O principal problema da Justiça portuguesa são os megaprocessos, afirma o presidente do Supremo Tribunal de Justiça, António Piçarra, na abertura do ano judicial.
O juiz conselheiro sublinha que, sobretudo a criminalidade de natureza económico-financeira, “vem associada a mecanismos elaborados de ocultação, que implicam intervenção de diversas jurisdições ou organismos, nem sempre com níveis de cooperação adequados”.
António Piçarra considera que, “com a nossa lei e com a nossa organização, o que se pode esperar dos juízes é sempre insuficiente para as expetativas de realização da justiça”.
“O que o juiz pode fazer é limitado. Se tem que ouvir centenas de testemunhas e analisar milhares, ou dezenas de milhares de documentos, terá sempre que levar muito tempo. É inexorável.”
O juiz conselheiro António Piçarra diz que os processos especialmente complexos foram o grande problema de 2019 e voltarão a sê-lo seguramente nos próximos anos.
“Os mecanismos que o Conselho Superior da Magistratura dispõe para atender a este problema são também muito limitados. Pode conceder exclusividade aos juízes a quem sejam distribuídos processos especialmente complexos e pode inteirar-se dos problemas suscitados pela produção de prova na cadência do processo e, na sequência, verificar se têm solução possível. Pouco mais pode fazer.”
“Neste quadro legal e organizativo será cada vez mais normal que os processos judiciais complexos levem anos em investigação e muitos anos em julgamentos e recursos. Isto não significa, porém, laxismo. Decorre da lógica e da organização do sistema", sublinha.
Nem que os juízes trabalhassem 24 horas, em todos os 365 dias do ano, os megaprocessos vão continuar a levar anos a resolver.
Genericamente, Joaquim Piçarra destacou a diminuição das pendências em 2019, referindo que o ano terminou com 310 mil processos pendentes, quando em dezembro de 2018 eram 345 mil.
Foram decididos nos tribunais judiciais mais processos que os entrados transversalmente em todas as jurisdições (cível, penal, laboral e tutelar).
O presidente do STJ, que por inerência de função é presidente do Conselho Superior da Magistratura, prestou ainda contas da atividade do órgão de gestão e disciplina dos juízes, revelando que em 2019 foram realizadas 369 ações inspetivas, instaurados 28 inquéritos e 21 processos disciplinares e aplicadas sanções disciplinares a 21 magistrados: 10 advertências, seis multas, uma suspensão de funções com transferência, duas aposentações compulsivas e uma demissão.
No seu discurso, o presidente do Supremo ressalvou ainda os recentes desenvolvimentos políticos na Grã-Bretanha (Brexit) que tornaram irreversível o processo de saída deste país da União Europeia, passando a Irlanda a ser o único país de 'common law' na União e também o avolumar de problemas de independência da justiça no espaço europeu.
O projeto europeu há muito que deixou de ser apenas económico. É um projeto de desenvolvimento social e político, assente em princípios democráticos comuns.
A nova Comissão Europeia parece seguir um caminho de ainda maior alheamento sobre esta matéria, relativizando o conceito de independência da justiça de acordo com as latitudes, o que não é tranquilizador.
Em contrapartida, assumiu perante o Presidente da República e a ministra da Justiça, "Portugal continua a manter níveis de independência dos juízes verdadeiramente referenciais no contexto internacional e que o respeito do poder político pela independência da justiça mantém-se intocado.
Este ano, a cerimónia de abertura do ano judicial decorreu no Palácio da Ajuda, em Lisboa, devido às obras de beneficiação que decorrem no edifício do Supremo Tribunal de Justiça.