiça na Saúde: cuidados de saúde para todos). Depois da pandemia que acentuou as desigualdades sociais, ainda é possível falar em justiça na saúde?
Mais do que nunca temos que falar sobre justiça em saúde. Em primeiro lugar, na compreensão que a saúde é não apenas um valor em si mesmo a que todos nós aspiramos, mas é também a base necessária, indispensável para a realização de outros valores. Todos temos a experiência de estarmos doentes e de nos sentimos incapacitados para a realização da vida pessoal, da vida de relação, da vida coletiva. Por isso, a saúde é uma condição básica para a realização pessoal e para a nossa intervenção na sociedade. É absolutamente fundamental. Depois de uma pandemia em que identificámos muitas desigualdades, é a altura certa para que, uma vez feito o diagnóstico, estabelecermos uma nova terapêutica, ou seja, [adotarmos] medidas adequadas para a implementação da justiça. Isto porque as situações de emergência sanitária lamentavelmente não vão ficar por aqui. Continuamos a ter a clara consciência que outros vírus podem surgir.
Pode explicar melhor?
Hoje em dia, 60% das doenças com potencial epidémico ou pandêmico são de natureza zoonótica [de origem animal, geralmente transmissível ao ser humano]. Temos uma questão que ficou mais esquecida com o SARS-COV-2, que tem a ver com as bactérias e a falência de algumas terapêuticas, de alguns antibióticos para combater essas mesmas bactérias. Por isso, temos aqui, e não quero causar qualquer alarme, mas sobretudo chamar a atenção para a necessidade de enfrentarmos as questões, uma bomba-relógio. Assistimos a uma resistência crescente aos antibióticos e isso pode gerar problemas também de emergência sanitária. Por isso, hoje em dia, os especialistas entendem que a questão não é se haverá novas emergências sanitárias, mas quando é que [estas situações] vão acontecer e qual a causa. Se não as pudermos prevenir totalmente que, pelo menos, nos preparemos.
Considera que estamos hoje mais bem preparados por comparação ao período que antecedeu a Covid-19?
Estamos mais alerta. Agora, sabemos que o ser humano tem tendência para suspirar de alívio, agora que a Organização Mundial de Saúde diz que estamos no fim da pandemia. Suspiramos de alívio. Ficamos muito satisfeitos e retomamos a vida habitual. É um erro e, por isso, é importante que sobretudo quem tem mais responsabilidades desenvolva as medidas necessárias, e atrevo-me a dizer e a sublinhar – urgentes – para nos prepararmos. Neste momento em que estamos a sair da pandemia, a única vantagem que podemos tirar é prepararmo-nos para outra situação de emergência sanitária, não esquecendo que a crise sanitária originou uma crise social e económica. E também aqui há que tirar lições.
Uma questão ainda sobre justiça na saúde, justamente o tema desta cimeira mundial. Como é que olha para a saúde em Portugal, e para as dificuldades que o serviço nacional de saúde enfrenta, com a falta de médicos, encerramento de urgências, etc.?
É evidente que se não tivermos um Serviço Nacional de Saúde que dê resposta adequada e proporcional às necessidades de saúde dos cidadãos, não temos justiça na saúde. Há um aspeto positivo: todos concordam que precisamos de um sistema nacional de saúde forte. Como lá chegar? É preciso chamar os melhores técnicos para pensar a saúde. Não estou a falar em criar mais um organismo, mais um grupo de trabalho, mais uma equipa para apresentar trabalho, conclusões, daqui a largos meses. Não é disso que estou a falar, porque isso significa um bocadinho empurrar os problemas para a frente, em vez de os enfrentar de imediato. Os profissionais de saúde, mas também os cidadãos em geral que recorrem ao serviço nacional de saúde, têm a clara consciência de que este se tem vindo a deteriorar. É preciso perceber como é que isso acontece.
Que diagnóstico faz?
Diria que é sobretudo uma questão de organização e de otimização do serviço. O Serviço Nacional de Saúde é um desiderato nacional e, por isso, deve ser encarado como tal. Deixemos as ideologias à porta. Esqueçamos a política partidária e pensemos efetivamente, com conhecimento técnico e pluridisciplinar, qual é a melhor forma de organização para otimizar os serviços. Com certeza que um serviço bem financiado tem mais hipóteses de servir a população, mas não passa única e exclusivamente pelo financiamento. Passa sim por uma melhor organização e uma melhor motivação. Os profissionais de saúde que se sentem motivados no seu espaço de trabalho farão muito mais e com menos esforço. Não esqueçamos um termo que agora está muito na moda, que é quiet quitting.
As pessoas que fazem exclusivamente aquilo que é necessário dentro do seu horário de trabalho.
Tem muito a ver com a pessoa fazer o mínimo indispensável dentro do seu trabalho. Se pega às nove, pega às nove. Faz o que tem que fazer, mas não mais do que aquilo que tem que fazer. Ora, o que faz uma equipa vencedora é entregarmos um bocadinho de alma e de coração, fazendo para além daquilo que nos pedem, tendo ideias, sendo criativos, percebendo onde estão os problemas, sentindo da parte da chefia alguma autonomia e confiança para poder intervir. Por isso, também dá no Serviço Nacional de Saúde precisamos de estímulos, de motivação, para que cada um dos profissionais de saúde, desde os conselhos de administração aos empregados de limpeza, se sinta bem tratado. Se se sentirem bem tratados, estarão motivados para dar o seu melhor. Há aqui aspetos, também, do ponto de vista ético que precisam de ser interiorizados. A chefia não pode apenas mandar de cima para baixo, mas deve motivar de baixo para cima, fazendo com que todos sintam que são importantes, porque todas as funções são absolutamente necessárias. E nós, qualquer que seja a função a que estejamos adstritos, temos que a realizar no máximo do nosso empenho, energia e conhecimento.