Antigo professor, Carlos Almeida está desde 2010 em Moçambique, onde é o coordenador nacional da HELPO. Esta organização não governamental para o desenvolvimento (ONGD) portuguesa nasceu em 2008, com o objetivo de apadrinhar crianças à distância sem as tirar do seu contexto, mas foi crescendo e acabou por ir para o terreno. Está hoje em São Tomé e Príncipe, Guiné Bissau e Moçambique. Dedica-se sobretudo às áreas da educação e nutrição infantil, mas a tragédia de 2019 levou-a a criar uma Missão de Emergência em Dombe, na província de Manica, com a ajuda e parceria de uma congregação religiosa feminina que já estava no terreno.
De passagem por Portugal um ano depois ciclone Idai (14 de março), Carlos Almeida conta como – apesar do trauma e de continuarem em graves dificuldades – os moçambicanos dão lições diárias de resiliência e esperança. Fala da situação “muito preocupante” na agricultura e dos ataques terroristas em Cabo Delgado. Elogia o papel e a colaboração da Igreja, e agradece o financiamento de 478 mil euros atribuído pelo Instituto Camões, para ajudarem a reconstruir as infraestruturas de saúde ao longo dos próximos dois anos.
Um ano depois do ciclone Idai ter devastado Moçambique ainda há milhares de pessoas sem casa, sem acesso a saneamento e água potável, e casos graves de desnutrição. Que balanço faz deste ano de ajudas? Foi feito o que era possível, podia ter sido feito mais?
Em primeiro lugar é importante reforçar o facto de o ponto de partida de Moçambique, à altura dos ciclones, ser realmente muito baixo. Infelizmente estas calamidades afetam mais as pessoas mais necessitadas, e mais uma vez foi o caso.
Quando a 14 de março o ciclone Idai atingiu a região centro de Moçambique, notámos sobretudo dois grandes focos: um na cidade da Beira – que foi o mais mediático, por haver uma grande concentração de pessoas na cidade, que foi completamente devastada com os ventos ciclónicos e com as chuvas, realmente causou grandes estragos. Depois, houve outras zonas muitos afetadas, as zonas rurais, nomeadamente na região de Búzi (província de Sofala), a região de Dombe, já na província de Manica, e também a região da bacia hidrográfica do rio Pungue. E foram situações completamente diferentes: as pessoas na cidade passaram muito mal, perderam as suas casas, perderam tudo, mas estão na cidade, grande parte delas tem o seu emprego, e se não foi na semana seguinte foi passado um mês, retornaram à vida normal. Nas zonas rurais esta calamidade ainda hoje se faz sentir...
Porque as pessoas também perderam as colheitas de que precisavam.
Exatamente. Na região de Dombe as pessoas vivem única e exclusivamente da agricultura, havia outra que tinha a criação de gado, que também perdeu, e aquilo que se notou durante este ano, após a calamidade, foi que mesmo tendo feito tentativas de novas colheitas, as coisas não correram bem. Para culminar toda esta desgraça ainda agora, no final do mês de fevereiro, houve uma nova cheia na região de Dombe, que fez com que as novas colheitas, que estavam a preparar-se para ser colhidas, muitas delas foram perdidas.
No caso da agricultura a situação é muito preocupante?
É uma situação muito preocupante. As pessoas nestas zonas rurais estão realmente a passar mal, com muitas dificuldades, e vão conseguindo sobreviver, nem digo viver...
A ONU já alertou para o risco de fome para cerca de dois milhões de moçambicanos. Confirma?
Sim, confirmo. É um problema grave. Eu gosto sempre de ver as coisas do lado positivo – se não fosse assim também não valia a pena estar com esse tipo de trabalho –, e para quem conhece Moçambique e os moçambicanos, as pessoas em primeiro lugar estão muito felizes por estarem vivas e continuam com um sorriso nos lábios e a enfrentar o dia-a-dia sempre com uma enorme capacidade de resiliência. Teríamos muito a aprender se conseguíssemos interiorizar aquela força que os faz ser assim. Depois há sempre uma luta de andar à procura de outras soluções.
Mas notamos que as pessoas estão realmente a passar muito mal. Na região onde estamos a trabalhar, em Dombe, as ajudas chegaram, foram entregues muitas sementes, as pessoas procuraram locais alternativos para as colheitas, mesmo não tendo corrido bem. Neste momento as coisas não estão muito boas, e prevê-se que o ano 2020 seja um ano muito complicado.
A HELPO é um ONGD (Organização Não Governamental para o Desenvolvimento) portuguesa, que tradicionalmente centra a sua atividade nas áreas da educação e da nutrição infantil, mas depois desta tragédia esteve na linha da frente da ajuda direta às populações, e mantém a Missão de Emergência na província de Manica. Que tipo de ajuda é que foram dando? O que é que faz mais falta neste momento?
Só para enquadrar essa nossa presença na província de Manica, em Dombe: nós realmente não trabalhávamos na área da emergência, o que aconteceu foi que após o ciclone Idai sentimo-nos praticamente obrigados pelos nossos parceiros, pelos nossos amigos, porque sabendo que estávamos em Moçambique desde 2008 – apesar da nossa sede ser em Nampula, no norte de Moçambique, e o trabalho ser também na província de Cabo Delgado – começámos a ser contactados para saber o que é que iríamos fazer, e a dizer que queriam muito ajudar...
Foi criada uma relação de confiança com a população?
Exatamente. Pessoas individuais, empresas, câmaras municipais, associações de escuteiros, de bombeiros, houve uma grande movimentação, e nós sentimo-nos obrigados.
O porquê da nutrição e da saúde materno-infantil? Porque já tínhamos experiência, nomeadamente em São Tomé e Príncipe e na Guiné-Bissau, onde também estamos. Foi partir um pouco para o desconhecido, porque assusta fazer um trabalho na parte da emergência, mas tínhamos os conhecimentos técnicos adquiridos e sabíamos o que queríamos fazer. Depois só nos faltava uma coisa, que foi aquilo que nos permitiu fazer um trabalho de grande qualidade, que foi encontrar o parceiro ideal: e o parceiro foi a missão católica de Dombe, onde conseguimos que as irmãs do Instituto das Pequenas Missionárias de Maria Imaculada, que são enfermeiras e têm um hospital, e que apesar de toda a zona da missão de Dombe, segundo as suas palavras, ter ficado 'ilhada' – porque as cheias envolveram completamente a missão e elas estavam numa ilha, mas o hospital não sofreu nada -, havia possibilidade nos receber. Por isso, passado duas semanas e meia após o ciclone Ídai, dia 1 de abril, chegámos à província de Manica, e no dia 2 já estávamos a trabalhar em Dombe.
Tínhamos um compromisso de fazer uma missão de três meses, mas depois a campanha de recolha de bens e a campanha de recolha de fundos correu muito bem. Fizemos a entrega de 217 toneladas de bens, grande parte recolhidos aqui em Portugal e enviados por contentor.
Isso é uma ajuda para milhares de pessoas no terreno?
Sim. E depois do ciclone Kenneth, no dia 25 de abril, acabámos por enviar para Pemba, em Cabo Delgado, um dos contentores que estava destinado para Dombe.
Além destas 217 toneladas, fizemos milhares de rastreios nutricionais a mães grávidas, lactantes e crianças até aos cinco anos, porque foi esse foco que escolhemos. Havia mil e uma coisas para ajudar, mas nós focamo-nos neste.
Também já tinham experiência nessa área.
Sim, e no fundo fomos, em todas estas regiões que foram muito afetadas, fomos tentar identificar casos e fazer esse encaminhamento, e também aproveitar para formar os técnicos de saúde que possam depois dar continuidade a este trabalho.
Esta parceria saiu reforçada em janeiro deste ano, quando o Instituto Camões aprovou o financiamento para um novo projeto, o RESPI (Reconstrução e Resiliência nas Estruturas de Saúde e População Pós Idai), que tem mais parceiros no terreno, incluindo as irmãs, de que já falou. É uma ajuda importante?
Para nós é sobretudo um grande orgulho este voto de confiança do Instituto Camões no nosso trabalho, reconhecendo que fizemos um projeto tendo total experiência do local. Ou seja, nós acompanhámos o evento praticamente desde o início, estávamos presentes, não foi uma missão de emergência que tenhamos ido e voltado a Portugal. Conseguimos continuar lá e – deixem-me reforçar – só foi possível termos ficado este ano porque, para além dos bens que foram doados, também conseguimos uma campanha de recolha de fundos (em Portugal) que superou em muito as nossas expectativas: conseguimos recolher 283 mil euros, e isso é que nos permitiu fazer todo este trabalho.
No ciclone Kenneth, em Cabo Delgado, reconstruímos 18 salas de aula, incluindo bibliotecas, refeitórios, bloco administrativo. Neste momento ainda estão a decorrer obras na ilha do Ibo, também de salas de aula. Ou seja, este dinheiro que os portugueses nos doaram, de alma e coração, permitiu que fosse feito muito trabalho durante este ano.
O Instituto Camões agora deu-nos um voto confiança para mais dois anos, numa parceria com outra organização portuguesa, a TESE, e o próprio nome do projeto, RESPI, indica aquilo que nos propomos a fazer: reconstrução e resiliência das estruturas de saúde – que é a parte da TESE, que vai equipar quer o hospital das irmãs, quer o centro de saúde de Dombe com painéis solares para que seja autossuficiente, a nível energético. A TESE é outra ONGD portuguesa, e são especialistas nesta área, e vão também intervir ao nível da água e saneamento destas infraestruturas de saúde.
Do lado das populações – porque o projeto tem a parte das estruturas e a parte das pessoas – é a HELPO que está encarregue de continuar a fazer rastreios nutricionais, e paralelamente a estas duas intervenções queremos formar agentes polivalentes de saúde, os ativistas, para que no final dos dois anos as pessoas consigam elas próprias dar continuidade ao projeto.
Já tendo as infraestruturas, continuarem depois o trabalho?
Fazerem a manutenção das infraestruturas e também os rastreios nutricionais, que são coisas muito simples. O centro de saúde já tem técnicos de nutrição. Se a nível das populações, nestes nove centros de reassentamento onde vamos estar a trabalhar – que foram novas aldeias que foram criadas com as pessoas que perderam as suas casas – houver ativistas que consigam identificar quando há uma criança, ou uma mãe grávida com problemas de nutrição, e encaminhar para o hospital, o trabalho a partir daí está feito. Por isso, estes dois anos são de um grande desafio, que enfrentamos com muita confiança.
Estamos a falar de uma população de quantas pessoas?
De 13.000 pessoas, que foram muito afetadas. Aquilo foi uma tragédia silenciosa. Durante três noites as águas subiram de forma catastrófica e levaram tudo. Depois das águas terem ido embora, nós chegávamos lá e víamos, no cimo dos postes da eletricidade, lixo, ramos e restos de lama. Ou seja, podíamos testemunhar até onde é que as águas tinham chegado – porque algumas imagens são difíceis de acreditar –, e ouvir os relatos de pessoas que ficaram três dias em cima das árvores com os seus filhos amarrados à cintura para sobreviver… Agora, passado praticamente um ano, falamos com essas mesmas pessoas que nos dizem que as crianças ainda acordam durante a noite a chorar e a dizer que querem ajuda. Há muitos traumas que não se vão apagar de um dia para o outro…
Está em Moçambique há 10 anos. Esta tragédia foi o que mais o marcou?
Houve uma coisa que me marcou muito, não no ciclone Idai, mas no ciclone Kenneth. Fizemos uma visita à ilha do Ibo, na altura com a Selma Uamusse, que a nosso convite foi a Moçambique, porque fez o “Mão dada a Moçambique” e ela fez essa visita connosco. Quando chegámos à ilha as pessoas estavam numa distribuição de alimentos… Tinham perdido tudo, a ilha ficou 90% destruída, e quando chegámos houve uma mãe que quis falar com ela e lhe disse estar muito feliz por estar viva, e que se os estávamos a visitar era porque eles eram muito importantes.
Eu penso muitas vezes nisso: se uma catástrofe dessas acontecesse em Portugal, nós que somos exigentes e queremos coisas boas, se perdêssemos tudo não conseguiríamos fazer nada… Aquelas pessoas pegaram em três paus, numa lona e fizeram uma casa para dormir, ficaram à espera de alguma coisa para comer e as coisas andaram para a frente.
Houve histórias que me marcaram muito, foi uma experiência pessoal que me marcou. Houve uma noite em que estava a ir de carro, desliguei a luzes e vi o que seria acordar com água pelos joelhos e não se ver nada. não há luz de candeeiro na rua, não há luz elétrica e como é que pessoas, como a Joana, grávida - ainda agora estive com ela – e amarrou dois filhos, subiu acima do celeiro, que depois se desprendeu e serviu de jangada, ficou presa aos ramos de uma árvore e andou nisto durante duas noites! As crianças continuam impecáveis, ela com um sorriso e muito feliz por estar viva.
Em Moçambique estão representadas várias ONG’s. Há trabalho em rede entre as várias organizações que estão no terreno? Como é que avalia o trabalho e presença da Igreja junto das populações?
Nós temos dois cenários específicos: em Manica seria impossível fazer este trabalho sem o apoio da diocese de Chimoio. O bispo D. João Carlos Nunes, desde o primeiro momento que apoiou a nossa ida, quando contactámos as irmãs do Instituto Pequenas Missionárias de Maria Imaculada também fomos recebidos de braços abertos, e sem este apoio seria impossível ter feito esta missão. Foi a questão chave, porque não tínhamos capacidade para fazer este trabalho se não tivéssemos um parceiro já tão implementado no terreno.
Ao nível de Cabo Delgado aquilo que sentimos foi que na altura do ciclone éramos a única organização portuguesa que estava no terreno, depois mais tarde a Oikos, que tem alguns projetos na área da agricultura, deu algum apoio e também aí contámos muito com o bispo D. Luis de Lisboa, que nos ajudou e colaborámos muito. Participámos na construção da escola secundária Padre Paulo, e até aos dias de hoje continuamos, agora com outro fenómeno a acontecer em Pemba, resultante de coisas graves, de ataques…
Ataques terroristas… E consegue identificar?
Na minha opinião, e falando muito com especialistas na área da segurança, aquilo que dizem é que não sabem o que é, sabe-se o que não é, ou seja, a hipótese do (autoproclamado) Estado Islâmico nesta altura está posta de parte. Há várias motivações e razões…
Mas, as pessoas estão a ser atacadas, e há um cenário de violência muito grave...
É uma situação grave. Há um padrão comum na maior parte destes ataques, não são feitos para matar, mas para aterrorizar. Pessoas armadas entram e queimam as aldeias, disparam tiros para o ar, as pessoas fogem, matam uma ou duas pessoas com requintes de terror. Quase não tem havido ataques a viaturas nem instituições específicas, por exemplo as igrejas não foram atacadas, por isso conotar isto com o Estado Islâmico parece-me forçado…
Isto também atrapalha o vosso trabalho no terreno?
Atrapalha e muito. Tínhamos um centro de intervenção em Mocímboa da Praia, e desde o segundo semestre de 2019 que esse apoio que damos numa escola secundária -– onde temos 124 alunos com bolsas de estudo do ensino secundário – está a ser feito à distância. Porque de Pemba a Mocímboa da Praia são 350 km, e passa no epicentro destes ataques.
O que se tem notado nos últimos meses, porque há um agudizar da situação, é que as pessoas estão a fugir destas zonas rurais, de mato profundo, e estão a ir para Mocímboa da Praia, para a ilha do Ibo, para Macomia e mais recentemente para Pemba, porque os ataques estão a ir para sul. Os últimos ataques são, em linha reta, a cerca de 120 km da Pemba, e estas pessoas estão a chegar em largo numero.
O padre Ricardo, dos Missionários da Boa Nova, e outros padres que estão a intervir no terreno estão a sentir que há muita necessidade de uma outra ajuda, e por isso dos bens que conseguimos recolher, e outros materiais que temos em armazém, estamos a ajudar estas pessoas.
Estamos a falar de deslocados internos?
Essa é que é a questão. O governo moçambicano por não ter ainda assumido de forma veemente esta situação, deixa as coisas cair num vazio. Mas o que sentimos é que são deslocados internos, e que está a afetar muito a vida destas pessoas.
Tivemos dados, que não são oficiais, mas que indicam que já ultrapassa as 2000 crianças que estão nas escolas. Em Moçambique as aulas começaram no final de janeiro, e neste último mês houve um acréscimo de crianças. Se contarmos com as que se deslocaram e que não estão a ser integradas na escolas, isto é uma nova catástrofe…
Está em Portugal por estes dias para procurar mais apoio? Veio lembrar e sensibilizar os portugueses de que a situação preocupante em Moçambique permanece?
Estou desde 2010 em Moçambique e ultimamente tenho feito um esforço grande para vir mais vezes a Portugal, e sentimos que esta efeméride de um ano do ciclone Idai era mais importante estar aqui para dar o meu testemunho.
Temos sentido muito o apoio dos portugueses. Após o ciclone conseguimos dar uma resposta e quem depositou confiança em nós sentiu que fez um bom investimento e que nós fizemos um bom trabalho.
Gostaria de aproveitar este momento de preenchimento do IRS e apelar aos portugueses que têm confiança na HELPO que não se esqueçam de consignar 0.5 % do imposto.
Lembrando sempre que isso não nos vai custar nada…
É uma parte que em vez de ir para o Estado vai diretamente para a organização. Para nós tem sido uma grande fonte de financiamento, e é sempre importante relembrar.
Em Portugal, e na Europa, vivemos em estado de alerta devido ao novo coronavírus. A epidemia também preocupa Moçambique?
Preocupa muito. Ainda não há casos em Moçambique, mas já há na África do Sul, acho que é o único país do sul de África que tem casos e que faz fronteira com Moçambique, as pessoas estão muito alerta.
Outra coisa que estava a assustar muito os moçambicanos era o facto de haver uma grande comunidade chinesa no país, e as pessoas estavam assustadas. Estão a colocar em quarentena pessoas que venham de países com grande número de infetados, nomeadamente da China, de Itália. Ontem ouvi um relatório que indicava que quem vinha da Alemanha obrigatoriamente ia ficar 14 dias em quarentena.
Estão atentos e a tomar medidas?
Estão a ser tomadas medidas, o ministério da saúde está a tomar medidas, não ainda ao nível de Portugal, mas as pessoas em Moçambique estão alerta, nas cidades, nos postos fronteiriços e nos aeroportos, estão cientes, e o ministério da saúde está a acompanhar este caso.