Marcelo disse o óbvio: não contem comigo para desencadear uma crise política naqueles escassos dias que me restam para o poder fazer (até 8 de Setembro!). Isso seria, explicou, acrescentar a todos os factores de instabilidade aos quais não podemos fugir (desde a pandemia em curso a uma crise económica e social que se anunciam como as piores do século) novo fator de perturbação, simplesmente irresponsável. Com estas declarações o presidente deixou um aviso claro aos partidos de esquerda: entendam-se.
Costa, na última entrevista ao Expresso, tinha já deixado a mesma mensagem: não contem comigo para, vendo as sondagens em alta, provocar uma crise política e desencadear eleições antecipadas.
Pelo meio, também tinha anunciado que o Bloco Central era tão contranatura como ir à caça “de gambuzinos”. Em rigor, no último debate do Estado da Nação, já mostrara o seu interesse em apenas refazer a coabitação da geringonça, formalizando o casamento “de papel passado” até final da legislatura. O problema está em saber para além do PS que ganhariam os restantes parceiros com isso, agora que a crise avança a passos largos e o bolo da bonança se transformou numa previsão de amargura e austeridade.
O PCP, depois do divórcio atribulado nas últimas legislativas, parece que ficou vacinado e já disse, alto e bom som, que votará caso a caso o que lhe parecer, pese embora sem “reservas mentais”. É preciso não conhecer o PCP para pensar que a festa do Avante pode servir para lhe comprar o “sim”.
Resta, por isso, a António Costa prosseguir o namoro a Catarina que vai vender “caro” qualquer aliança. Para já os socialistas terão de cumprir escrupulosamente o que ficou por concretizar em relação a 2020 e que a líder do Bloco já mostrou não deixar cair. Não será fácil e, sobretudo, algumas das medidas serão bastante caras.
A líder do Bloco fará questão de as ir relembrando uma a uma. Na semana passada, numa pedreira, Catarina lembrou a promessa socialista de por fim ao “fator de sustentabilidade” no cálculo das pensões das profissões de desgaste rápido. Ontem o Conselho de Ministro deu cumprimento ao compromisso assumido. Enfim, trata-se de mineiros e bailarinos, nada demais…
Desde Junho que a Comissão Europeia deu acordo às alterações do IVA da eletricidade previstas para este ano, mas até agora não parece estarem reunidas as condições para reduzir ainda mais a margem de redução de um imposto que, só nos primeiros sete meses do ano, já sofreu uma quebra de receitas de quase 13 por cento.
Por outro lado, exigir a vinculação ao Estado de mais 9 mil trabalhadores na saúde a somar aos exigíveis para reforço ainda em falta no SNS e, acima de tudo, na Educação (onde as exigências do bloco vão do reforço do número de professores ao de auxiliares de ação educativa) e quando as despesas com o pessoal estão a crescer a 6,5 por cento enquanto o PIB caiu, no último trimestre, 16,5 por cento, também não vai ser fácil assumir no imediato.
Podem os bloquistas deixar escapar esta oportunidade de se tornarem os parceiros de referência do Governo? Poder, podem. Mas não é certo que isso não venha a reverter em ainda maior popularidade para os socialistas. Em tempo de crise o povo raramente opta por grandes mudanças e a verdade é que António Costa tem sido um bom gestor em tempos de instabilidade. O seu “otimismo irritante” é um bom antídoto para a depressão coletiva em que todos estamos em risco de cair. Se compararmos, por exemplo, a sua gestão com a desastrada gestão do PSOE aqui mesmo ao lado, em Espanha, Costa pode mesmo parecer um moderado social democrata.
Assim sendo, que papel terão os partidos da direita na elaboração e discussão do próximo orçamento? Na elaboração - como Rui Rio disse e bem - não terão papel nenhum, dado que Costa já assumiu que vai elaborar o Orçamento à esquerda e negociá-lo também à esquerda. O que não é obviamente confortável para os partidos da direita excluídos do processo.
Resta-lhes assim, entretanto, estudar e propor alternativas que no tempo oportuno da discussão possam ser vistas, primeiro como credíveis e viáveis e depois como efetivamente alternativas. Até porque, a confirmar-se o agravamento da crise económica, cenário considerado o mais expectável, ou a verificar-se a tão temida explosão de uma nova crise bancária de origem interna ou externa, ninguém perdoará à direita uma atitude de inatividade que possa confundir-se como política de” terra queimada ou tanto pior melhor”.
A crise social, que já começa a dar sinais de corrosão do atual tecido social, pode agravar-se muito com um eventual descontrole da pandemia e PSD e CDS terão de focar-se na luta e apresentação de soluções para a sua resolução. Deixar a bandeira da defesa dos trabalhadores e da luta contra a pobreza aos partidos de esquerda, designadamente ao Bloco, pode ser um erro com custos futuros gravíssimos, principalmente para os partidos considerados “do sistema”.
Dar demasiada importância às franjas representadas pelo Chega, tentando focar a luta política numa espécie de marcação cerrada à agenda marginal dessa nova direita extremista, populista e racista que vê na agenda de Ventura o avesso da velha agenda da extrema esquerda, usando os mesmos meios intimidatórios, das cartas anónimas ao vandalismo e acobardamento, por mais “espernéfica” que esta se apresente, é um erro ainda maior.
CDS e PSD vão ter de repensar o seu futuro. Vão provavelmente ter de recolocar o seu objetivo eleitoral na conquista da pequena classe média esmagada por impostos ao longo dos anos, descrente de um estado social em pleno desmoronamento, mas cujo bom funcionamento não podem dispensar, sensível à proteção dos mais pobres e com políticas activas de proteção do emprego, à melhoria da educação e onde os funcionários públicos ( médicos, professores, profissionais de justiça, pequenos empresários, senhorios ou arrendatários) sempre tiveram lugar. Pode o PS virar as costas às elites sociais democratas, mas estas não podem dar-se ao luxo de virar as costas aos eleitores moderados do partido socialista que não se reveem nem no nunismo, nem no cesarismo, nem sequer num certo costismo arrogante que gostaria de andar de braço dado com o Bloco e o PCP, agora e sempre. E de papel passado.