Com um manifesto já tornado público, e a que se associam artistas, médicos e investigadores de renome, está lançado o debate sobre a legalização da eutanásia (ainda que sob a designação ténue de “morte assistida”). É caso para dizer que ainda bem. O pior que nos podia acontecer era ver mais uma vez aprovada da noite para o dia, sem que nos déssemos sequer conta, perante a mais profunda ignorância da sociedade, essa nova lei, na voragem legislativa fracturante a que nos habituamos nos últimos tempos.
O tema é difícil e aconselha, como sempre, prudência e um extremo respeito pelas convicções alheias. Mas nem isso, nem o peso das personalidades envolvidas nos devem impedir de participar no debate onde todos temos uma palavra a dizer (não apenas os médicos, mas, também, os mais humildes calceteiros), porque se trata de uma questão civilizacional e da escolha dos valores fundamentais da colectividade onde queremos viver.
Em confronto estão, de facto, duas visões opostas sobre a civilização em que nos inserimos. A que defende uma cultura de vida, em que toda a vida é vista e defendida como “inviolável”, tal como reconhece a Carta dos Direitos do Homem, absorvendo, no fundo, a concepção de vida como um valor “sagrado”, bebida da cultura de raiz judaico/cristã, mas não se esgotando nela.
Do lado oposto, temos a concepção que o Papa Francisco, como antes o Papa Bento XVI, classificaram como “uma cultura de morte”, em que a vida deixa de ser considerada, sempre e em qualquer das suas fases e das suas circunstâncias, com igual “dignidade”. Assim, a vida acaba avaliada pelo próprio e pelos outros em função da sua subjectiva “utilidade”, dando acolhimento à generalizada cultura do “descarte” – dos doentes, dos velhos, dos mais frágeis, dos pouco produtivos, num crescendo imparável, cujas consequências últimas começam a estar infelizmente à vista em múltiplas dimensões da nossa vida colectiva.
Um descarte que vai a par de um culto exacerbado dos direitos individuais e do claro declínio dos deveres pessoais e colectivos face ao outro. Vai-se construindo a pouco e pouco (e esta lei será mais uma peça no caminho) uma sociedade que se desresponsabiliza de cuidar, mas em contrapartida promete a mais total liberdade para que cada um possa cuidar-se ou desistir de o fazer à sua maneira. É o individualismo utilitarista levado às últimas consequências que, neste caso, acaba por associar-se de forma perversa com misericórdia e compaixão.
Não está em causa a recusa do chamado encarniçamento terapêutico que o Testamento Vital já contempla e bem. Nada justifica o prolongamento irracional da vida para além dos limites do bom senso e da vontade do próprio doente, que deve ser livre de recusar tratamentos que considere excessivos ou desproporcionados. A doutrina cristã não o defende nem o aconselha. Por isso é falsa a acusação aos cristãos de uma obstinação de raiz confessional por um prolongamento desnecessário da vida em sofrimento ou sequer o contraponto entre a aposta nos cuidados paliativos em alternativa à eutanásia. São coisas diferentes.
Claro que a ausência destes cuidados e a desgraçada situação de muitos doentes sujeitos a sofrimento desnecessário, a quem a sociedade se mostra incapaz de garantir uma qualidade de vida minimamente razoável, seja o terreno fértil para a discussão demagógica sobre os “méritos” da morte assistida.
Na política de pequenos passos, reconhecido o direito à morte assistida fica escancarada a porta a todos os outros tipos de eutanásia, incluindo a mais perversa e nunca assumida das suas formas (a económica, para poupar dinheiro nos impostos ou outros gastos).
É porque a vida deve ser consagrada como um direito inviolável que há o dever da sociedade como um todo de a defender, inclusivamente de nós próprios. Nenhum respeito pelos direitos individuais e pelo exercício da liberdade própria se deve sobrepor a esse dever colectivo de proteger a vida, toda a vida, qualquer vida.
Porque a sua dignidade é igual e não depende nem pode deixar-se depender, ao invés do que sustentam os subscritores do manifesto, “de critérios de dignidade que cada um construiu ao longo da sua vida”. Ninguém perde “dignidade” por razões de doença ou incapacidade.
É por isso que não hesitamos em colocar a vida de muitos outros em risco numa operação de busca e salvamento sem deixar à sua sorte o turista/surfista, por mais irresponsavelmente que tenha arriscado ou escolhido colocar a vida própria em risco num dia de temporal. É por isso que temos a obrigação moral de salvar todos, seja qual for a sua situação, incluindo os que se fizeram ao mar em botes sobrelotados, que infelizmente sabem ter escassas ou nulas hipóteses de chegar a terra sem essa ajuda… e não os deixamos entregues nem à sua sorte, nem à sua escolha (mesmo que, por absurdo, tivesse havido lugar a escolha).
É evidente que os subscritores do manifesto nos falam do direito a morrer em certas condições muito específicas e não parecem estar a colocar em causa todas as outras dimensões deste direito. Daí o risco acrescido de nos perdermos num debate casuístico e emocional, em que todos corremos o risco de “aparentemente” estar de acordo, mas que tem todos os ingredientes para nos desviar do essencial.
Fala-se, obviamente, apenas de situações extremas de “doentes que sofrem e a quem não resta outra alternativa”, mas acrescentam de imediato que essa avaliação cabe ao doente e não à sociedade fazê-la, admitindo o subjectivismo inerente à avaliação, uma vez que a alternativa terá de ser “tida por aceitável ou digna” pelo visado.
Não se trata, como parece pretenderem fazer crer, do direito a não ver a sua vida dependente das concepções religiosas alheias. Essa é uma falsa questão. O problema é
ético, não religioso. Sob a aparência de um acto de compaixão e misericórdia para com quem sofre, abre-se a porta à construção de um caminho de desresponsabilização colectiva sobre o destino do outro, puro individualismo que geralmente leva à mais desapiedada indiferença.
Afirma-se, por exemplo, que a “Constituição da República Portuguesa define a vida como direito inviolável, mas não como dever irrenunciável”, pelo que “a criminalização da morte assistida no Código Penal fere os direitos fundamentais relativos às liberdades”. Então, um direito inviolável não implica necessariamente o dever de o não violar? E quem define quando posso eu renunciar ou não a esse direito? E fazê-lo em nome de que convicções “laicas”, mesmo que exclua por inteiro todas as “confessionais”.
A que título é sequer legítimo (para já não falar do dever estrito…) continuar a fazer tudo para tentar salvar o jovem que tenta atirar-se da ponte porque se sente num sofrimento “atroz” e sem “alternativa” perante o seu primeiro desgosto de amor? Dir-se-á que se impõe o bom senso. Mas o bom senso aqui tem como bengala o mais puro utilitarismo, a vaga percepção de que “há vidas que valem a pena ser vividas e outras que não, ou já não…”. Sem o assumir nunca, é isso que acaba a distinguir as várias situações. Daí à eutanásia económica não é um passo de gigante, é um pequeno passinho.
Nestas questões civilizacionais há sempre o passo seguinte, que no aborto acabou com a liberalização total “até às dez semanas”, consagrada no aborto “a pedido”, e no casamento gay já vai na adopção expressamente excluída da lei inicial. No caso da eutanásia o passo seguinte será ninguém poder opor-se a que um individuo de perfeita saúde física alegue um sofrimento psicologicamente terrível por causa da sua infelicidade/solidão (quantas vezes a pior das dores sofridas…), com o desabafo comum de “já cá não ando a fazer nada…”, concretize o seu suicídio com a preciosa ajuda de uma injecção misericordiosamente ministrada pelo médico assistente.
Para já não falar do passo final: o direito/dever do próprio médico a por fim às vidas que antecipe não poderem reunir as condições de qualidade/ dignidade tidas como razoáveis. O eugenismo não é coisa que não possa voltar a existir.
Em que medida pode a sociedade assistir impassível e serena a isto, sem que lhe assista nenhum dever ou sequer direito a intervir face à renúncia livre e consciente do direito a viver da generalidade dos nossos idosos. Agravada pelo lado perverso de uma sociedade crescentemente egoísta, sedenta da redução de custos do SNS e consequente redução de impostos futuros.
Claro que nada disso está subjacente na argumentação dos proponentes do manifesto. Mas estas mudanças culturais têm, a par dos objectivos “óbvios” e muitas vezes “benignos” e bem-intencionados, outros danos colaterais. Vale a pena debatê-los desde já.
Há mais de uma década acompanhei “in loco” o feroz debate sobre a legalização da eutanásia na Holanda e na Bélgica. O mais chocante foi ver as declarações dos médicos holandeses sobre a ausência de qualquer mudança prática, uma vez aprovada a lei que apenas viria, segundo afirmaram muitos deles, consagrar uma prática já então corrente.
Hoje escandaliza-nos a deriva “individualista” destas sociedades (tão promotoras e respeitadoras de todas as liberdades individuais), bem patente na forma como estão a tratar a questão dos refugiados. E estamos a falar de governos de esquerda não de ideologias nem derivas “fascizantes”. Como o povo costuma dizer na sua infinita sabedoria: “Isto anda tudo ligado…”.