Rui Tavares. "Precisamos de dar um novo impulso à escola pública"
16-01-2024 - 09:26

Leia a entrevista de Rui Tavares na Renascença na íntegra.

Rui Tavares, fundador do Livre e deputado único do partido no Parlamento - que terminou funções esta semana - esteve esta terça-feira na Renascença, onde foi entrevistado pela jornalista Susana Madureira Martins.

Leia a entrevista na íntegra:

Dizia, há dias, que se defende o Estado social dizendo como é que o Estado Social vai fazer mais no sector público. Que resposta é que tem para dar a um professor que reivindica a recuperação integral do tempo de serviço e que já ouviu as propostas do PSD e a do PS... O que é que o Livre tem a dizer sobre esta situação?

O Estado social é um contrato entre nós todos e, portanto, precisa de ser revalidado de tempos a tempos e de encontrarmos, entre nós, as formas como esse contrato deve funcionar. Em relação aos professores, o Livre diz a mesma coisa que diz desde 2015: o Livre, em 2015, era o único partido da esquerda pró-geringonça - ainda não sabíamos que iria ter esse nome – que tinha no seu programa a contagem integral do tempo dos professores, porque é uma questão de dignidade: as pessoas devem ser remuneradas pelo trabalho que fazem. E isso, aliás, se outros partidos – infelizmente, os outros partidos não tinham isso no seu programa – porque teria evitado, a meio do mandato da geringonça, o único momento de verdadeira instabilidade que houve foi aquela ameaça, aquela sugestão de António Costa de que o Governo se demitiria no momento em que a Esquerda à esquerda do PS e o PSD aprovaram essa reposição do tempo de serviço dos professores e depois o PSD recuou...

E agora, em 2024?

Revalidar esse contrato significa chegar a acordo com os professores para a contagem integral do tempo de serviço. Chegar a acordo já rapidamente no início da próxima legislatura. Essa contagem pode ser diferida no tempo...

Pode durar mais que uma legislatura, como Pedro Nuno Santos já propôs, por exemplo?

Ela tem de ser negociada com os sindicatos. Preferivelmente, ela deve ser feita numa legislatura e pode estar em cima da mesa – dependendo do que os sindicatos também acharem aceitável - haver uma entrada no tempo de reforma, de aposentação, mais cedo, uma vez que se trata de uma profissão que todos reconhecemos que tem um desgaste muito acentuado. Mas isso deve ser parte de um contrato, um contrato para a educação. Precisamos muito de dar um novo impulso à nossa escola pública. Precisamos que ela se torne mais diversificada, mais especializada em alguns aspetos.

Precisamos que ela tenha mais valências e, para isso, precisamos de contar com os professores. Precisamos de demonstrar, perante os professores, perante a sociedade no seu conjunto, perante aqueles jovens que têm vocação de ensinar mas que, se disserem lá em casa que 'eu quero ser professor’, toda a gente os vai tentar desenganar disso... Vai dizer que é horrível, que é uma profissão que só tem problemas e depois o Governo não os ouve, não são respeitados, etc. Precisamos de demonstrar que isso não é verdade. E, portanto, o primeiro passo é...tem de ser dignificada a carreira de professor porque só assim temos pessoas que têm vocação de ensinar, que sonham ser como os seus professores que lhes mudaram a vida, a poderem ser professores e só assim podemos relançar esse contrato, que é dignificar, contar o tempo de serviço... ao mesmo tempo pedir às pessoas mais responsabilização, mais autonomização, mais capacidade de avaliação, para fazermos a escola do futuro.

E em relação às polícias? Temos neste momento um protesto a decorrer, com reivindicações por parte da PSP e da GNR para uma equiparação de um suplemento que foi aumentado, por exemplo, à Polícia Judiciária e não foi acompanhado para estas duas forças de segurança. O Livre acha que esta compensação e este suplemento devia ser aumentado ou isso é dar pasto a outras forças partidárias?

Não. Já deveria ter sido feito antes. Há aqui uma situação de injustiça relativa e acho que os governantes, quando cometem essas situações de injustiça relativa – pelo menos é assim que ela é percebida pelos agentes da PSP e vê-se que há ali uma reação que é de indignação perante essa diferença de tratamento. Isso significa que há um problema de comunicação, de negociação que deve ser corrigido tão prontamente quanto possível. Porque, assim, procurando não cometer essas situações de injustiça relativa, se esvaziam movimentos que depois podem facilmente adquirir uma viragem populista, ser aproveitados. Dentro daquela mesma ideia do novo contrato para o estado social, um novo contrato para todos nós, um contrato com o futuro – como lhe chamamos no Livre. É muito importante perceber que, se vamos resolver o problema dos professores... as carreiras da função pública são diversificadas – umas evoluem por pontos, outras por tempo de serviço - pode haver ter que haver acertos noutras carreiras também.

E é possível responder a todas as carreiras da Administração Pública? Pedro Nuno Santos também já veio dizer que quer fazer a valorização de todas as carreiras da Administração Pública...

Não é possível responder a tudo ao mesmo tempo da mesma forma... Ou melhor, deixe-me reformular: é possível ter um diálogo com as várias carreiras da Função Pública - e, na verdade, com os vários sectores da sociedade – em que se diga que estamos num novo momento da nossa democracia e do nosso Estado também. Os problemas do défice e dívida excessiva que marcaram a nossa década anterior, desejavelmente para o futuro não vão existir da mesma forma. Deve-se fazer aquilo a que chamamos um compromisso de equidade e investimento que diz que, do superavit - que foi conquistado com o nosso esforço - uma parte deve ir para pagar dívida, outra parte para investimento público, outra parte para a emergência social...e, aí sim, é possível dizer às pessoas que, no tempo, vai ser possível responder a reivindicações, nomeadamente com princípios de necessidade, de proporcionalidade, de urgência.

Guardar o excedente orçamental, como sempre defendeu Fernando Medina e António Costa, não é uma opção... para uma eventual recessão que já muitos economistas preveem.

António Costa chegou a dizer, num debate na Assembleia da República - creio que no único debate quinzenal que acabamos por fazer depois da reintrodução dos debates quinzenais – que aquela ideia do fundo a que chamaram fundo Medina era uma resposta à proposta do Livre deste compromisso de equidade e investimento, mas são coisas muito diferentes.

O que o Livre propõe é uma coisa muito simples: tal como tínhamos os pactos de estabilidade e crescimento com Bruxelas - que, basicamente, eram contratos entre Lisboa e Bruxelas acerca de como diminuir a dívida pública e como ir diminuindo o défice - , agora, numa fase que é de superavit, o contrato deve ser connosco todos. Aquele superavit é o resultado do nosso sacrifício conjunto.

Evidentemente, muita gente sabe que uma parte dele deve servir para diminuir a dívida e não há nada de mal com isso, porque, ao diminuir a dívida, também pagamos menos juros da dívida e estamos a poupar duas vezes. Mas um país que só paga dívida a certa altura nem a dívida paga, porque não investe e, não investindo, não cresce e porque não acolhe às emergências sociais. O que é preciso? É preciso um grande debate nacional em que, em vez de estarmos nesta situação de ‘casa onde não há pão todos ralham e ninguém tem razão’, perceber que até há um bocadinho de pão - que é o tal superavit -. Tem de haver um plano para a redistribuição desse pão primeiro onde é mais urgente – por exemplo, a crise que temos nos sem abrigo, que é uma coisa urgentíssima de resolver, porque se não fica pior para as pessoas e pior para nós. Uma solução encontrada hoje significa vidas que, basicamente, reencontram o seu caminho. Se vamos achar que vamos resolver isto daqui a dois anos, depois das pessoas estarem na rua dois anos, depois de passarem por uma série de problemas que atingiriam qualquer um de nós, de saúde mental, de dependências, etc... É muito pior para aquelas pessoas, são vidas que ficam, provavelmente, irremediavelmente afetadas, e é muito mais caro para o Estado. Portanto, é possível ir às urgências, mas não é possível fazer isto sem diálogo social e político.

Não é possível fazer isto no estado de polarização política em que estamos e não é possível fazer isto com agentes oportunistas que dizem ‘o país está todo mal, são todos corruptos, vamos pegar fogo ao circo’.

O líder do PS, no encerramento do congresso do partido, veio colocar uma meta de atingir o salário mínimo de pelo menos mil euros até ao final da próxima legislatura. Era, aliás, uma meta que o Livre queria, de chegar aos mil euros. Neste momento, essa meta foi dita por Pedro Nuno Santos... É demasiada ambiciosa agora ou já até podíamos ir mais além dos mil euros?

A meta do Livre era diferente e é diferente. E demora um bocadinho...

Mas era de mil euros numa legislatura.

... mas por uma razão. E, para isto, vale a pena contar uma história.

Curta...

Curta. É uma história entre dois países. Portugal e Espanha têm o salário mínimo ao mesmo tempo. São produtos da democracia. A seguir ao 25 de Abril foi das primeiras leis aprovadas, a do salário mínimo. Em Espanha fizeram a mesma coisa, em 75, se não me engano. E, desde então, até 2015, o salário mínimo português foi sempre 80% do salário mínimo espanhol...

Salário mínimo espanhol que é de 1083 euros, creio.

E vai passar para 1134, se não me engano.

O Livre acha que podia ir até essa margem?

Essa deve ser a nossa meta. O que aconteceu - e aí é uma das coisas que eu critico à geringonça que, em geral, até defendo - é que, naqueles anos do primeiro Governo de António Costa, deixamos deslizar o salário mínimo português, que era 80% do espanhol, para cerca de 70% do espanhol e isto, não só é mau do ponto de vista do trabalhador, mas também é mau na maneira como o país se apresenta aos investidores.

Se a Susana for um investidor estrangeiro, com capital para investir em Portugal ou em Espanha, vai pensar duas coisas diferentes de Portugal ou de Espanha com esta evolução do salário mínimo. Vai pensar que Espanha é bom para o valor acrescentado, para o investimento mais exigente, de maior qualidade, que é mais caro mas mais prolongado no tempo, e vai pensar que Portugal é bom para os salários baixos. E o problema aqui de Portugal ter deixado distanciar-se no salário mínimo não é só porque temos basicamente os mesmos custos...

Mas aí depois também não há o problema de, a dada altura, o salário mínimo ser praticamente igual ao salário médio?

Não, nós vemos que, nos aumentos de salário mínimo que tivemos, que eles ajudaram o salário médio - e, também, ainda mais, por maioria de razão, o salário mediano - a subir. Portugal tem que dar um salto de desenvolvimento para uma economia que seja de alto valor acrescentado, uma economia do conhecimento, que é o modelo produtivo mais avançado que temos no mundo. Não vamos fazer isso fazendo aquilo que sempre fizemos ao longo da nossa História, que é aviltar o valor do trabalho. Portugal teve sempre esta encruzilhada, que é vendermo-nos como país de mão de obra barata ou valorizar o trabalho. Mas depois - lá está: a questão do contrato e do diálogo - para salários mais altos, para menos tempo de trabalho, um trabalho que seja mais produtivo, que incorpore mais conhecimento, mais tecnologia, e que possamos vender mais caro. O que a gente tem que vender mais caro é o produto do nosso trabalho. Não devemos andar a vender o nosso trabalho mais barato porque não se compete na Europa assim e perdemos os nossos jovens assim.

Em relação à carga fiscal, como é que se diminui? Com a redução ou a eliminação de impostos indiretos... o IVA, por exemplo?

O IVA, sob bens essenciais, ou bens que sejam bens de consumo interclassistas, por assim dizer, deve certamente diminuir porque os pobres pagam o mesmo que os ricos.

E outros impostos?

Outros impostos. Impostos sobre a classe média, sobre o trabalho. Mas isso também significa que não podemos pôr o Estado social em risco.

Por causa da receita...

Por causa da receita. Se nós estivermos a dizer à classe média: 'Vamos diminuir os vossos impostos. Ficam com mais 200 ou 300 euros no bolso ao final do mês' - que é ótimo, toda a gente sabe que faz falta - . Mas, ao mesmo tempo, os teus serviços públicos de que dependes, vão desaparecer. É o argumento da Iniciativa Liberal. É seduzir a classe média a fazer uma aliança com os ricos - que não vão ficar com 200 ou 300 euros ao fim do mês. Vão ficar com mil, 1500, dois mil. E com as empresas que estão interessadas na privatização dos serviços sociais.

Ora, o nosso contrato social original do 25 de Abril em Portugal, que é aquele que eu acho que tem mais futuro, é uma aliança entre a classe média e os pobres - que basicamente são os pais e os avós da classe média em Portugal, porque somos um país que, genericamente, toda a gente veio da mesma situação de insegurança social... e dar serviços públicos, sim. Sim, a classe média está a pagar muitos impostos, mas há outros que estão a pagar poucos impostos.

E eu vou dizer quem está: na prática, as empresas em Portugal pagam muito menos do que se paga no resto da Europa. Há impostos sobre fortunas, sobre património e sobre grandes heranças que, ou devem ser calibrados para serem mais progressivos, ou devem ser reintroduzidos. E há um combate à evasão fiscal que tem de ser feito. É impossível saber exatamente quanto é a evasão fiscal, mas estimativas conservadoras dão-nos entre 10 e 12 mil milhões de euros por ano... É um Serviço Nacional de Saúde por ano.

Temos várias medidas que temos apresentado. Temos um projeto de resolução que a IL e o PS fizeram favor de esvaziar, mas tinha uma série de medidas no combate à evasão fiscal, porque o que se recuperar por ali... Lá está, a carga fiscal tem é de estar distribuída. Não podem ser todas as costas a aguentar a mesma carga fiscal.

E o IRS, é possível baixar? Que modelo é que o Livre defende?

O Livre defende um modelo de IRS mais progressivo, em que as classes médias possam pagar menos, mas em que quem pode mais possa pagar mais.

Tendo em conta os problemas na Saúde, na próxima legislatura o diretor executivo do SNS, Fernando Araújo, deve continuar? Deve ser repensada esta política de uma cúpula lateral ao ministro da Saúde? Como é que vê...ou isso não interessa para nada e interessa mesmo é resolver os problemas nas urgências?

Acho que interessa e acho que o país também não pode estar sempre a mudar modelos. É um modelo que foi experimentado agora.

Então, para clarificar: Fernando Araújo devia manter-se no cargo?

Não é uma questão de pessoas. Evidentemente, se a pessoa quiser continuar, está há pouco tempo no cargo. O cargo de diretor executivo do SNS não o teríamos criado desta maneira, mas também não achamos que tudo o que os outros fizeram seja para refazer. Mas, na saúde, precisamos de ter harmonia social e laboral no primeiro ano de legislatura. Se possível, deveríamos ser mais ambiciosos e deveria ser nos primeiros cem dias de uma nova governação.

E devemos investir em modelos como o das Unidades de Saúde Familiares, que agora estão a passar de A para B, que são modelos em que os médicos, os enfermeiros e os outros profissionais de saúde, podem, em conjunto, propor ao Estado criar um centro de saúde. Depois, definem entre si os seus horários, são muito mais flexíveis para quem tem filhos, para quem se quer qualificar, formar, etc. Num modelo B têm, inclusive, políticas de remuneração por objetivos e essas são contratualizadas. Acho que é um modelo interessante na saúde que pode ser replicado noutras áreas. Pergunto-me, até que ponto, não deveríamos, por exemplo, na educação, também permitir onde há pouca autonomização dos professores porque é tudo decidido no Ministério. Por que é que professores, auxiliares de ação educativa, outras pessoas da comunidade educativa que tenham um projeto educativo novo, um projeto educativo especializado, etc. Fazer essa proposta ao ministério da Educação e ser uma escola pública, com os salários pagos aos professores como funcionários públicos, mas com uma governação de escola diferenciada. Acho que isto tornaria a nossa administração pública e o nosso Estado mais flexíveis, mais inovadores, atrairia mais gente nova e é uma possibilidade de podermos dizer às pessoas que o nosso contrato social não está esgotado e ainda tem espaço para a inovação.

Em relação à Justiça... Se calhar também vai falar-me de um contrato social nesta área...

É possível.

Esta crise política foi também criada por um caso de Justiça. Para o Livre, o Ministério Público passou a ser um protagonista político ou está a cumprir escrupulosamente as funções?

O grande problema da Justiça é a morosidade e é a maneira como as pessoas comuns têm medo de levar os seus casos à Justiça para verem os seus direitos respeitados ou verem injustiças que lhes foram feitas corrigidas. Esse é o nosso grande problema. Demora três anos para um caso cível ser resolvido em Portugal. Na Dinamarca é três semanas. Repare no que isto significaria para a nossa economia... ter problemas de todo o tipo resolvidos, já nem diria em três semanas, mas em três meses. Aí temos que investir, pôr muito mais dinheiro... Por isso, sim, se calhar também significa um contrato com os oficiais de justiça, com os juízes. Vamos resolver o que está de adquirido, de passado, os casos atrasados, vamos investir em meios técnicos e vamos andar mais depressa.

No caso do Ministério Público, que é o que me pergunta, é outro tipo de debate. E é um debate mais profundo, que é um debate que tem a ver com a cultura de exercício do poder em Portugal, que é muito antiquada no poder político e no poder judicial. E, neste momento, não só antiquada como parece que estão cada vez mais distantes uma da outra.

Assistimos àquela coisa um bocadinho surreal de ver o primeiro-ministro a fazer uma comunicação ao país num sábado à noite para, no fundo, dar uma aula de administração pública. O público-alvo éramos nós, mas também era o Ministério Público. Dizer 'num Governo faz-se assim. Vem investimento direto estrangeiro. Achamos que temos de facilitar, telefonamos uns aos outros e isso não é crime'.

Condicionou...

Não sei se condicionou ou não. Ele estava a dizer o que acha que é normal um poder executivo fazer. O que não é normal - e vai levar a um problema de regime muito sério em Portugal - é, a certa altura, o poder judicial e o poder político terem duas visões completamente diferentes daquilo que faz um Governo. Isso aí estamos a desaproveitar completamente os 50 anos do 25 de Abril neste sentido: as pessoas estão mais exigentes e deve-se fazer um grande debate nacional em várias áreas - na Justiça e o combate à corrupção é uma delas - para que, de facto, deixe de haver estas zonas cinzentas no que o poder executivo pode ou não fazer. Não podemos criminalizar a ação política também.

E em relação a Lucília Gago... Termina o mandato este ano - em Outubro, salvo erro - na Procuradoria-geral da República. O Livre considera que devia haver uma recondução ou aquele entendimento entre PR e primeiro-ministro de que o mandato seria só de um mandato...deveria ser repetido neste caso?

Susana, se não se importa, vou fugir à pergunta mas, como estou a confessar, pode ser que me absolva logo, porque não costumo... não é parte do meu estilo falar sobre pessoas e pronunciar-me sobre casos de pessoas.

Então em abstrato? O protagonista da Procuradoria-Geral da República deveria ser reconduzido ou não?

Em concreto, posso dizer em que é que eu critico a maneira como a senhora procuradora conduziu este processo, mas outros também, e que tem a ver com a tal cultura de exercício de poder. Não gostei de ver nem o primeiro, nem o segundo comunicado da Procuradoria-Geral da República acerca de um tema de importância fundamental para o país... Toda a gente fala do primeiro e do famoso parágrafo que levou à demissão do primeiro-ministro mas, no segundo comunicado, dizia-se, parafraseando: 'para quem acha que este caso vai ter uma resolução rápida através do Supremo, fiquem sabendo que a investigação tem que ser concluída no Ministério Público para depois o Supremo poder decidir, portanto vamos demorar o tempo que tiver de demorar a sabermos se, afinal, o primeiro-ministro esteve envolvido em corrupção ou não' - ou nestas suspeitas muito graves. E, depois, era assinado pelo gabinete de imprensa. Isto é que eu acho... isto é que devemos recusar.

Houve uma desresponsabilização por parte da própria procuradora-geral?

Devo dizer que pode ser uma picuinhice de historiador mas, como historiador, isto fez-me lembrar dos tempos em que decisões com impacto sobre a vida das pessoas eram assinadas por instituições mais ou menos obscuras. Quem eu conheço é a Procuradoria-Geral da República, que tem uma procuradora que está no topo da hierarquia. Eu não sei quem é que são os assessores do gabinete de imprensa da Procuradoria. Que, aliás, nem os seus nomes apareciam no comunicado.

Qualquer destas coisas é um sintoma de um mal estar profundo na cultura de exercício de poder em Portugal, tanto político como judicial, que, se não ultrapassarmos vamos ter um gravíssimo problema de regime.

Estamos na reta final e gostava de lhe fazer aquela pergunta que tem sido feita sobre eventuais entendimentos com o PS ou com a esquerda no quadro pós-eleitoral em que não há maioria... Em que o PS possa ganhar, mas sem maioria. Este entendimento... como é se pode lá chegar e em que condições? Com acordo escrito, sem acordo escrito?

Essa resposta é sempre a mesma. Uma maioria absoluta é indesejável. Acho que toda a gente já aprendeu com a última. Então, temos de fazer o que fazem as melhores práticas europeias: famílias políticas que tenham afinidades. No caso da esquerda, do progressismo, da ecologia... devem sentar-se à mesa. Ainda por cima, nem sequer temos o contrarrelógio de um orçamento em cima das nossas cabeças. Devem negociar, como se faz na Alemanha, nos Países Baixos.

O Presidente da República devia, nesse caso, pedir um acordo escrito... que não pediu, por exemplo, em 2019?

Acho que foi uma falsa facilidade que o Presidente deu, mas acho que os próprios partidos deveriam ter exigido um acordo escrito. O Livre disse-o na altura e, nesta altura, di-lo também. E mais: não deve ser um acordo Livre-PS, Bloco-PS, etc. Tem que ser um acordo multilateral com programa de Governo, porque, na verdade, esse é só o começo da História. Estamos perante uma crise que tem elementos de crise de regime, onde há um partido oportunista que quer, basicamente, acabar com o regime tal como o conhecemos e onde os acordos que temos de ter são de governação entre progressistas, mas são acordos democráticos que juntam também democratas do centro e da direita que veem o risco que estamos a correr.

[Notícia atualizada às 12h31 de 16 de janeiro de 2024]