A violência jihadista já obrigou mais de meio milhão de pessoas a fugir de Cabo Delgado, em Moçambique. 45% delas são crianças. Os dados preocupantes são revelados em entrevista à Renascença por António Vitorino.
O português que lidera da Organização Internacional das Migrações reconhece que as autoridades moçambicanas “não têm capacidade para responder à ameaça jihadista” e quer “colocar o tema na agenda internacional”.
Vitorino que reconhece o papel do bispo de Pemba e do Papa Francisco na chamada de atenção para Cabo Delgado e está expetante quanto à visita, este mês, de Augusto Santos Silva a Moçambique.
Na entrevista exclusiva à Renascença, o ex-comissário europeu diz que, devido à pandemia, há hoje no mundo três milhões de deslocados bloqueados pelo fecho de fronteiras e que o número de menores migrantes não acompanhados tem vindo a crescer, assim como os migrantes por razões climáticas.
Sobre os migrantes que têm chegado ao Algarve, este responsável da agência das Nações Unidas aponta a necessidade de diálogo político entre Portugal e Marrocos.
A Organização Internacional para as Migrações (OIM) tem acompanhado de perto a situação em Cabo Delgado, em Moçambique. Que números tem sobre a situação e que relatos chegam do terreno?
Temos atribuído uma grande prioridade à situação em Moçambique, desde há dois anos, porque estamos a falar de cerca de 630 mil pessoas deslocadas por duas razões. A primeira, por situações climáticas extremas. Dos dois ciclones que atingiram há dois anos Moçambique, o Idai e o Kenneth, ainda restam 100 mil pessoas deslocadas.
Mais recentemente, durante este último ano, estamos a falar de cerca de 520 mil pessoas deslocadas em virtude da situação de insegurança na província de Cabo Delgado, pessoas que se deslocam também para as províncias de Nampula e Niassa. É uma situação humanitária muito preocupante porque as pessoas, se encontram em condições de vida muito precárias, com necessidades de apoio da comunidade internacional e neste momento posso dizer-lhe que a OIM é, provavelmente, a agências das Nações Unidas com o maior número de pessoal envolvido nas operações de apoio às pessoas deslocadas pela insegurança e alterações climáticas. Incluindo, as três mil pessoas que foram deslocadas neste último fim de semana, por causa da tempestade tropical que afetou Moçambique.
Pemba tem sido uma das cidades que tem acolhido muitas famílias, sobretudo, crianças que fogem de Cabo Delgado. Que necessidades urgentes têm estes deslocados e que ajuda é prestada pela OIM?
Sublinhou um aspeto muito importante: 45% dos deslocados são crianças. Isso diz bem da dimensão da crise humanitária que se vive. As necessidades são muitas. São sobretudo, de alojamento.
Nós gerimos 77 locais de recolha e apoio às pessoas deslocadas, mas uma grande maioria dos deslocados encontra-se nas comunidades, a viver em condições precárias, junto de famílias, sobretudo sem meios de subsistências. Alojamento é, portanto, a primeira das prioridades. Abrigo, dar às pessoas um sítio onde possam dormir.
Em segundo lugar, há necessidades do ponto de vista higiénico e sanitário. Abastecimento de água, distribuição de cobertores, um mínimo de roupa para que as pessoas possam viver. Afetadas pela situação climática e pelos ataques das organizações jihadistas, muitas vezes as pessoas fogem apenas com a roupa que têm no corpo.
Em terceiro lugar, há a situação sanitária, que é obviamente muito preocupante na medida em que este tipo de condições de vida leva a que facilmente possa proliferar a Covid-19 e temos a necessidade de apoiar as pessoas.
Em entrevista à Renascença, recentemente, o escritor moçambicano Mia Couto falava da gravidade da violência em Cabo Delgado e dizia que a situação carecia de uma resposta internacional. Que leitura faz da forma como as autoridades moçambicanas têm atuado e da necessidade dessa intervenção internacional?
O desafio de segurança é central. Sem segurança não é possível criar condições de melhoria da vida das pessoas. Uma das dificuldades que temos na operação em Cabo Delgado, é precisamente aceder às pessoas. Elas estão em pânico, em virtude dos ataques terroristas que se têm vindo a intensificar nestes últimos tempos e a expandir.
Não se trata só de ataques terroristas na zona Norte de Moçambique, mas também já na Tanzânia, ligados a um grupo jihadista que é controlado a partir da República Democrática do Congo.
A capacidade de resposta à situação de segurança é central. O Estado moçambicano tem envolvido as suas forças de segurança, mas não tem capacidade de responder em toda a dimensão, naquilo que é uma ameaça jihadista que já tem vindo a expandir-se desde o Corno de África, da Somália, atingindo agora a Tanzânia e o Norte de Moçambique.
A maior preocupação que tenho, e nesse aspeto há sinais positivos, é colocar Moçambique na agenda internacional. Para isso, tem sido fundamental a ação do bispo de Pemba, que tem tido um trabalho notável de chamar a atenção para a situação humanitária que se vive, e do Papa Francisco que, já por duas vezes, fez referência nas suas homiliadas à situação humanitária de Cabo Delgado.
Apesar disso, o nosso balanço é que a operação humanitária continua subfinanciada e, portanto, é necessário que a comunidade internacional reforce o seu compromisso com o apoio humanitário às populações deslocadas. Isto foi sublinhado há poucas semanas pelo secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, e por outro lado é necessário que a comunidade internacional, em coordenação com o governo de Moçambique, quer no âmbito da SADEC [Comunidade de Desenvolvimento da África Austral], quer no âmbito da cooperação da União Europeia e Moçambique criem as condições para responder à ameaça de segurança.
Falou da preocupação em colocar Moçambique na agenda internacional. Em que medida é fundamental o esforço que será feito, ainda este mês, pelo ministro dos Negócios Estrangeiros (MNE) português, que foi mandatado pela UE para criar um canal de diálogo com Moçambiqu? Que expetativa tem quanto a essa missão?
Acho que Portugal tem feito um trabalho muito importante junto da UE para sensibilizar a União Europeia para a situação que se vive em Moçambique e já teve alguma tradução prática com a libertação de um conjunto de financiamentos para apoiar as operações humanitárias, quer das agências da ONU quer das organizações não-governamentais que operam em Cabo Delgado.
A visita que o MNE português fará a Moçambique este mês é um ponto alto na chamada de atenção da comunidade internacional para a necessidade de apoiar os esforços das autoridades de Moçambique e da sociedade civil moçambicana. Cumpre especial destaque para a Igreja Católica na região de Cabo Delgado, não apenas do ponto de vista humanitário, que é a prioridade das prioridades, porque há pessoas que estão a sofrer condições de vida extremamente penosas, mas também do ponto de vista da criação das condições de segurança para que essas populações possam dar um rumo à sua vida.
Não sei se as pessoas têm verdadeiramente consciência, mas quando falamos de mais de 500 mil pessoas deslocadas, significa que é mais de meio milhão de pessoas que estão a viver em sítios onde nunca estiveram, não têm condições para criar raízes para produzir agricultura.
E é necessário procurar soluções duradoras para as suas vidas. Devo dar um exemplo, de um campo que temos na Beira onde uma das formas de encontrar resposta foi criar uma zona do campo que os próprios deslocados pudessem cultivar. Essa atividade fornece não apenas os beneficiários do campo, mas também já começa a beneficiar os habitantes da cidade mais próxima com a distribuição dos produtos agrícolas.
Falou dos deslocados climáticos em Moçambique. Pergunto sobre essa realidade a nível global: têm aumentado muito os migrantes por causa das alterações climáticas?
Cada vez mais. Os números nunca são muito exatos, porque as realidades das alterações climáticas são muito diferentes de um sítio para outro. Se olhar para Moçambique, verá que a maior ameaça são as tempestades tropicais, os ciclones e as cheias. Mas se olhar para a região do Sahel em África, o problema é o oposto – é a falta de água, a desertificação e a incapacidade de as populações continuarem a viver com base na sua exploração agrícola, por falta de recursos.
Se olhar para as Caraíbas e Ilhas do Pacífico, o problema é de outra natureza. Com o aquecimento global há uma subida do nível dos oceanos e a terra disponível para viver é cada vez mais reduzida.
Há inclusivamente, no Bangladesh, onde a subida das águas do mar transformou aldeias, pessoas a usar estacas para construírem casas em cima delas.
Cada vez mais, em todo o lado, as alterações climáticas levam a impactos nas vidas das pessoas e obrigam as pessoas a deslocar-se. A realidade é diferente de um sítio para o outro e a solução exige investimentos para prevenir, mitigar os impactos das alterações climáticas e também para encontrar soluções alternativas quando as populações não podem voltar aos sítios de onde são originárias.
De uma coisa estou absolutamente seguro: este vai ser um dos grandes fatores de deslocação de populações no mundo inteiro por diferentes razões e daí a importância da agenda do Acordo de Paris e daquilo que tem sido a ação do secretário-geral António Guterres para tornar claro que as alterações climáticas devem ser uma prioridade da agenda internacional de todos os países do mundo.
Apontou a situação das crianças migrantes em Moçambique. Como é a situação na Europa? Portugal tem acolhido muitas crianças que chegam sozinhas. Neste momento há muitas crianças sem pais nesta situação de deslocados?
Há, absolutamente. Creio que os números de menores não acompanhados estão a crescer em todo o lado. Na sequência daquele terrível desastre que aconteceu no campo de Mória, na ilha de Lesbos, deslocámos cerca de sete mil menores não acompanhados que estavam em várias ilhas gregas para o continente grego. Fizemo-lo num curtíssimo espaço de tempo.
Felizmente, posso dizer – graças à generosidade de países como a Alemanha, Portugal, França e Suécia – foi possível depois relocalizar esses menores não acompanhados em vários outros países europeus.
Esta realidade não se restringe aos fluxos migratórios em direção à Europa. Em relação aos fluxos migratórios africanos, é bom que as pessoas tenham consciência que 80% dos africanos que emigram não se dirigem à Europa; 80% dos africanos que estão em movimento dirigem-se a outros países africanos.
Se olhar para zonas como o Corno de África, a Etiópia, Djibuti, temos situações humanitárias dramáticas, porque muitos menores não acompanhados, sobretudo adolescentes, tentam chegar à Arábia Saudita ou aos países do Golfo, onde pensam ter melhores oportunidades de vida para o seu futuro. E fazem-no através da travessia do Golfo de Áden e de um país que está em guerra civil que é o Iémen, correndo enormes riscos de saúde, de sobrevivência e segurança pessoais.
Para nós, que trabalhamos de perto com a UNICEF nessa matéria, a situação dos menores não acompanhados é crescentemente preocupante.
Em que medida a situação de pandemia está a afetar o tipo de apoio que é prestado aos migrantes? Há menos pessoas a chegar, por exemplo, à Europa? Que impacto tiveram estes últimos dez meses nos fluxos migratórios?
A pandemia impacta todos por igual, sejam migrantes, sejam nativos, sejam migrantes regulares ou irregulares. Os números que temos mostram que o impacto da pandemia nos fluxos é bastante assimétrico.
Há uma quebra significativa de chegadas às ilhas gregas, no Mediterrâneo oriental, em cerca de um terço do que sucedeu em 2019. Mas, pelo contrário, se olhar para o Mediterrâneo central – isto é, chegadas sobretudo a Itália – o número este ano é três vezes mais do que era em 2019.
Se olhar para o Mediterrâneo ocidental, para a chegada a Espanha oriundas do Norte de África, o número é mais ou menos o mesmo na parte mediterrânea, mas, pelo contrário nas viagens para as ilhas Canárias, que é extremamente perigosa porque é no Oceano Atlântico que é bastante mais agressivo do ponto de vista das viagens marítimas, temos a chegada de quase 20 mil pessoas às Canárias durante a pandemia, sobretudo oriundas de Marrocos ou do Senegal.
Além do mais, no mundo inteiro, temos cerca de três milhões de migrantes em movimento que estão bloqueados pelo fecho das fronteiras, pelos confinamentos, pelas restrições aos movimentos impostas pelos países em virtude da luta contra a pandemia. Nós não sabemos o que é que esses três milhões de pessoas podem fazer. Se vão permanecer aí, bloqueados, em condições às vezes muito difíceis, se vão continuar a mover-se, independentemente da pandemia.
O exemplo mais marcante que posso dar é que vimos, nas duas primeiras semanas da pandemia, em março, uma redução das operações das redes de traficantes de seres humanos na Líbia. E, ao fim de duas semanas, essas redes retomaram a sua ação nos mesmos termos.
Quando estamos a lidar com pessoas que têm intuitos criminosos e pessoas que são vítimas do desespero, angústia e da falta de futuro, a pandemia passa para segundo plano. E isso é um fator preocupante, porque essas pessoas são vulneráveis à contaminação. Estão fora do controlo de qualquer autoridade para serem apoiadas do ponto de vista sanitário.
A questão de Marrocos também se coloca em Portugal. Têm chegado à costa algarvia migrantes marroquinos. Pode falar-se numa rota? É uma questão que Portugal tem de tratar dos pontos de vista de segurança e humanitário?
Os números são ainda muito reduzidos, mas os sinais que chegam é de que obviamente haverá uma operação montada a partir de Marrocos, que tem tido um alcance muito limitado, e acho que a resposta das autoridades de segurança portuguesas tem sido a resposta adequada.
Agora, o que é necessário é ter em linha de conta de que isto exige um diálogo entre Portugal e Marrocos, ao nível político para também estabelecer regras sobre vias regulares de imigração. Isto é, combater a operação de redes clandestinas, por uma política transparente de emigração legal, oriunda de Marrocos para Portugal, que passa pela celebração de um acordo bilateral de emigração laboral – como, aliás, Portugal tem com outros países como a Ucrânia, o Nepal e Cabo Verde.
Acho que há que tratar a questão de Marrocos ao mesmo nível e com os mesmos instrumentos.