"Olivia, a minha filha mais velha, apanhou sarampo quando tinha sete anos de idade. Enquanto a doença seguia o seu curso normal, lembro-me de lhe ler histórias enquanto estava deitada e de não estar particularmente preocupado. Depois, uma manhã, quando ela já estava bem encaminhada para a recuperação, estava sentado na cama dela a mostrar-lhe como fazer animais pequeninos a partir de esfregões coloridos, e quando chegou à vez dela reparei que os seus dedos e a sua cabeça não estavam a trabalhar em conjunto, e que ela não conseguia fazer nada.”
Olivia, a menina descrita neste parágrafo, era a filha mais velha do conhecido escritor de história infantis inglês Roald Dahl, autor de livros como “Matilda” ou “Charlie e a Fábrica de Chocolate”. Este parágrafo são as linhas de abertura de uma carta escrita por Dahl em 1986, há 30 anos, e publicada num jornal britânico durante uma época em que o sarampo – “measles”, em inglês – e a inoculação contra o vírus que dá origem à doença era um tema muito debatido no país.
Olivia Dahl morreu aos sete anos em 1962. Nos anos 80, discutiam-se os prós e contras da vacinação. Hoje, mais de 50 anos depois da morte desta menina, com a Europa novamente preocupada com um ressurgimento inesperado da doença depois de ter sido dada como erradicada em vários países, incluindo Portugal, ainda há quem defenda que não se devem vacinar as crianças por causa de uma suposta (e falsa) relação causa-efeito entre a vacina e o autismo nas crianças.
A raiz desta crença nasce com um artigo publicado em 1998 – mais de uma década depois da publicação da carta de Roald Dahl – na revista de especialidade “The Lancet”. O artigo, assinado pelo médico britânico Andrew Wakefield, foi denunciado e desacreditado pela comunidade académica inúmeras vezes.
Em 2014, surgiu uma investigação exaustiva baseada em dados colhidos junto de mais de 1.2 milhões de crianças. Conclusão: não há qualquer relação entre a vacinação e o autismo. Wakefield foi suspenso da actividade médica.
No Reino Unido, cerca de 24 mil crianças estão hoje em risco de contrair sarampo pelo facto de não terem sido vacinadas contra o sarampo. Para haver imunidade de grupo em qualquer país, é necessário que 95% da população esteja inoculada. Por isso, as escolas e jardins-de-infância na maioria dos países desenvolvidos pedem o boletim de vacinas no acto da inscrição das crianças – para assegurar que quem frequenta o espaço público de ensino não esteja a colocar em risco a restante comunidade.
Contra todas as recomendações da Organização Mundial de Saúde (OMS), a população inoculada contra o sarampo, a papeira e a rubéola em França, na Alemanha, em Itália, na Polónia, na Roménia, na Ucrânia e na Suíça não chega à percentagem recomendada para assegurar a imunidade de grupo. A desinformação na internet e a chamada “pseudociência” são apontadas como as maiores responsáveis por este “perigoso” fenómeno, como descreve o departamento de coordenação da área da vacinação da OMS.
Pelo menos 14 países europeus têm registado surtos de sarampo desde o início deste ano, com a Roménia a liderar o número de casos, com mais de quatro mil doentes em seis meses, desde meados de 2016.
Segundo o Centro Europeu de Controlo de Doenças, o número de países europeus com casos de sarampo foi crescendo no início deste ano e quase todos eles terão ligação ao surto que começou na Roménia em Fevereiro de 2016. Além de Portugal, que tem até hoje mais de 20 casos notificados de sarampo, registaram surtos de sarampo a Áustria, Bélgica, Bulgária, Espanha, Dinamarca, França, Alemanha, Hungria, Islândia, Itália, Suíça e Suécia.
Nos primeiros quatro meses do ano houve mais casos de sarampo em Portugal do que na década anterior. Em 2016, um diploma da OMS oficializava a erradicação do sarampo em Portugal, nomeadamente porque os poucos casos registados nos últimos anos tinham sido contraídos noutros países.
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A jovem de 17 anos que morreu esta quarta-feira, no Hospital Dona Estefânia em Lisboa onde foi internada com sarampo, não estava imunizada contra o vírus. Devido a problemas de saúde, não conseguiu tomar a segunda dose da vacina, disse um amigo próximo da vítima, que recebeu autorização da família desta para falar com a Renascença.
O responsável pelo Programa de Vacinação e Imunização da Organização Mundial de Saúde (OMS), Robb Butler, afirmou, em entrevista à Renascença, esta quarta-feira que vacinar crianças "é uma responsabilidade conjunta das autoridades de saúde, dos pais e da população em geral" e manifestou-se preocupado com a situação no país.
O director-geral da Saúde, Francisco George, revelou, em conferência de imprensa, que estima que haja, em Portugal, entre 10 mil a 15 mil crianças não vacinadas contra o sarampo. "Assistimos a um combate muito desleal entre a ciência e a opinião”, declarou. “A melhor resposta é a prevenção. É tempo de parar com a opinião e a especulação sobre a evidência científica.”
O ministro da Saúde, Adalberto Campos Fernandes, apelou ainda à população para confiar no sistema de saúde e na capacidade de uma comunidade "solidária e responsável". Mas, e apesar do relevo dado à vacinação, o ministro da Saúde sublinhou que não está em causa tornar a vacinação obrigatória. E disse que o actual surto está "em vias de resolução".
O conselho de Olivia
Olivia Dahl, a menina de sete anos que morreu de sarampo há mais de 50 anos no Reino Unido, quando não havia a informação que há hoje sobre as vantagens da vacinação, desenvolveu uma encefalite derivada ao vírus. Em 1962, não havia nada que os médicos pudessem fazer para evitar a sua morte.
Escrevia o seu pai em 1986: “Hoje há uma coisa que os pais podem fazer para assegurar que uma tragédia destas não acontece a um dos seus filhos. Podem insistir que os seus filhos sejam imunizados contra o sarampo (…) Ainda não se aceitou que o sarampo seja uma doença perigosa. Acreditem em mim, é.”
“Acho que há mais risco de os vossos filhos morrerem engasgados numa tablete de chocolate do que de ficarem seriamente doentes por causa de uma vacina contra o sarampo”, declarava.
Roald Dahl morreu em 1990 aos 74 anos, oito anos antes da publicação do estudo fraudulento publicado na revista “The Lancet”. “James e o Pêssego Gigante”, um dos seus livros infantis mais populares e um dos muitos que foi depois adaptado para o cinema, foi dedicado a Olivia, ainda a menina estava viva. O “Amigo Gigante”, livro que dá origem ao filme de 2016, foi dedicado à sua memória.
No próximo sábado, o programa Em Nome da Lei vai debater as vantagens e desvantagens da obrigatoriedade da vacinação contra o sarampo e outras doenças contagiosas. O debate vai juntar críticos das vacinas, profissionais de saúde e juristas. Pode responder aqui à sondagem da Renascença sobre o tema.