O bispo de Coimbra, D. Virgílio Antunes, manifesta o desejo de que o ano de 2024 traga "a estabilidade política" a Portugal "para que o país possa estar tranquilo" e "possa ser um país em crescimento".
"Quando há instabilidade política, também há instabilidade social, também há instabilidade económica", adverte o também vice-presdiente da Conferência Episcopal Portuguesa (CEP), em entrevista à Renascença e Agência Ecclesia.
D. Virgílio Antunes diz esperar que a legislação sobre eutanásias "seja revertida" na próxima legislatura. Será "o mínimo que podia fazer-se", defende, argumentando que este tipo de opção representa "problemas graves de humanidade".
Sobre a questão dos abusos, o bispo de Coimbra considera que o trabalho feito pela comissão acabou por se revelar "muito firme e, por outro lado, muito rápido", reconhecendo, contudo, que ninguém "estava preparado para este trabalho".
Nesta entrevista, o "número 2" da CEP manifesta ainda esperança no Sínodo - "tem muito para dar" - e reconhece surpresa perante a recente declaração do Dicastério para a Doutrina da Fé sobre a benção de casais em situação irregular e casais do mesmo sexo. "Fomos, de algum modo, apanhados de surpresa", diz, ressalvando que "estes gestos precisam de ser compreendidos e também precisam, de algum modo, de ser explicados".
"Vemos um certo afastamento do povo de Deus da prática do culto dominical", diz, ainda, o bispo de Coimbra. "A nossa Igreja, tanto em Portugal como nas nossas dioceses, não está propriamente a passar os dias mais fabulosos e mais encantadores", desabafa D. Virgílio Antunes.
Em vésperas do Dia Mundial da Paz, vemos que 2023 termina sem qualquer perspetiva de paz, infelizmente, tanto na Ucrânia como no Médio Oriente. O Papa Francisco tem sido incansável nos apelos a uma solução pacífica. Que mais é que podemos esperar da Igreja na busca destas soluções de paz?
De facto, é uma desumanidade grande aquilo que está a acontecer. Nas últimas décadas, não tínhamos memória de uma violência tão grande como aquela a que estamos a assistir neste momento. E a Igreja pode fazer alguma coisa, evidentemente, sobretudo pela sua voz, que felizmente tem levantado para chamar à razão - digo: à razão - os homens e mulheres do nosso tempo e para que vejamos todos aquilo que são os horrores da guerra. Também a Santa Sé procura fazer a sua diplomacia, que nem sempre é visível aos olhos do público em geral, mas que existe e que procura trabalhar dentro daquilo que são as condições e as possibilidades ao seu dispor.
E, depois, a voz do Papa Francisco é, efetivamente, uma voz forte, que, semana após semana, quase dia após dia, não deixa de referir os horrores da guerra, sejam eles onde forem, mas, concretamente, agora, nestes dois focos, que têm uma mediatização maior, como é o caso da Ucrânia e o caso da Faixa de Gaza.
E a voz do Papa é importante e ele tem-na feito ouvir, porque procura chamar as pessoas à razão e tem por detrás, evidentemente, algumas perspetivas éticas que são essenciais para que a humanidade possa viver em paz. Sem ética e sem algumas perspetivas fortes e bem enraizadas na vida das pessoas e dos Estados e dos povos, de facto, continuaremos a ter este grande problema das guerras.
O ano que passou ficou marcado pela primeira sessão da Assembleia do Sínodo, que vai prosseguir em outubro de 2024. Que expectativas tem para este caminho? Iremos sentir muito a pressão causada pela chamada "divisão entre conservadores e progressistas"?
O Sínodo tem muito para dar, tem muito para dar à Igreja, até porque é pela primeira vez, como sabemos, que a Igreja abre absolutamente as suas portas para ouvir a voz de todos aqueles que dentro dela ou nas suas periferias - ou mesmo fora da Igreja - acham que, em consciência e num desejo construtivo, têm alguma coisa a dizer sobre o modo de como a Igreja pode estar, deve estar presente no mundo em que vivemos. Podem dizer também como a Igreja pode organizar-se interiormente para realizar bem a sua missão, que é sempre uma missão de evangelização e, portanto, do anúncio da Boa Nova do Evangelho a todos os povos da Terra.
Penso que podemos esperar muito do Sínodo, embora algumas pessoas possam ficar desiludidas porque algumas questões mais mediáticas e que estão na agenda, por assim dizer, de grupos - tanto dentro como fora da Igreja - podem não ter aquelas saídas que eram desejadas ou esperadas por muitas pessoas. Mas penso que, à parte disso, há, de facto, uma certa divisão, não como fruto do Sínodo, mas uma certa divisão dentro da Igreja e das comunidades cristãs com essas caracterizações que nós podemos dar.
Poderá acentuar-se essa divisão com o decorrer dos trabalhos?
Penso que o Sínodo só deverá ser objeto de um consenso alargado, de uma comunhão maior, de um encontro de pessoas, de um debate também de algumas perspetivas, mas de uma aproximação entre as pessoas. É para isso que serve um Sínodo. Um sínodo nunca pode servir para dividir mais as pessoas, embora, de facto, o espírito do mal às vezes vá reaparecendo, sendo foco de divisão aqui e ali.
Mas o objetivo do Sínodo, e é isso que eu espero verdadeiramente, é que seja de unir pessoas e de unir a Igreja, a Igreja de Cristo, na fidelidade à sua vocação e à sua missão, embora se saiba que isso é muito difícil e que ao longo da História, tem havido sempre momentos de tensões muito fortes, que em alguns casos deram, inclusivamente, cismas.
O Dicastério para a Doutrina da Fé publicou uma declaração, aprovada por Francisco, que permite abençoar casais em situação irregular e casais do mesmo sexo. Não lhe pergunto se isto é uma consequência do Sínodo, mas pergunto-lhe se já sente que é uma consequência do processo de auscultação e discernimento que já foi lançado em 2021. Acha que se insere nesta dinâmica?
Penso que fomos, de algum modo, apanhados de surpresa, porque não estávamos à espera que durante este percurso da sinodalidade aparecesse uma declaração, inclusivamente em relação a um assunto que, de algum modo, também estava incluído e está incluído naqueles que fazem parte do Sínodo.
Mas, de facto, penso que não decorre totalmente do Sínodo, embora tenha havido, como nós sabemos, naquela auscultação que se fez, ou naquele tempo e momento da escuta, a todos, muitas referências a este tipo de situações das famílias, com todas estas denominações e com todas estas configurações que nós conhecemos. A impressão que me dá é a de que o Santo Padre quis, juntamente com a Congregação da Doutrina da Fé, com o Dicastério, dar um sinal a toda essa multidão imensa de pessoas que se referiram a estes assuntos, a estes temas, de que estávamos em caminho. Essa é a minha interpretação.
E também penso que terão olhado para aquilo que se tem passado, concretamente na Alemanha, onde, de facto, há alguns focos de divisão muito fortes dentro da própria Igreja e dentro da sociedade. Poderá ter sido, é a minha interpretação, poderá ter sido um desejo de fazer perceber aquelas pessoas que estão numa certa tensão dentro da própria Igreja, de que há caminho a fazer.
Admite, portanto, a necessidade de uma melhor compreensão ou alcance deste gesto?
Evidentemente, porque uma coisa é aquilo que diz um documento ou uma mensagem publicada, um texto publicado pelo Dicastério para a Doutrina da Fé, e outra coisa é o modo como no mundo, dentro da Igreja e fora da Igreja, as pessoas entendem aquela mesma comunicação.
E tem havido diferentes interpretações, não é?
As mais distintas, diferentes e, às vezes, quase contrárias. Desde os grupos de pessoas que ficaram extremamente felizes por perceberem ali um certo avanço no modo de acolher todas as pessoas na Igreja, mesmo que se diga, evidentemente, que não é para mudar a doutrina - e não é - àquelas pessoas que também ficaram, de algum modo, desiludidas, porque esperariam muito mais.
Portanto, estes gestos precisam de ser compreendidos e também precisam, de algum modo, de ser explicados para que se perceba, embora esteja lá o princípio da explicação, o alcance que pretendem ter.
O ano que termina também foi marcado pela questão dos abusos sexuais na Igreja. Como olhou para a forma como a Igreja Católica, enfim, cada diocese, mas também a Conferência Episcopal, tem vindo a tratar do assunto? Em algumas situações, especificamente processuais, ter-se-ia justificado uma maior celeridade?
Nós fizemos um caminho enquanto Igreja em Portugal que, percebo-o ao olhar para trás, foi muito firme e, por outro lado, muito rápido.
Era difícil de perceber, aqui há quatro ou cinco anos e mais , se recuarmos mais, como é que a Igreja em Portugal ia entrar neste processo, enfim, a este ritmo: uma Comissão Independente que num ano faz um trabalho de conhecimento da realidade e apresenta as suas conclusões, e depois a criação de um grupo VITA, logo a seguir, para dar continuidade a um processo, a criação das Comissões Diocesanas, e todas as dioceses criaram as suas comissões, que têm estado a trabalhar dentro das limitações próprias.
Isto para todos nós foi uma realidade absolutamente nova, nenhum de nós estava preparado para este trabalho, nem para fazer de uma forma mais rápida ou menos rápida aquilo que, felizmente, se fez, e que era necessário fazer, porque nós, em Portugal e na Igreja e no mundo, não podíamos continuar com os olhos fechados àquilo que, agora sabemos de uma forma mais objetiva e evidente, se passava.
Portanto, este trabalho era necessário, teve a celeridade provavelmente possível. Eu penso que foi um trabalho muito rápido aquele que se fez até agora. Não resolvemos todas as situações, temos problemas, com certeza, a enfrentar, há um futuro imediato...
No imediato, está previsto algum encontro com a associação de vítimas? Da sua parte, há disponibilidade para receber pessoas envolvidas nestes casos?
Tanto eu, bispo de Coimbra, como os outros bispos em Portugal já recebemos várias pessoas. Outros estão a receber... Temos disponibilidade total, porque estamos neste processo todos de alma lavada, de espírito aberto, e o que nós mais desejamos é que a Igreja e a sociedade consigam ultrapassar um drama que a tem marcado tanto e que é um dos dramas mais duros que a Igreja em Portugal e no mundo tem enfrentado nos últimos séculos. Eu até diria ao longo da sua história, porque é uma coisa a todos os títulos deplorável que nenhum de nós pode aceitar.
Está previsto um encontro da CEP com a associação de vítimas?
Sim, mas é com a associação das vítimas como pode ser com as vítimas individualmente, como pode ser com outros grupos de pessoas. Nós estamos absolutamente disponíveis, como tem dito o presidente da CEP, para receber todas as pessoas.
Outra questão, ainda relacionada com este tema, que tem gerado, digamos, algum problema de comunicação, é a questão das indemnizações. É precisa maior clareza na apresentação da posição dos bispos, das dioceses e da CEP, em particular?
Esse processo não está ainda completamente encerrado, como, aliás, o presidente da CEP disse na última apresentação do relatório do Grupo Vita.
O que se tem sempre distinguido são duas coisas. Uma são as indemnizações como fruto de um processo nos tribunais, que obrigam uma entidade a pagar uma indemnização. Em Portugal é sempre o próprio criminoso, por assim dizer, que é responsável pelos seus próprios atos. Num ou noutro caso, parece que pode haver alguma responsabilidade também institucional.
Outra coisa é a ajuda que a Igreja está disponível para dar a cada pessoa que tenha sido vítima para refazer a sua vida. Já está a fazer a tal ajuda no que diz respeito aos tratamentos na área da psicologia e da psiquiatria para todas aquelas pessoas que pediram, que acharam que era importante para o seu processo de regeneração.
E está aberta, de facto, à possibilidade de ajudas a pessoas que estão em dificuldade e que precisam. Portanto, se chama indeminizações ou não chama, nós na Conferência Episcopal temos chamado ajudas sociais, ajudas sejam elas quais forem, a pessoas em necessidade, concretamente por este facto. Agora, uns chamam indenizações, outros chamam ajudas sociais ou ajudas seja ela de que tipo for. São duas coisas diferentes. Como tem sido sempre dito, a Igreja está disponível para ajudar a refazer ou a reparar estas pessoas.
O próximo ano vai ser de visita "ad Limina", para encontros com o Papa e também com organismos da Cúria Romana. O que conta levar na sua bagagem?
Olhe, na minha bagagem eu gostaria de levar muito mais coisas e, sobretudo, gostaria de levar uma Igreja pujante, cheia de vida, cheia de entusiasmo, evangelizadora, que é capaz de se organizar, onde os sacerdotes, os diáconos, os consagrados, os leigos estão a procurar viver a sua fé com intensidade nas comunidades, grandes ou pequenas. Isto era o meu desejo. Uma parte disto eu levo, outra parte é aquilo que gostaria de levar, mas a nossa Igreja, tanto em Portugal como nas nossas dioceses, não está propriamente a passar os dias mais fabulosos e mais encantadores. Todos temos muitas alegrias e temos caminho feito, mas também todos temos muitas dificuldades e deficiências e, sobretudo, vemos um certo afastamento do povo de Deus da prática do culto dominical, que é um dos sintomas mais evidentes de um certo calor da fé, de uma certa adesão e proximidade com a Igreja ou, porventura, enfim, de um certo arrefecimento.
A pandemia acentuou essa situação?
A pandemia acentuou, mas não foi só a pandemia. A questão do estudo sobre os abusos sexuais de crianças, evidentemente, também afetou. Depois, há um ambiente global que tem a ver com ideologias, tem a ver com a secularização, tem a ver com o nosso modo de estar no mundo. Quer dizer, não podemos reduzir tudo à pandemia, porque isso seria até uma desculpa muito fácil para todos, deixava-nos todos muito tranquilos, e nós não queremos ficar tranquilos diante daquilo que é a missão da Igreja, nas nossas dioceses, nas nossas comunidades e no nosso mundo.
Eu, por exemplo, fiz aqui na Diocese de Coimbra um recenseamento da prática dominical no mês de novembro de 2022. Escolhemos precisamente ser em 2022 e novembro porque estávamos num período em que toda a gente percebia que havia alguns efeitos da pandemia, mas nós queríamos conhecer a realidade tal como ela é, nua e crua, e não mais ou menos floreada com esta desculpa, aquela e aquela outra, para melhor podermos realizar a missão da Igreja a partir daquilo que é a realidade que agora vivemos.
Tantas dificuldades existem... Agora nós, Igreja em Portugal, vamos levar algumas notícias muito boas. Tivemos sobretudo um acontecimento que nos marcou de tal maneira que domina, vai dominar, por assim dizer, a totalidade das nossas mentes. Temos, por um lado, aquilo que é mais negativo, esta questão dos abusos foi de facto uma página muito má da nossa história, e temos aquilo que nos marca, pelo lado mais positivo e que é uma página muitíssimo bela da nossa história…
Está a falar da Jornada Mundial da Juventude, que decorreu em Lisboa, mas que também teve um longo processo de preparação nas várias dioceses. A visita "ad Limina" é uma oportunidade para avaliar o caminho a seguir após o impacto positivo que teve esta dinâmica?
Sim, mas como sabe, a nossa visita "ad Limina" tem um âmbito bastante mais alargado, uma vez que fizemos a última visita há cerca de oito anos, em 2015, e há um relatório que temos de organizar em cada diocese e na Conferência Episcopal, que tem este âmbito mais alargado. Mas é evidente que vamos todos focar-nos naquilo que nos marcou mais. Portanto, a Jornada Mundial da Juventude foi uma coisa absolutamente ímpar para a vida pessoal de cada um de nós. Também para a minha, que já tinha participado em várias Jornadas Mundiais da Juventude, mas ser aqui teve um impacto completamente diferente. Depois, aquela peregrinação dos símbolos foi uma movimentação absolutamente fantástica, que envolveu pessoas da Igreja, de fora da Igreja, das associações, das autarquias... Todas as pessoas sentiram, porque havia ali dois símbolos daquilo que é o mais importante para toda a humanidade.
A Jornada em si mesma foi aquele ambiente que todos nós pudemos vivenciar, que nos marcou profundamente e que marcou a Igreja, embora nós, agora, estejamos todos muito preocupados e com algum receio de não dar uma continuidade adequada no processo evangelizador e de encontro com jovens que a Jornada Mundial da Juventude nos exige.
Propôs à Diocese de Coimbra a realização do primeiro Sínodo dos Jovens. Como é que foi recebido esse desafio?
Bem, muito bem, muito bem. Para já, muito bem. É evidente que foi o lançar da ideia. Agora, tem de amadurecer, mas vai amadurecer rapidamente, não vamos adiar isso para tempos distantes. Procuramos reorganizar tudo aquilo que é pastoral dos jovens. Criamos na diocese uma nova estrutura, que tem a ver com a liderança em tudo aquilo que diz respeito à pastoral dos jovens: sejam os jovens nas paróquias, no âmbito territorial ou diocesano, sejam os jovens universitários, dos politécnicos, do ensino superior, das escolas no ensino secundário, sejam os últimos anos da catequese, próximo do Crisma, antes do Crisma, depois do Crisma. Estamos a desenvolver um trabalho e espero que venha a dar muitos frutos para que tenhamos uma atitude diferente diante dos jovens e para que não fiquemos exatamente com as mesmas instituições que já tínhamos antes nem com os mesmos dinamismos, na certeza de que precisamos de renovar e dar um salto qualitativo e quantitativo em tudo aquilo que fazemos, enquanto Igreja, na relação com os jovens.
Em março, teremos eleições legislativas. Receia que delas possa resultar um quadro de ingovernabilidade em que as chamadas forças extremistas reforçam o seu eleitorado?
É possível. É possível e nós todos estamos preocupados. Já estamos preocupados com a situação presente, que é uma situação a todos os títulos, nova. As coisas são como são. O que eu desejo é que o futuro possa ser diferente pela responsabilidade, pela apresentação de programas partidários objetivos, realizáveis, portanto possíveis e não simplesmente ideias ou folhas que se preenchem para as eleições. Depois, que haja bom senso da parte das pessoas - que nem tudo aquilo que às vezes se diz pode ser concretizado. Sabemos que há partidos que têm capacidade de governar e outros têm, simplesmente, capacidade de provocar, mesmo que possam ser boas provocações, que estimulam aqueles que são partidos dos diferentes governos.
Gostaríamos, todos, que o país encontrasse as vias adequadas, as vias de saída, vias de progresso económico, social, político, mas vejo isso muito difícil no quadro em que nos encontramos.
O próximo governo vai tratar da regulamentação da lei de eutanásia, aprovada em 2023. Com o fim da maioria que aprovou esse diploma, pensa que o processo deveria ser reanalisado, tanto mais que há pedidos de fiscalização sucessiva da lei?
É evidente, é evidente. A Igreja, nós, a Conferência Episcopal Portuguesa, com grupos dentro da sociedade, tão diversificados, temos sempre apontado os problemas graves de humanidade que traz uma lei de eutanásia como aquela que foi aprovada pelo nosso Parlamento. Portanto, estamos todos preocupados, até porque conhecemos experiências de outros países, onde se foi tão longe ou mais longe do que nós, e os resultados desastrosos que conseguiram no que diz respeito à desumanização da sociedade.
Nós queremos uma sociedade plenamente humanizada. Quando se abrem brechas deste género, como a eutanásia, nas mais variadas condições e circunstâncias, com uma lei mais permissiva ou menos permissiva, abrimos, de facto, um capítulo que depois não conseguimos fechar e é sempre um retrocesso da humanidade, porque abrir as portas da morte, em vez de abrir as portas da vida a uma sociedade, mesmo aquelas pessoas que vivem em dificuldades, sejam elas as maiores que forem, é sempre um retrocesso. Nós queremos uma humanidade da vida e nunca da morte.
O mínimo que podia fazer-se, o que eu desejava e que talvez muitos cidadãos portugueses desejem que aconteça, é que esta lei possa vir a ser, não regulamentada, mas revertida, e que se possam encontrar, de facto, de uma forma responsável, os caminhos de vida que nos hão-de fazer felizes a todos: aos que estão doentes, aos que são idosos, aos que estão quase à beira do desespero. Encontrar saídas humanas para todas estas pessoas é o caminho.
A preocupação com os pobres é uma causa fundamental para a Igreja. Receia que em 2024 se possam acentuar as desigualdades?
Nós temos estado a assistir a uma procura muito maior de auxílio por parte de muitas pessoas, indivíduos e famílias pobres. Há aquele fenómeno, que nos últimos tempos se tem acentuado, de famílias que, estando a trabalhar, não conseguem encontrar o necessário para organizar a sua vida, particularmente com os filhos, com a escola, com as outras atividades que hoje fazem parte indiscutível da organização da vida de uma sociedade e da vida de uma família. Portanto, o perigo já está aí e o perigo pode continuar a avançar.
Acho que o Estado, as instituições têm de estar absolutamente atentas a estas realidades. Não se pode, pura e simplesmente, descarregar responsabilidades em cima de IPSS ou em cima de instituições, seja lá de quem for, porque o Estado, enquanto tal, tem uma responsabilidade muitíssimo grande. Tem de haver a cooperação de toda a sociedade, mas o Estado tem uma responsabilidade primeira e muitíssimo grande, no nosso caso.
O quadro de crise política que estamos a viver pode agudizar esta situação de grande precariedade?
É evidente. Quando há instabilidade política, também há instabilidade social, também há instabilidade económica e, portanto, pode haver, inclusivamente, desorganização no que diz respeito às empresas. Tudo isso, com certeza, afeta e pode vir a afetar, mas desejamos que não, porque desejamos a estabilidade política, social e económica para que o país possa estar tranquilo e as pessoas possam, de facto, trabalhar, ver o produto do seu trabalho, ver o rendimento próprio da atividade laboral e possa ser um país em crescimento, que dá origem a famílias em crescimento, com as condições adequadas para viver.
Estamos a chegar ao final de 2023 e também estamos a chegar ao final desta entrevista, pergunto-lhe: que votos quer deixar para o novo ano?
O primeiro tem a ver com a paz. A paz é um bem essencial e nós, estando à distância da guerra, também sofremos alguns efeitos colaterais. Mas isso até é o mínimo, é o menos em que se pode pensar. De facto, a guerra tem de acabar, seja onde for, mas concretamente nestes dois pólos onde tem sido tão feroz: a Ucrânia e a Faixa de Gaza. É um drama que nós, à distância, podemos de algum modo procurar perceber, mas não somos capazes de perceber na sua totalidade. É o desejo de paz.
Depois, era o desejo da estabilidade social entre nós. Estabilidade social, económica e política, para que as pessoas tenham as condições de vida adequadas. Gostaria também de desejar que este trabalho que a Igreja tem estado a fazer no que diz respeito à prevenção dos abusos, à formação das pessoas que fazem parte das estruturas eclesiais, de acompanhamento das vítimas, de acolhimento e de compreensão, tudo isto possa continuar a um ritmo acelerado, possível, e a um ritmo que ajude as pessoas a reencontrar-se, a refazer-se e a sentir-se interiormente mais felizes. E que a própria Igreja possa prosseguir neste caminho da sinodalidade, com os pés bem assentes na terra, neste desejo da fidelidade à doutrina, mas no desejo, ao mesmo tempo, de acolher as pessoas que estão em situações tão diversificadas e tão diferentes e que precisam de sentir o palpitar do coração de Deus através do coração da Igreja.