​Sanders baixa tensão entre os apoiantes ao proclamar o apoio a Hillary
26-07-2016 - 10:49
 • José Alberto Lemos, em Nova Iorque

“Ninguém está mais desapontado que eu, mas tudo farei para que Hillary Clinton seja presidente”, declarou o senador derrotado nas primárias.


O dia começou mal, mas a noite acabou bem para os democratas e, como diz o aforismo, tudo está bem quando acaba bem. Estará mesmo?

A tensão entre os apoiantes de Bernie Sanders e o aparelho do partido era patente desde domingo, mas na segunda-feira agravou-se quando mais de um milhar de adeptos do senador do Vermont desfilou pelas ruas de Filadélfia gritando contra Hillary Clinton, repetindo até os republicanos na semana passada em Cleveland: “Prendam-na, prendam-na”. E mesmo quando Sanders falou à multidão recebeu vaias dos seus próprios apoiantes.

Os responsáveis do Partido Democrático receavam portanto que os adeptos de Sanders, maioritariamente jovens cheios de energia e entusiasmo militante, estragassem a noite no pavilhão de Filadélfia. E ainda houve quem tentasse gritar mais alto do que os oradores, mostrar o quanto detestavam Hillary. Até que subiu ao palco a actriz Sarah Silverman, uma apoiante de Sanders, que se irritou com as intromissões e não hesitou em disparar: “vocês estão a ser ridículos”.

O entusiasmo e as qualidades retóricas dos principais oradores fizeram o resto. Mas coube ao próprio Bernie Sanders a tarefa de unir os democratas nesta primeira noite da convenção. Ele era o orador mais aguardado da noite, obviamente, e quando subiu ao palco esteve cerca de dois minutos sem conseguir falar porque a multidão não calava o seu entusiasmo.

Quando finalmente pôde discursar, começou por agradecer a todos os voluntários da campanha, aos que contribuíram com dinheiro e aos delegados eleitos cujos votos espera contabilizar na terça-feira.

Depois repetiu essencialmente aquilo que andou a dizer durante as primárias, que esta eleição não era para escolher um presidente, mas para fazer uma “revolução na América”. Uma “revolução” que passa pelo combate à pobreza “grotesca” e às desigualdades que se agravaram nos últimos 40 anos. E uma “revolução” que transcende em muito a eleição de um presidente, que implica uma luta que prosseguirá e para a qual o senador se declarou disponível desde já.

Esse combate passa por medidas que Sanders voltou a enumerar exaustivamente e que ficaram consagradas na plataforma política que o Partido Democrático vai apresentar ao eleitorado e que é a “mais progressista de sempre”.

Aumento do salário mínimo para 15 dólares/hora, licença de maternidade paga, baixas médicas pagas, ensino superior gratuito para famílias de menores rendimentos, sistema de saúde universal, regulação do sistema financeiro – “fazer a lei Glass-Steagall do século XXI” – chumbar o acordo comercial com o Pacífico (TPP) no Congresso, reformar os sistemas de imigração e prisional, nomear juízes progressistas para o Supremo Tribunal, limitar as contribuições financeiras para as campanhas eleitorais, proteger o direito ao aborto, a comunidade LGBT, os imigrantes e os trabalhadores, combater as mudanças climáticas apostando nas energias renováveis, reconstruir as infraestruturas do país, foram as medidas enumeradas.

Em cada uma delas, Sanders garantiu que Hillary Clinton era a pessoa indicada para as aplicar porque, ao contrário de Trump, tem sensibilidade para os problemas que afligem os americanos. Falou depois directamente para os seus apoiantes, reconhecendo que nas primárias discordou de Hillary em muitas coisas – “é a democracia” – e compreende o desapontamento deles com a derrota. Mas “ninguém está mais desapontado do que eu” e no entanto “farei tudo para que Hillary Clinton seja eleita presidente. Ela será uma presidente excepcional. Tenho orgulho em dizê-lo aqui esta noite”, concluiu.

Era o que o pavilhão queria ouvir. Sanders retirou-se em apoteose, apesar das lágrimas em muitos rostos dos seus apoiantes. A noite encerrou assim em aparente harmonia, mas fica a dúvida sobre se nas próximas noites, particularmente nesta terça-feira em que se vão contar os votos para a nomeação da candidata, os ânimos não voltarão a exaltar-se. O próprio Sanders disse que contava com os votos dos seus delegados, mostrando portanto interesse em contar as espingardas.

Michelle Obama empolga

Antes dele, houve três discursos que prenderam as atenções de todos. Michelle Obama empolgou a multidão com uma intervenção muito bem concebida, em que assumiu o papel de mãe e alertou para a importância de os adultos com responsabilidades darem bons exemplos às crianças.

Sem nunca nomear Donald Trump, referiu-se à “linguagem de ódio”, aos que “baixam o nível”, aos que acham que a política se “resolve em 140 caracteres”, aos que vêem o mundo a preto e branco, aos que dizem que o país não é grandioso, para alertar que esta eleição é muito mais do que uma disputa entre esquerda e direita, entre democratas e republicanos, é uma eleição em que “se vai moldar o comportamento das nossas crianças nos próximos oito anos”. Porque elas “vêem e ouvem” os adultos com responsabilidades e aquilo que o candidato republicano anda a dizer “não representa a América, não é a América”.

Michelle confessou que por vezes pensa como a Casa Branca foi construída por escravos (negros) e como hoje duas adolescentes negras (as filhas) brincam descontraidamente ali nos jardins, ilustrando a extraordinária evolução do país nos últimos 150 anos. “Não deixam que vos digam que este país não é grandioso. É o melhor do mundo”.

Rematou com elogios a Hillary Clinton como a pessoa certa para o lugar pela sua preparação e competência, pelo seu comprometimento de mais de 40 anos com o serviço público, pela sua tenacidade e por ser alguém que pode ser um modelo para as crianças, ao contrário do seu opositor.

A intervenção mais ideológica da noite talvez tenha sido a da senadora Elizabeth Warren, cujo posicionamento à esquerda fez dela uma heroína dos apoiantes de Bernie Sanders, a quem agradeceu o contributo para o partido na primárias.

Warren pegou na expressão de Trump segundo a qual o “sistema está viciado” para dizer que funciona a favor dos mais ricos e poderosos. Enumerou várias medidas de justiça social às quais os republicanos se terão oposto no Congresso, como o aumento do salário mínimo, a defesa do consumidor, a regulação dos bancos e acusou Trump de não ter qualquer plano de emprego, qualquer ideia, qualquer proposta para governar o país.

“Ele só se preocupa em baixar os impostos para os ricos, em acabar com a regulação financeira, em liberalizar o salário mínimo, em ganhar mais dinheiro”. Até se congratulou com a recessão de 2008 porque lhe permitiu ganhar mais dinheiro, disse.

Booker joga no futuro

A surpresa da noite foi Cory Booker, antigo "mayor" de Newark, onde vive uma grande comunidade portuguesa, e actual senador federal eleito por Nova Jérsia. Booker esteve na "short list" de Hillary Clinton como possível candidato a vice-presidente e parece ser uma estrela em ascensão no partido. Fez um discurso empolgante, que fez lembrar o célebre discurso de Obama na convenção de 2004, que o tornou famoso a nível nacional.

Falou num tom de pregador, enaltecendo o amor como o grande valor na América, aquilo que faz unir as pessoas, ultrapassando divisões étnicas, sociais, raciais, culturais. Disse da importância de agir colectivamente para obter ganhos de causa e louvou a solidariedade humana. Tudo para contrastar com as divisões entre os americanos que Trump promove, segundo ele, e para manifestar confiança em que a América sempre se ergue em todas as situações difíceis.

Na bancada, Bill Clinton parecia fascinado com a retórica de Booker, que mais tarde se foi sentar junto do antigo presidente. O senador deixou a impressão de estar a marcar terreno para fazer uma aposta presidencial dentro de oito anos. Ou quatro, se Hillary perder em Novembro.

As sondagens vindas a público na segunda-feira não lhe são favoráveis. Um inquérito da CNN coloca Trump cinco pontos à frente (44-39), depois de ter estado atrás durante muitos meses. Mas os especialistas lembram que todos os candidatos sobem após as respectivas convenções graças à exposição televisiva de que disfrutam nessa semana.

Será portanto necessário esperar pelo fim da convenção democrática para verificar se o mesmo vai suceder com Clinton e os números voltam a reflectir a realidade anterior aos dois congressos.