Eleger um grupo parlamentar é a ambição do Livre, depois do desentendimento com Joacine Katar Moreira que levou à perda de representação parlamentar logo no início da legislatura. Rui Tavares, fundador do partido e cabeça de lista por Lisboa, acredita ser possível recuperar a credibilidade e abre a porta a um entendimento com o PS no caso de António Costa ganhar as eleições sem maioria, pedindo ao líder socialista uma clarificação sobre como e com quem quer governar o país na próxima legislatura.
Há uma proposta do Livre sobre o Rendimento Básico Incondicional, está previsto no programa do partido um projeto piloto. Que apoio excecional é este?
É uma ideia económica com pergaminhos no debate sobre a proteção social. Basicamente diz-nos o seguinte, todas as pessoas devem ter direito a um mínimo de dignidade e que se todas tiverem, isso beneficiará a economia como um todo, porque as pessoas poderão consumir, fazer a economia circular e ninguém estará de fora.
Para implementar um rendimento básico universal, temos de fazer de fazer testes sobre os níveis corretos de apoio, como é que eles se poderiam processar. A máquina administrativa também tem de ser afinada. Esse debate tem sido mais premente porque o ritmo da transformação da nossa sociedade e das nossas economias tem acelerado.
Daí a proposta de testar o Rendimento Básico Incondicional, como fizeram outros países, num projeto piloto que pode ser desenvolvido à escala municipal. Assim as pessoas têm ideia do custo, pode ir desde o muito barato, onde praticamente se pagam os custos administrativos, e desenvolve-se o projeto em moeda local. Uma moeda criada para o projeto e que dinamiza o comércio regional.
Não há uma base para o custo total desse rendimento?
Há um projeto piloto desenvolvido no Canadá, que durou dois anos e que foi até aos 30 milhões de dólares. Nós estamos a falar dessa ordem de grandeza. Só para lhe dar ideia: há propostas de partidos que preveem cortes fiscais com os quais vamos perder dois mil milhões de euros. Significa cem vezes mais. Temos propostas de partidos que pretendem nacionalizar grandes empresas e falam em 30 mil milhões de euros, ou seja, mil vezes mais.
Seria uma proposta universal ou para quem necessite? Há críticas de partidos que falam em injustiça. Sendo universal, pessoas que não necessitam, também iriam receber. Não é assim?
É isso que o projeto piloto se destina a procurar saber. A ideia é que seja para toda a gente, mas que também possa ser recuperado na taxação dos mais ricos. Tal como a utilização da infraestrutura do país: toda a gente utiliza estradas, todos beneficiam da iluminação noturna, seja rico ou seja pobre. Os mais ricos são mais taxados numa taxação progressiva que nós defendemos, e contribuem mais para as proteções sociais, incluindo para o Rendimento Básico Incondicional, se ele fosse implementado.
Também está claro que é mais fácil implementar este rendimento à escala europeia do que à escala nacional. Isso foi feito durante a pandemia nos Estados Unidos, houve um rendimento básico incondicional de emergência. No Brasil também. Na Europa deveria ter havido, em Portugal teria sido mais útil do que as moratórias, que só adiaram os problemas. Se pudéssemos ter socorrido as pessoas com o Rendimento Básico Incondicional na altura mais crítica da nossa economia. Isso teria permitido às pessoas pagar dívidas em vez de as adiar.
Também existem modalidades que são variáveis de acordo com a fase económica em que estamos. Nós podemos prever um Rendimento Básico Incondicional como uma espécie de estabilizador automático da economia. Tendo um montante maior quando estamos em fase de crescimento económico e maior quando estamos em recessão.
Em relação ao Salário Mínimo Nacional, o Livre propõe que possa ir até aos mil euros. António Costa propõe que possa ir até aos 900 euros. Se ficar nos 900 euros no final da legislatura, já não é mau para o Livre?
Já terá feito uma parte do caminho que achamos necessário, que é o de, pelo menos, a aproximação ao espanhol. Nós tínhamos 80% do salário mínimo aqui há uns anos. Infelizmente, o Salário Mínimo português distanciou-se do espanhol, e isto até foi no tempo da primeira geringonça. Espanha fez um grande aumento do Salário Mínimo em 2019, 22% num só ano, e nós passámos a ter só 70% do salário espanhol.
É um grave risco para a nossa economia, do ponto de vista do investidor internacional, que olha para o mercado ibérico como um mercado integrado na Europa. O que esse grande investidor vai dizer é: para investir numa economia mais qualificada vou para Espanha. Para baixos salários, vou para Portugal. Nós não podemos aceitar que a economia portuguesa continue a ter esse labéu de ser a economia dos baixos salários. Não é assim que Portugal pode prosperar, como se o país fosse uma China, mas com pouca gente.
Se nós fizermos um aumento de 6% por ano chegamos a mil euros em doze salários. Para termos 14 meses, precisamos de um crescimento mais robusto, de 10% ao ano. Ou se quisermos ser mais rigorosos, ter um olho na inflação, que agora está mais alta, e que nos coloca problemas. Por um lado, se não aumentarmos de acordo com a inflação, as pessoas perdem Poder Real de Compra. Por outro, um aumento muito avultado agora, pode, ele próprio, contribuir para a inflação.
O melhor é fazermos aumentos de 6% como estamos a fazer agora, e logo que a inflação descer, fazer um aumento mais robusto para podermos recuperar o caminho que perdemos.
A prioridade deve ser o aumento do Salário Mínimo Nacional ou haver uma valorização do salário médio?
O Livre considera que é um erro político e económico achar que as duas são prioridades diferentes. É verdade que Portugal corre o risco de se tornar um país de salários mínimos.
Há aqui um piscar de olho do PS para a classe média, nesta altura do campeonato, de olhar para o centro?
Só que o problema da classe média não se resolve mantendo o SMN em baixo. Pelo contrário, precisamente, porque estamos a passar uma mensagem errada ao investidor ao deixar o SMN em baixo, é mau para todos. Mas o Livre defende um pacto para o rendimento, trabalho e proteção social, que também olhe para os salários médios e medianos, que os aumente por via da incorporação do conhecimento e tecnologia na economia portuguesa.
Pelo aumento da produtividade, que se pode conseguir olhando para o horário de trabalho. E pelo apoio e proteção ao trabalho independente. Há falsos recibos verdes, esses devem ser contratados. Mas há muitos verdadeiros trabalhadores independentes que não têm um rendimento horário mínimo garantido. Para os independentes e microempreendedores, muitas vezes recebem salários demasiado baixos. Há gente a trabalhar as 40 horas e a ganhar menos que o salário mínimo.
E no meio disso, onde é que fica a Função Pública, que tem visto os salários congelados ao longo dos anos, em que é que fica essa fatia da Administração Pública?
Os salários da Função Pública devem aumentar de acordo com os outros, mas devemos fazer um grande esforço de reforma da Administração Pública. Devemos fazê-lo nestes anos. Um dos nossos grandes problemas da nossa força de trabalho tem sido o das baixas qualificações. Há gente que acha que não se pode resolver o problema. Nós dizemos que é possível resolvê-lo. Daqui a dez anos, a nossa força de trabalho vai transformar-se muito.
Pela natural substituição das pessoas que se reformam, a nossa força de trabalho vai ser quase só constituída por pessoas formadas em democracia. O que nós temos de fazer é acelerar esse processo em determinados setores, e a Função Pública é um exemplo excelente. Com o PRR, com outros fundos europeus e com um esforço nacional, podemos rejuvenescer a nossa Função Pública, qualificá-la e com isso, mudar a relação entre o Estado e o cidadão. Torná-la menos burocrática, menos rígida, mais capaz de ajudar a economia através da Função Pública.
Isso era uma mudança completa de paradigma em relação ao que existe hoje.
Mas é uma mudança que tem de ser feita, porque se não for feita, não conseguimos ter um Estado inovador e catalisador de mudança na economia.
Deixe-me dar um exemplo, li no outro dia no programa da Iniciativa Liberal, que dizia que temos de facilitar a contratação e os despedimentos na nossa rede consular. Eu pensava, isto é de um desconhecimento total da nossa rede consular. O nosso problema não é contratar ou despedir, é reter os funcionários públicos. Porque os nossos salários não são atualizados há dez anos, e ali, onde há uma concorrência maior, porque tipicamente estão no estrangeiro, nós não conseguimos que os funcionários fiquem mais de dois ou três meses nos nossos consulados porque são agarrados por outros.
No setor privado, temos muita gente que sente que passa 80% do tempo a fazer aquilo em que não somos melhores. É aí que temos de reformar a função pública para que ela catalise as partilhas de custo e de funções que estes microempreendedores precisam. Assim as pessoas passavam 80% do tempo a fazer aquilo em que são boas, e com isso beneficiamos todos. Tornamo-nos mais produtivos e a nossa economia fica de alto valor acrescentado. Assim permite arrecadar impostos numa base mais larga, e a família mediana pagar menos impostos.
Sobre governabilidade, gostava de ver António Costa clarificar o que vai fazer se ganhar as eleições sem maioria?
É uma clarificação necessária e que os eleitores pedem.
Mas ainda não foi feita...
Ela vai sendo feita por meias palavras e isso não é adequado. Nós estamos a poucas semanas do voto, sem uma clarificação clara de uma série de partidos.
Quanto ao Livre, estamos de consciência tranquila. Desde o início dissemos sempre a mesma coisa: se houver uma maioria de esquerda, somos parte da solução, e queremos que a solução seja por escrito. Um acordo escrito é um governo escrutinado....
Muito como o Bloco de Esquerda....
O Bloco de Esquerda não é assim tão claro em relação a isto. Porque desde logo não se percebe se quer um acordo multilateral com vários partidos ou quer bilateralmente entender-se com o PS. E parece sempre oscilar entre a tentação da intransigência e o discurso da convergência. Como o boletim de voto não tem asteriscos, nem letra miudinha, não podemos ter esta falta de clarificação por parte do PS e do Bloco. Isso o Livre dá, se houver maioria de esquerda seremos convergência, se houver uma maioria de direita seremos oposição.
As sondagens, o avançar da campanha e a própria necessidade do eleitor se ver esclarecido, tem clarificado algumas coisas. Parece relativamente claro que as sondagens continuam a dar uma maioria à esquerda, que não haverá maioria absoluta e António Costa lá vai dizendo que se demite se não ficar em primeiro lugar, mas não vai dizendo que se demite se não tiver maioria absoluta.
O que eu retiro de tudo isto? Não vale a pena chantagiar o eleitorado, vai ter de haver soluções.
Nas próximas duas semanas, acha que isso vai ficar claro?
Do lado do Livre temos pelo menos de oferecer um caminho, e oferecemos uma vereda para sair desta confusão. Ela é a de um acordo assinado para viabilizar o Orçamento e o programa do Governo, porque não podemos continuar em duodécimos, tendo como contrapartida, até ao 25 de abril, o apresentar de um novo modelo para o país. E um acordo que seja o mais amplo possível, se puder incluir todo o progressismo e ecologia, muito bem.
Se os partidos não decidem se preferem convergência ou intransigência, há soluções, aquilo a que nós chamamos uma eco-geringonça, onde partidos do progressismo e da ecologia, incluindo o PEV, o Livre ou o PAN e que responda às necessidades de fazer a economia do conhecimento e da descarbonização que nós precisamos.
Tem uma boa ligação a Fernando Medina, concorreu na lista dele a Lisboa nas eleições autárquicas. Acha que pode dar um bom Ministro das Finanças no caso de o Partido Socialista vencer as eleições? É um nome que tem sido muito falado para esse cargo.
Claro que uma formação de Governo é uma coisa que compete ao primeiro-ministro designado, agora a verdade é que nós trabalharemos com um Governo à esquerda, com a composição que for determinada pelos partidos que façam parte dessa base governativa, e cada partido escolherá quem achar que deve estar no Governo.
Seria fácil para si trabalhar com Medina?
Não ponho as coisas no pano individual, o que eu sei é que o Livre no acordo de coligação que conseguiu para Lisboa conseguiu coisas muito importantes. Desde logo, algo que também temos a nível municipal, que é a ideia de um Novo Pacto Verde, o Novo Pacto Verde é o plano de investimentos
Que surge também neste plano eleitoral às legislativas.
É central no nosso programa porque pretende responder à crise ecológica respondendo também a crise social. Nós temos um desafio muito grande, as alterações climáticas são reais, são um facto científico e são urgentes, mas temos que as combater com as pessoas, não contra as pessoas. Temos que dar emprego, temos que dar desenvolvimento económico e temos que dar prosperidade partilhada, num Novo Pacto Verde.
O Livre elegeu uma deputada, passou pelo processo traumático de ficar sem representação parlamentar. Isto não atingiu a credibilidade do partido?
Em primeiro lugar do ponto de vista da via interna do partido, que é aquilo que me estava a perguntar, eu creio que todos os membros e apoiantes do livre e os seus dirigentes estão perfeitamente conscientes de que o caminho de recuperar credibilidade é um caminho que se faz mostrando trabalho. Ou seja, não é falando de credibilidade que se recupera credibilidade, é as pessoas vendo o partido a funcionar, ouvindo as suas respostas e entendendo que o partido tem respostas a dar ao país, que as pessoas vão entendendo, vão reconhecendo a credibilidade do partido.
E eleitoralmente não vai ficar beliscado, de alguma forma?
Eleitoralmente os cidadãos decidirão, mas creio que, se fizermos o nosso caminho corretamente, e apresentarmos razões de credibilidade que é falar das propostas que interessam ao país; se dermos garantias, e a minha candidatura, aqui falo do ponto de vista pessoal, é também uma garantia de que o Livre volta ao parlamento para ficar, e para valer, e para se organizar como partido de esquerda verde europeia de que Portugal tanto precisa.
Os nossos concidadãos entenderão uma coisa: tendo sido traumático, porque é uma rotura e é uma perda e isso é sempre uma pena, o Livre fez uma escolha de princípios contra poder. Ou seja, de convicções contra cargos e foi o único partido que não varreu para debaixo do tapete os seus problemas e que prescindiu de 100% da sua representação parlamentar em vez de ter feito o que tantos partidos fazem que é mudar de opinião conforme vão acontecendo casos dos seus políticos, fazendo de conta que não é problema aquilo que é problema e mantendo, às vezes empurrando com a barriga, situações que do ponto de vista daqueles que são os seus princípios não deveriam ser arrastadas.
O Livre isso não faz, assume os seus problemas e, portanto, os nossos concidadãos sabem que o Livre escolhe a convicção sobre os cargos e creio que no médio e no longo prazo entenderão que essa é uma razão de credibilidade do partido.
Em relação à meta eleitoral para o Livre, tem algum número em mente? Quantos deputados podem ser eleitos?
É muito importante que o Livre tenha um Grupo Parlamentar.
Reforçar aquilo que elegeram em 2019?
Sim, veja um exemplo muito simples. O Livre tinha direito legal a estar presente nestes debates. A Comissão Nacional de Eleições disse que a exclusão do Livre seria uma distorção do direito constitucional para lá do tolerável. No entanto, mesmo com esse direito, o que as televisões quiseram fazer, com o estímulo dos outros partidos, foi excluir o Livre dos debates.
Agora imaginemos que o Livre elege, mas em vez de ter um Grupo Parlamentar, tem apenas um deputado único. No caso de haver vários partidos com Grupo Parlamentar e apenas um com um deputado único, os outros se entenderão tacita ou explicitamente para excluir esse partido de deputado único desses debates.
Portanto, toda a gente que ouve as ideias do Livre, que concorda que fazem falta ao país, que precisamos de um novo modelo de desenvolvimento baseado na economia do conhecimento e da descarbonização e que não deixe ninguem para trás, o repto é que votem no Livre. Em qualquer distrito, o voto é importante. Há vários distritos, como Porto, Lisboa ou Setúbal onde o Livre tem possibilidade de eleição. É importante que o Livre não tenha só um deputado, mas um Grupo Parlamentar.
Eleição nas grandes metrópoles, em Lisboa ou no Porto?
Aqui o mais importante é que o voto no Livre passa a mensagem certa aos outros partidos...
Não quer falar de números?
Um Grupo Parlamentar é a partir de dois deputados. Esse é o número, a partir disso. No Porto temos o Jorge Pinto, que é um excelente cabeça de lista, e quem quiser conhecer as ideias dele vai poder nos próximos dias, adquirir um livro que se chama “A Liberdade dos Futuros”, onde ele tem a sua visão ecológica para o futuro da República. Um excelente deputado. Em Setúbal, o Paulo Muacho. Em Aveiro, a Joana Filipe. Em Faro, a Marta Setúbal. Temos sempre boas escolhas e boas representações.
Acima de tudo, o voto no Livre livra-nos do dilema ente a maioria absoluta e o bloco central. Livra-nos também do dilema entre a arrogância de uns e a intransigência de outros. Passa a mensagem certa de que a política deve ser feita pelo chão do país para cima. Bota acima, e não abaixo, como diz o nosso lema. Premeia quem nestes debates se apresenta para discutir ideias e não para fazer ataques pessoais.
Mesmo com o projeto piloto do Rendimento Básico Incondicional, que nós projetámos como algo de muito exequível, passou-se a falar sobre o futuro, em vez da prisão perpétua. Agora imaginemos isto, durante quatro anos, na Assembleia da República. É mesmo preciso apostar em quem apresenta ideias de futuro.