Para enfrentar “a triste realidade da vida moderna” e um problema que afecta mais de 9 milhões de britânicos, o Reino Unido nomeou, este mês, uma ministra da Solidão. Em Portugal, dois especialistas também pedem uma entidade anti-solidão: com ou sem um ministério, este é um problema transdisciplinar que exige um ataque em várias frentes.
A ministra da Solidão, Tracey Crouch, terá como missão combater um fenómeno associado a problemas à demência e mortalidade precoce, com custos de 2,8 mil milhões de euros por ano.
A realidade portuguesa é menos grave do que a do Reino Unido, assegura Lia Fernandes, médica psiquiatra e investigadora do Centro de Investigação em Tecnologias e Serviços de Saúde (Cintesis), da Universidade do Porto, na área do envelhecimento e da solidão.
“A nossa cultura é ligeiramente diferente da cultura que se vive no Reino Unido”, aponta. Uma “estrutura familiar” “provavelmente bastante mais forte” do que a britânica e “níveis de coesão bastante mais elevados” ajudam a criar uma “rede de suporte, da família ou dos familiares da rede de proximidade, ainda com uma expressão bastante importante”.
Em Portugal, o sentimento de solidão não é tão aprofundado como noutros países. No último estudo realizado pelo Observatório da Sociedade Portuguesa da Universidade Católica, a maioria dos participantes (cerca de 70% dos 973 inquiridos) disse que não se sentia só. Mais de dois terços dos entrevistados disseram também que não tinham qualquer dificuldade em arranjar companhia, sempre que precisavam dela.
“Ainda não estamos nos mesmos valores que está o Reino Unido”, avalia Lia Fernandes, que considera que a iniciativa britânica terá outra razão de ser: “Estão a ter mortes mais precoces, em termos etários, mais do que nós. E isso também decorre desse facto que não é tão evidenciado, não é dito publicamente, mas que obviamente também está a preocupá-los porque decorre de uma série de situações, entre elas, também a solidão.”
Um problema de todas as idades
Apesar de ser tradicionalmente considerada um problema que afecta mais os idosos, o trabalho do Observatório da Solidão do ISCET – Instituto Superior de Ciências Empresariais e do Turismo aponta uma realidade transversal que atinge sobretudo duas idades na vida: a adolescência e a velhice.
“A solidão também é um fenómeno da adolescência, aliás, os adolescentes são mais afectados pela solidão que os idosos”, diz o coordenador do observatório, Adalberto Carvalho. “Mas têm uma vantagem: saem mais precocemente de estado de solidão do que o idoso.”
“Quando se passa da idade da infância à aproximação da idade adulta há um desligamento relativamente aos referenciais familiares, ao pai, à mãe, e a busca de novas referências – amigos, companheiros – implica uma ruptura em relação ao passado que muitas vezes não é preenchida com as novas aquisições. E traz fenómenos muito graves de solidão que explicam o suicídio adolescente, um fenómeno que existe e é muitas vezes ignorado.”
A psiquiatra Lia Fernandes é também especialista em geriatria e diz que, entre os idosos, a solidão está relacionada com factores “como a viuvez e acontecimentos de vida que nessas idades são bastante mais importantes”, bem como “a pouca acessibilidade aos cuidados de saúde”.
Nas aldeias, velhos e sós
A solidão dos idosos deve-se muitas vezes ao isolamento em que muitos vivem, em aldeias pouco povoadas e longe da família mais próxima. Os últimos dados recolhidos pela GNR, no âmbito da Operação Censos Sénior 2017, dão conta de 45.516 idosos a viverem sozinhos ou isolados em Portugal.
Muitos vivem nos distritos mais desertificados do país (como Bragança, Beja, Évora ou Portalegre). Adalberto Carvalho distingue dois tipos de solidão: a que se vive em zonas urbanas e a que se vive nas zonas rurais.
“É muito frequente associar-se a solidão ao contexto urbano (…), estar só no meio de muita gente”, aponta. “Mas também é importante sabermos que em Portugal, no mundo rural, a solidão também está presente, sob formas insidiosas e muito pouco identificadas como tal.”
Uma das formas de combater o problema da solidão na terceira idade passa por estabelecer uma “boa rede de cuidados assistenciais, quer em termos sociais, quer em termos da saúde. Isso era fundamental”, sustenta Lia Fernandes.
Ministério da Solidão em Portugal?
Para a médica psiquiatra, a criação de um Ministério da Solidão no Reino Unido “é uma medida inovadora e muito interessante”, que “vai trazer benefícios para todas as pessoas que estão sozinhas”.
O que falta aos idosos são mais contactos sociais, que poderiam ser assegurados com mais “centros de dia e com criação de instituições onde os idosos possam passar os seus dias”, considera. Para Lia Fernandes, a principal função de um futuro organismo oficial equivalente em Portugal deveria ser reforçar as redes sociais de apoio.
Outro factor que também ajudaria a minorar o impacto da solidão na vida dos idosos seria garantir uma boa acessibilidade aos cuidados de saúde. Um exemplo? Nomeadamente através de “unidades que façam visitas domiciliárias, extremamente importantes”, clarifica a investigadora do Cintesis.
O coordenador do Observatório da Solidão também subscreve a ideia da criação de uma entidade dedicada a atacar o problema da solidão, mas aponta que deveria ser um organismo transdisciplinar porque, argumenta, o fenómeno não tem apenas uma causa bem identificada e muitas vezes tem outros factores associados (como a violência doméstica e a pobreza).
“Chamar [a esse organismo] ministério ou não é uma opção que já é política. Mas deveria existir em Portugal uma entidade dedicada a este fenómeno que agregue as várias dimensões ligadas à questão da solidão”, defende Adalberto Carvalho.
A “epidemia” que mata
Em países como os Estados Unidos, a solidão já é apontada como uma possível “epidemia” pelo número de pessoas que afecta, mas também pelas suas consequências negativas. Uma investigação apresentada na 125.ª Convenção Anual da Associação Americana de Psicologia, em 2017, refere que a solidão é um perigo iminente para a saúde pública e pode vir a tornar-se um problema maior do que a obesidade.
“O isolamento social e a solidão aumentam o risco da mortalidade prematura e a magnitude do risco ultrapassa a de muitos indicadores de saúde”, refere uma das autoras da pesquisa, Julianne Holt-Lunstad, professora de psicologia da Universidade Brigham Young, nos Estados Unidos.
Estar só e sentir solidão aumenta o risco de doença e não apenas aquelas do foro psicológico, como a depressão. Viver sozinho e isolado pode dar origem a situações que podem vir a traduzir-se em problemas de saúde.
“Por exemplo, se [a pessoa] vive sozinha e dá uma queda – que é uma coisa bastante frequente nas idades mais envelhecidas – já se sabe que é um problema muito complicado porque, muitas vezes, são pessoas que estão sem qualquer tipo de assistência várias horas seguidas e em situações bastante graves”, aponta Lia Fernandes. Uma situação que “já acontece em Portugal”.
Redes sociais: "solidão acompanhada"
Num mundo cada vez mais conectado às redes sociais, as pessoas e os jovens em particular sentem-se cada vez mais sós. Um estudo realizado sobre os utilizadores portugueses do Facebook refere que os que passam mais tempo a utilizar a rede social são também os que se sentem mais sós.
As redes sociais parecem influenciar mais o sentimento de solidão dos jovens. “Os mais novos também sentem solidão, mas é uma solidão diferente”, avança Lia Fernandes.
“Hoje em dia, com as tecnologias, as pessoas vivem isoladas nas suas casas, contactam através da internet, através do computador, do Facebook. Muitas vezes são formas de solidão acompanhada. Não há intercâmbio, não há permuta, as pessoas não conversam umas com as outras – estão simplesmente a escrever e a mandar mensagens e a fazerem coisas que são muito pouco enriquecedoras do ponto de vista interior, dos afectos e da construção de novas ligações com os outros”, considera a psiquiatra.
“As pessoas necessitam de estarem umas com as outras presencialmente, tem de haver um intercâmbio bastante mais enriquecedor. A relação que se estabelece através da internet é muito pobre”, acrescenta Lia Fernandes.
Para Adalberto Carvalho, as redes sociais podem desempenhar um papel importante no combate à solidão, mas só são benéficas quando são acompanhadas de relações “reais”.
“Há muitas pessoas da terceira idade que utilizam as redes sociais como forma de compensar a perda de familiares, de amigos. Aquela sensação que muitas vezes os idosos têm de que são sobreviventes, de que toda a gente morreu ou se afastou, e estão sós. Na verdade, as redes sociais, num primeiro nível, têm uma função muito importante de ajudar a quebrar essa solidão.”
O problema, para o coordenador do Observatório da Solidão, é quando as relações se resumem ao contacto através da rede. “O que acontece com os jovens e alguns adultos é que a fixação nas redes sociais, na comunicação virtual, leva a um alheamento relativamente ao contacto face a face, pessoa a pessoa, que é insubstituível”, reforça Adalberto Carvalho.