A realidade sindical e a maneira de fazer greves mudaram e o Presidente da República assume que, "como garante da constitucionalidade, tem de chamar a atenção para a realidade política, económica e social que está em mudança". A partir daí, diz, os "protagonistas políticos demais ajustam-se ou não à mudança".
Marcelo Rebelo de Sousa falava esta quarta-feira no Picadeiro Real, em Belém, à margem de mais uma sessão de músicos com estudantes e foi desafiado pelos jornalistas a clarificar o que disse na recente entrevista à RTP e ao Público sobre eventuais alterações à lei da greve.
Depois de ter defendido que as novas formas de luta sindical criam imprevisibilidade e "tem de se definir de forma legal e atempadamente para que a sociedade saiba com o que pode contar", Marcelo atira para o Parlamento, Governo e sindicatos a responsabilidade de interpretar a "mudança".
"É uma decisão que os partidos, o Governo, os sindicatos terão de tomar", afirma o Presidente da República, que se assume como "garante da constitucionalidade" e "tem de chamar a atenção para a realidade política, económica e social que está em mudança", conclui Marcelo.
E das duas uma, ou "os protagonistas políticos demais ajustam-se ou não à mudança conforme a interpretação que têm dessa mudança" e "se entenderem que não faz sentido introduzir ajustes políticos ou legais é a sua competência, é o seu poder". Marcelo lava daí as mãos.
Perante novas greves de professores à vista, o Presidente da República insiste que "conviria tomar isto em consideração, porque o comum dos cidadãos quer saber as linhas com que se cose".
PS recusa alterar a lei "em cima de greves", PSD nem vai "mexer" no assunto
Ao desafio do Presidente da República para que se dê enquadramento legal a situações, por exemplo, criadas pelas paralisações dos professores em que foram detetadas pela própria Procuradoria Geral da República discrepâncias entre o definido nos pré-avisos e a execução da greve apenas a alguns tempos, os partidos reagem com um "não" rotundo.
No PS mexer na lei numa altura em que se multiplicam greves em vários setores é visto com a maior reserva. Um dirigente socialista diz à Renascença que "não está no horizonte apresentar alterações", sobretudo agora "em cima" de greves.
Um membro do Secretariado Nacional do PS também corta o desafio de Marcelo e diz à Renascença que "tornar previsível a vida das pessoas não passa necessariamente por alterar a lei da greve", afastando qualquer disponibilidade dos socialistas em "fazer alterações".
No mesmo sentido vai o dirigente socialista José Abraão, que diz à Renascença que "não há razão que justifique qualquer alteração à lei da greve". O secretário-geral da Federação de Sindicatos da Administração Pública (FESAP) viu nas declarações de Marcelo "uma preocupação no que diz respeito a certas organizações profissionais".
Abraão salienta que "alguns sindicatos, para mostrar que são diferentes, extravasam o limite do razoável", com o dirigente sindical a salientar que "houve greves pagas depois das pessoas se terem quotizado".
De resto, tal hipótese de mexer na lei já tinha sido descartada pelo próprio secretário geral do PS numa entrevista que deu à RTP no final de janeiro: "Não vamos alterar a lei da greve, claro que não", garantiu António Costa.
O primeiro-ministro jurou respeito pelo direito à greve e garantiu não querer dar "lições aos sindicatos e aos trabalhadores como exercem ou não o direito à greve, cada um exerce os seus direitos da forma que entende", rematou.
A questão é, de resto, tratada com pinças pelos dois maiores partidos. No PSD a possibilidade de alterar a lei da greve é considerado um "tema delicado", segundo um membro da direção do partido, que garante: "não vamos mexer nesse assunto", sacudindo o desafio de Marcelo.
No PCP, o secretário-geral foi um dos primeiros a levantar a lebre na entrevista que deu ao programa Hora da Verdade da Renascença e do jornal Público, também à boleia das greves dos professores.
Na sequência do parecer pedido pelo Governo à Procuradoria Geral da República, Paulo Raimundo foi taxativo: "Acho que o Governo foi por um mau caminho desse ponto de vista, na minha opinião. Acho que foi por um mau caminho e espero estar completamente enganado, mas vamos lá ver se esta situação dos professores não é propriamente um protesto para alteração, um objectivo de alterar a lei da greve".
E agora, em resposta a um pedido da Renascença para reagir às declarações de Marcelo à RTP, os comunistas voltam a ser diretos: "Vem de longe o objetivo de pôr em causa o direito à greve que está consagrado na Constituição".
Na nota, que, entretanto, também foi divulgada pelo jornal Público esta quarta-feira, os comunistas lançam ainda farpas ao modelo de protesto dos novos sindicatos como o que já foi adotado pelo Sindicato de Todos os Profissionais de Educação (STOP).
"Todos os pretextos servem para mutilar o direito à greve, agora invoca-se com essa finalidade, a realização de greves sem a ponderação necessária para garantir o apoio e o êxito dos objectivos dos trabalhadores. Formas de greve que, ao contrário do que é dito, não têm grande novidade, em fases diversas têm sido usadas criando dificuldades aos trabalhadores e à sua luta".
Os comunistas concluem a nota referindo que é "necessário garantir o direito à greve. Sejam quais forem os pretextos o que se impõe é rejeitar o projeto para pôr em causa o direito à greve, essencial para os trabalhadores e a defesa dos seus direitos, sempre e ainda mais quando está em curso uma ofensiva brutal de degradação das suas condições de vida e de ataque aos seus direitos".
Do lado do Bloco de Esquerda a linha é a mesma, não há intenção de mexer um músculo para fazer alterações à lei da greve, com os bloquistas a assumirem à Renascença que não vêem "necessidade de mudar a lei".
A greve dos motoristas em 2019 que levou Siza Vieira a propor mexidas na lei da greve
A discussão sobre mexidas à lei da greve é recorrente e surge em alturas de picos de tensão social, em que se multiplicam greves. Foi o que aconteceu em 2019 em pleno verão, com a greve dos motoristas de matérias perigosas que parou literalmente o país.
Em julho desse ano, e perante as ameaças de paralisação dos motoristas, o então ministro da Economia, Pedro Siza Vieira disse numa entrevista à RTP 3 que a lei é antiga e faz sentido ponderar-se mudanças. “É uma questão que tem de ser equacionada do ponto de vista política. A lei é dos anos 70 e faz sentido pensar se a devemos manter ou não”, afirmou.
Siza Vieira concretizou mesmo dizendo ter "a convicção de que precisamos de melhorar a regulação das situações de trabalho, de melhorar a situação dos trabalhadores e da qualidade do emprego. Desse ponto de vista, a interlocução e a negociação com os sindicatos é absolutamente essencial”.
A hipótese provocou a intervenção do próprio Presidente da República que questionado se sobre a possibilidade de se discutir a lei da greve no futuro, colocou de lado essa hipótese: “Neste momento isso não está em causa. Nenhum partido apresentou uma proposta ou projeto, nem o Governo. Periodicamente há intenções, mesmo em programas eleitorais, mas essa matéria não é uma questão que esteja na ordem do dia“.
O mesmo Marcelo que propõe agora que o Parlamento, o Governo e os sindicatos avaliem o atual enquadramento legal tendo em conta "alterações na organização sindical, movimentos diferentes, formas diferentes de manifestação e de greves" que suscitam "desafios novos".