Várias organizações que acompanham a situação da liberdade religiosa na China têm denunciado um aumento da perseguição aos cristãos nos últimos anos, nomeadamente desde que Xi Jinping se tornou secretário-geral do Partido Comunista Chinês e Presidente do país há sete anos.
Recentemente regressado a Portugal depois de oito anos à frente da Universidade de São José, em Macau, o padre Peter Stilwell confirma os relatos de perseguição na China continental mas alerta que há importantes variações regionais.
Nesta entrevista à Renascença, o padre Peter fala ainda do acordo celebrado entre o Vaticano e Pequim e das notícias que chegam da perseguição a outras comunidades religiosas, nomeadamente os muçulmanos de etnia uigur.
Um dos seus objetivos quando foi para lá era conseguir que alunos da China continental fossem estudar para a Universidade. Não conseguiu. Foi um fracasso?
A Igreja Católica está em Macau há mais de 400 anos a tentar posicionar-se na China de maneira a tornar presente a mensagem do Evangelho e tem, ao longo desses 400 anos, tido avanços e sofrido recuos. Portanto, não me surpreendeu que fosse uma coisa lenta conseguir a autorização para que os alunos da China viessem estudar para a Universidade de São José.
Um pouco como o Vaticano, também a China pensa em décadas e séculos mais do que em anos e eu percebia nas entrelinhas que lhes fazia alguma confusão que a Igreja dedicasse tanto esforço à construção e implantação de uma universidade e que isso não fosse para criar adeptos da Igreja Católica. Um dos altos funcionários do Estado perguntou-nos se obrigávamos os alunos a rezar no início da aulas, se os obrigávamos a ir à missa, se os obrigávamos a estudar catequese e nós explicámos que não, que não perguntávamos a religião das pessoas ao inscreverem-se, nem ao sair da universidade, que os princípios cristãos eram os que estavam presentes na gestão da vida comum da universidade e na maneira como geríamos a vida universitária, o que não é difícil, já que as universidades nasceram no seio da Igreja Católica, na Idade Média europeia. Fomos explicando que é uma das obras de misericórdia, ensinar.
Um dos altos funcionários dos Negócios Estrangeiros tinha estado na Índia e eu perguntei se tinha visitado a casa da Madre Teresa de Calcutá. Disse que sim, que ficou muito sensibilizado com o trabalho delas e eu disse que ela tinha esse princípio que acolhia pessoas indiferentemente da religião e não as procurava converter à força, porque uma das vertentes da nossa experiência espiritual é encontrar Deus nessas obras de misericórdia, seja no cuidado pelos pobres, no ensino aos ignorantes, isso faz parte da experiência tipicamente cristã.
Mas havia esse receio, portanto acho que há um compasso de espera enquanto as autoridades esperam para ver se a universidade é perigosa.
Há que acrescentar aqui um elemento que se torna circunstancialmente importante, que é a questão de Hong Kong. Porque certos grupos dos jovens que animaram estas manifestações que tem havido em Hong Kong vieram dos quadros de escolas cristãs, portanto aos olhos das autoridades estão marcados como sendo de proveniência cristã.
Houve protestos muito graves em Hong Kong, mas não em Macau. Como é que se explica esta diferença?
Quando houve os acordos para Hong Kong e depois Macau voltarem à administração chinesa foi acordado que os negócios estrangeiros e a segurança nacional pertenciam a Pequim e que cada uma das regiões iria elaborar a sua lei de segurança nacional.
Macau avançou e fez a sua lei, que foi aprovada e que mantém tudo dentro de Macau. Se há casos considerados de perigo para a segurança nacional são julgados pelos tribunais de Macau e ficam dentro de Macau. No caso de Hong Kong tem havido esta longa sessão de protestos que remonta já há uns anos e Hong Kong avançou com uma proposta de lei de segurança que foi chumbada, por assim dizer, nas ruas, pelas manifestações e a recusa da oposição no Parlamento em discutir e votar a lei.
Passados alguns anos, e tendo aumentado os protestos em Hong Kong, o Governo central disse então fazia ele a lei e aplicou uma lei de segurança nacional que é pior do que aquela que estava prevista pelas autoridades de Hong Kong, porque estabelece que conforme a gravidade dos crimes, segundo as autoridades locais e as centrais, as pessoas podem eventualmente ser extraditadas de Hong Kong para serem julgadas por um tribunal na China continental.
Há uma diferença na forma como macaenses e Hong Kong vivem a relação com o Governo central da China?
Macau é muito pequeno, são 700 mil habitantes. Hong Kong são sete milhões. É quase o tamanho de Portugal, em termos demográficos. Portanto há aí uma diferença substancial. Hong Kong tem o estatuto de um grande centro financeiro mundial, sentia-se seguro de si próprio.
Hong Kong também é composto em grande parte por gente que se refugiou da invasão dos japoneses, das guerras civis na China, enfim, gente que saiu da China e que eventualmente nunca esteve de acordo com o que aconteceu no final da Guerra Civil.
Já Macau existe há 450 anos, tem uma população luso-asiática, a comunidade macaense, que está lá há gerações e que faz a ponte entre a cultura chinesa e a ocidental há séculos, conhece e sempre soube gerir estas relações com a China continental ao longo de mudanças de regime, de imperadores, de dinastias, sabendo que às vezes é preciso recuar, outras avançar nestas negociações, é preciso ter calma e não ser confrontacional e isso explica um pouco a diferença.
Houve uma ou outra pequena manifestação a certa altura, há uns anos atrás, mas depois as pessoas viram que em Hong Kong aquilo estava a levar a uma situação que ninguém queria para Macau, de instabilidade e insegurança nas ruas.
As autoridades estavam preocupadas com as universidades e perguntavam-nos que medidas é que tínhamos. Nós respondemos que tínhamos as medidas que eram habituais em todo o mundo, que o campus universitário não era espaço para debates politico-partidários, esse género de coisas, mas nunca sentimos que da parte dos nossos alunos houvesse movimentação que notássemos.
Houve um momento mais difícil com um docente que criticava abertamente o regime de Pequim e por isso foi afastado. Foi criticado por isso. Acha que tomou a decisão certa?
Fui o responsável. Não posso deixar de pensar que agi bem. O processo está em curso, nos tribunais, espero que seja possível ver como uma autoridade independente, como são os tribunais, ajuíza uma decisão sem dúvida difícil na altura.
Durante os seus mandatos celebrou-se o acordo entre o Governo da China e o Vaticano. Como é que recebeu esta notícia?
Foi com surpresa. Eu sabia que as negociações estavam em curso, mas na última fase não sabia que tinham chegado ao ponto de assinar o acordo. Depois ninguém o viu, portanto não sabemos exatamente o que lá está escrito. E não foi assinado pelas chefias, foram figuras de segunda linha que terão assinado.
Terminou em setembro e estão em curso negociações para saber se se prolonga através de um novo acerto. Abrangia, pelo que conseguíamos perceber, a nomeação dos bispos, que é sempre uma questão delicada, e não se sabe muito bem o procedimento, mas parece que Pequim avança com dois ou três nomes e o Vaticano tem a última escolha. Pode dizer que sim ou que não. E se disser que não, haverá outra seleção a seguir.
Havia um acordo semelhante com Espanha no tempo de Franco, e no Século XIX houve entendimentos desse género com vários países, portanto não é uma coisa que seja estranha à tradição da Igreja. O que faz mais confusão às pessoas é que seja um regime comunista, que se diz aberta e publicamente ateu, a escolher os dirigentes da Igreja Católica. Mas isso faz parte da visão que o regime tem de si próprio.
A China não se entende como um Estado acima dos partidos, mas como um partido acima do Estado. É uma visão diferente. É um pouco o prolongamento da visão que tinham os imperadores. Havia toda a administração burocrática, mas acima dessa função pública, semelhante à nossa ideia de Estado, havia o imperador e o imperador não era governado por nenhuma outra lei a não ser o “mandato celeste”.
Desde que ele, ou ela, contribuísse para que o Povo se desenvolvesse harmoniosamente, e havia esta ideia da harmonia com a natureza e com o Céu, então o mandato do Céu ia-se prolongando. O partido considera-se sucedâneo disso e enquanto o partido contribuir para que o povo se desenvolva, que viva em harmonia, que possa ganhar projeção mundial – e olhando para os últimos 30 anos da China ela posicionou-se como não se tinha posicionado há mais de mil anos: é a segunda potência mundial em termos económicos, e há muitos chineses que ainda se lembram dos tempos da fome e de comer grilos.
Portanto este desenvolvimento como que garante que o partido tem legitimidade para governar, está acima dos tribunais, dos parlamentos e há essa perspetiva de que mesmo em relação às igrejas é o partido que tem a última tutela para dizer o que contribui, ou não, para o desenvolvimento da sociedade. É isso que faz confusão quando vemos estas negociações.
Houve muitos críticos em relação ao acordo e a maior parte aponta para o facto de a perseguição aos cristãos estar a aumentar com a atual administração da China.
Um dos discursos nos primeiros anos do Xi Jinping foi para os 100 milhões de membros do partido, em que falou da questão da corrupção, recordando que o partido é ateu e não se pode ser membro do partido e de uma religião.
O facto de ele ter identificado essa questão da religião dá-nos a entender que provavelmente havia membros do partido que se sentiam sensibilizados pelas religiões. Portanto o apelo ao ateísmo surgiu daquele que é hoje em dia o homem com mais poder na China desde Mao Tsé Tung, que é Xi Jinping e é compreensível que num país da dimensão da China haja quem queira promover os seus projetos, a sua carreira, e se queira mostrar mais papista que o Papa e portanto quando se deitam abaixo igrejas, ou se retiram cruzes, é bem possível que haja gente a ultrapassar o que se faria em Pequim. Em Pequim não se vê isso, não se veem igrejas a serem fechadas forçosamente, longe disso.
É evidente que não há amizade para com as religiões. Foi implementada uma lei que proíbe a entrada nas igrejas a jovens entre os seis e os 18 anos, portanto eles não se vêem nas igrejas. Isso é supostamente para que os jovens não sejam desencaminhados pelas “falsas doutrinas” das religiões. Pode ser que acabe por sair o tiro pela culatra e os jovens poderão querer saber o que é isso que lhes estava proibido e quem sabe se não vai levar a que haja mais fiéis.
Encontrei vários jovens nas minhas viagens pela China – que não foram muitas – que se tinham aproximado do Cristianismo. Em termos capilares o que está a surgir é uma inquietação religiosa entre as pessoas, uma procura, e as pessoas estão a bater à porta das igrejas.
Que futuro é que vê para o catolicismo na Ásia?
Excetuando as Filipinas e Timor-Leste, o Cristianismo em geral na Ásia é ultraminoritário. Quanto ao futuro da Igreja, e estou convencido de que o Papa o sabe, na China o crescimento do Cristianismo é muito grande. Diz-se que no ano 2030 a China ultrapassa o Brasil como maior país cristão do mundo, apesar de isso continuar a ser uma minoria da população.
Há um outro fator interessante presente, de que as autoridades chinesas eventualmente têm consciência ou não, não sei, mas ao introduzirem o comunismo e o capitalismo na China como grandes fatores para o desenvolvimento económico e a articulação social do país, introduziram dois sistemas que têm raízes judaico-cristãs e, portanto, que têmm uma antropologia que é estranha à antropologia confuciana e budista.
Portanto está na matriz económica e do desenvolvimento económico e social, um gérmen cristão que faz com que quando as pessoas se inquietam com o sentido das suas vidas as religiões que mais correspondem ao tipo de desenvolvimento em curso são as religiões ou protestante ou católica, daí o crescimento dessas religiões dentro da China.
Essa é a minha impressão neste momento. O que pode acontecer a médio prazo só Deus sabe.