Roque da Cunha: “Estamos a aproximar-nos da tempestade perfeita” na Saúde
27-06-2019 - 00:11
 • Eunice Lourenço (Renascença) e Helena Pereira (Público)

O secretário-geral do Sindicato Independente de Médicos (SIM) diz que os privados “estão a crescer como nunca” com a “geringonça” e alerta para maior falta de médicos no SNS no futuro imediato.

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O secretário-geral do Sindicato Independente de Médicos (SIM) aponta o dedo ao primeiro-ministro. Em entrevista à Renascença e ao Público, Jorge Roque da Cunha acusa António Costa de fragilizar propositadamente os médicos do setor público e com isso facilitar a vida ao setor privado.

Greves de médicos e de enfermeiros, serviços a ameaçar fechar no verão por falta de profissionais, cirurgias adiadas por falta de materiais básicos, tratamentos de oncologia que não arrancam por falta de exames. Como é que chegamos aqui?

Temos uma situação que é aquela que é visível por todos os portugueses e que só não é visível pelo Governo, que está numa atitude de denegação. Dados objetivos do Tribunal de Contas dizem que nunca o investimento no Serviço Nacional de Saúde (SNS) foi tão baixo. Estamos a falar de 4,8% do PIB.

Esta semana, o ministro das Finanças veio dizer que o SNS nunca teve tanto dinheiro e tanta gente.
Provavelmente isso terá sido na sua viagem para Bruxelas a tentar justificar o injustificável. Os problemas que ocorrem nas maternidades no Sul do país e todos os dias nos serviços de urgência deviam merecer por parte do sr. ministro das Finanças algum respeito pela verdade.

Quando se verifica que, num contexto de maior carga fiscal de sempre, de maior dívida pública em termos nominais, o Tribunal Constitucional identifica que, em relação ao período da troika, há um menor investimento em recursos humanos e em recursos materiais com uma população cada vez mais envelhecida, só um Governo totalmente insensível diz isso e um Ministério das Finanças que só à conta da caça ao voto procura tapar o sol com a peneira.

Percebo que, para o dr. António Costa, o SNS seja um irritante, é uma coisa que o aborrece. Na semana passada, disse que, porventura, iria pedir desculpa aos portugueses, mas isso não adianta. Era importante que criasse as condições para que os médicos se sentissem bem no SNS e que se recorresse cada vez menos a empresas de prestação de serviços. Estamos a falar de 110 milhões de euros de prestadores de serviços. Ainda recentemente a Rádio Renascença identificou um médico que recebe 330 mil euros por ano. Não é admissível que um Estado ache que gastar esse dinheiro é tratar bem os seus funcionários. Em 10 anos, entre 2005 e 2015, reformaram-se no topo da carreira 1428 médicos e apenas 300 foram substituídos.

Tem uma greve marcada para terça-feira e negociações ainda esta sexta. O que é preciso para se evitar ainda esta greve?
Era preciso que o Governo nestes três anos tivesse tido alguma seriedade na forma como lida com os seus médicos. Uma greve médica é sempre o último dos últimos recursos. A nossa última greve foi feita em maio, o então ministro, Adalberto Campos Fernandes, dizia que concordava com 95% das nossas reivindicações, mas nada fez.

E a atual ministra Marta Temido concorda com quanto?
Concorda em ser um pouco inconsequente naquilo que diz. Quando se diz que é necessário diminuir listas de espera, nós temos uma proposta concreta: as 18 horas de urgência passarem a ser 12 e ficando essas seis horas para recuperação de listas de espera de cirurgias e consultas. A ministra diz que não é possível. No que tem a ver com equiparar os médicos do Ministério da Defesa aos do SNS, quando na medicina legal os médicos querem ser respeitados e diminuir a hemorragia dos seus profissionais, o que assistimos? Propaganda a dizer que há mais meios.

Quando esta insensibilidade ocorre por parte dos nossos governantes, nós como médicos o que pretendemos é que exista um SNS verdadeiramente acessível a todos. Não adianta bater no peito a dizer-se que se gosta muito do SNS ou identificar problemas como a Lei Bases da Saúde que nunca impediu quem quer que seja de fazer o que quer que seja para investir na saúde.

Ainda ontem os ministérios das Finanças e da Saúde anunciaram novas vagas.

As vagas que foram anunciadas no concurso de abril são 350 a nível de médicos de clínica geral e familiar e 800 a nível hospitalar têm um fenómeno que é o da multiplicação das vagas. Vemos o Ministério da Saúde dizer que abriu 167 vagas para o interior, para sítios carenciados que são justamente uma parte dessas 800.

Vão sendo anunciadas vagas que no fundo são sempre as mesmas?
São sempre as mesmas com uma única preocupação: não a de resolver o problema, mas de tapar o sol com a peneira. É lamentável verificar-se que aos serviços médicos do privado [a que o SNS recorre], o Governo deve dois anos e que por isso os privados vão deixar de o prestar. É uma obsessão de esconder a despesa para no final do ano eventualmente dizerem que as contas não são exatamente certas. Se eu não pagar a minha renda de casa e a fatura da eletricidade e adiar para dezembro, naturalmente que o défice é zero. Devia haver respeito pelos portugueses e pelos profissionais.

Os problemas da saúde são, sobretudo, um problema das Finanças?
Queremos um SNS em que os médicos sejam contratados por concurso, que haja progressões por concurso, que a hierarquia seja respeitada por todos e não seja uma hierarquia política. Há uma questão financeira porque há um subfinanciamento crónico, mas também há uma questão de organização. Não faz sentido nenhum, havendo capacidade financeira para pagar a um médico [tarefeiro] 50 euros à hora, que se continue a fazer isso.

Porque há um tão grande recurso a tarefeiros?
É uma tentativa de fragilizar os médicos que estão no SNS - não tenho a teoria da conspiração - mas creio que é para criar-lhes condições para saírem, pedirem a reforma mais cedo. Nunca como agora, os grupos privados cresceram como cresceram. Nunca como agora, os grupos privados investiram tanto em equipamentos.

Estão a crescer mais agora que no tempo da troika?
Estão a crescer mais e a um nível tal que neste momento em termos tecnológicos estão à frente dos serviços públicos. Por exemplo, em termos oncológicos no Norte do país os equipamentos no privado estão mais avançados e o Estado recorre a eles. Uma atitude de tapar o sol com a peneira, não investindo no SNS para as contas cosmeticamente aparecerem corretas, é um erro político. Pode dar votos no curto prazo, mas causa sérios danos à população, particularmente à mais desfavorecida. No médio prazo, os médicos conseguem encontrar alternativas mais simpáticas e menos stressantes no privado. O dr. António Costa não liga à saúde. Temos o dr. Centeno a dizer que isto está o melhor dos mundos e temos uma ministra da Saúde com uma incapacidade total de criar as condições para os médicos e melhorias tecnológicas.

Os sindicatos têm acusado o Governo de não conseguir travar e até promover a fuga de médicos para o setor privado e para o estrangeiro. É isso que explica a falta de médicos? Ou devíamos estar a formar mais?
Há um gravíssimo erro, um crime político que se cometeu no passado que foi uma total irracionalidade nos numerus clausus na Medicina. Há 35 anos, entravam 80 futuros médicos em cinco faculdades. Houve anos em que entraram 50. Estamos a aproximar-nos do pior dos dois mundos, da tempestade perfeita: um conjunto imenso de médicos, centenas, que daqui a três, quatro, cinco anos se vai reformar e só daqui a algum tempo é que os médicos que se estão a formar serão suficientes.

Defende o regresso à exclusividade?
Essa exclusividade foi retirada pelo dr. Correia de Campos e a dra. Ana Jorge porque diziam que custava muito dinheiro. É o primeiro ponto do nosso pré-aviso de greve.

Mantém a exigência de redução do número de pacientes por médico de família?
Os 1.900 em vez dos 1.550 criam uma aparente acessibilidade que não é possível.