Em Pedrógão Grande houve uma "descoordenação muito grande" da protecção civil. António Salgueiro não tem dúvidas que a prioridade deveria ter ido para a protecção das pessoas porque o incêndio já tinha assumido proporções impossíveis de debelar. O que ali aconteceu é, na sua opinião, sintomático de um sistema de defesa contra incêndios que assenta num sistema de protecção civil corporativista, avesso a mudanças, que nem os políticos se atrevem a contestar. Pede que se apurem responsabilidades com inquéritos sérios. Teme que tudo se volte a repetir caso não se tente uma mudança no combate alargado. Mas para isso é preciso que o conhecimento e o mérito sejam os critérios que norteiam a subida na hierarquia nas estruturas da protecção civil, em vez da pressão dos interesses. Em que prevalece o do mais forte, não o do melhor.
Apelando à sua experiência, tanto da floresta portuguesa, mas também dos métodos de prevenção e combate aos fogos, o que é que lhe parece que aconteceu no sábado à tarde especialmente no concelho de Pedrógão Grande?
Ainda é difícil ter certezas sobre o que se passou pois não temos toda a informação importante - e esperemos que esta seja tornada clara e pública porque todos o merecemos, tanto os cidadãos, como aqueles que trabalham no sector ou os que vivem nas áreas florestais e delas dependem - mas parece que, de facto, terá havido uma descoordenação muito grande a nível, sobretudo, de protecção civil. Parece ter havido essencialmente um incidente de protecção civil. É sabido que há momentos em que os fogos florestais são incombatíveis e, por mais esforços que façamos, não os conseguimos debelar. Quando situações destas escapam à primeira intervenção, muitas vezes temos que assumir que, de facto, não é o momento de fazer extinção, é o momento de a planear para fazer o combate mais tarde, até mesmo por uma questão de segurança dos próprios combatentes. Nesses momentos, a atenção tem que ser virada ainda mais que o normal para a protecção das pessoas e para a coordenação da protecção de pessoas.
Não sabemos efectivamente se houve trovoadas ou não. Há coisas muito estranhas nestas informações, ou na falta delas. Quando há aproximação de frentes destas, de trovoadas, aquilo que sabemos é que as condições são muito instáveis e normalmente a teoria e alguma experiência aconselham-nos a nem sequer fazer combate. A primeira intervenção tem de ser feita da melhor forma possível mas, não conseguindo resolver nesse momento, a situação vai exponencialmente aumentando de perigo para os combatentes e para as pessoas que estão próximas e, portanto, muitas vezes o conselho é que nem sequer se faça. Os processos são conhecidos e não há aqui nada de misterioso: Hoje [quarta-feira] de manhã já ouvi algumas intervenções em que se fala de mistérios e há aqui muitos mistérios, há mistérios no site do Instituto da Atmosfera e do Mar em que aparecem e desaparecem coisas: Há quem fale em mistério no local. Isto não tem mistérios: tem de facto situações extremamente complicadas, extremamente difíceis, mas consegue-se determinar com alguma antecedência aquilo que pode vir a acontecer.
Tem havido muitas responsabilidades atribuídas às condições atmosféricas que proporcionaram a dimensão da tragédia. Quanto a essas causas naturais, que leitura faz?
Elas não são piores que aquelas que temos tido em determinados momentos dos verões, que são relativamente curtos mas que se vão repetindo ao longo dos anos. Temos condições para propagação extrema de fogo: estávamos de facto com índices de seca, combinados com muitos combustíveis no terreno. Por todas as situações dos índices meteorológicos de risco de incêndios, estávamos numa situação extrema de comportamento do fogo. Mas isso não é novo, temos tido isso e é nessas circunstâncias que 1% dos fogos que nos escapam queimam 80 a 90% da área ardida. Portanto, não tem nada de particular. O que pode ter de particular — e estamos menos habituados a lidar com isso - é com as entradas de trovoadas. Tivemos esta situação em 2003. Tivemos centenas de ocorrências espalhadas quase por dois terços do país provocadas por uma trovoada e, portanto, isso é normal e voltamos a tê-lo, talvez, embora não se tenha a certeza. Como dizia há pouco, nas entradas de trovoada, a previdência diz que é melhor esperar um bocadinho para ver, que é melhor esperar que ela passe para depois poder combater. Relativamente ao comportamento do fogo e estado da vegetação e dos combustíveis mortos seria aquilo a que já estamos habituados durante o período crítico, mesmo nos momentos piores.
Diz-se que já foi encontrada a árvore zero, onde terá começado a ignição. Parece-lhe razoável que assim seja?
Nós temos de facto alguns agentes da autoridade bastante bem treinados para a determinação dos pontos de início de um foco de incêndio. É difícil, apesar de tudo, depois da ocorrência do incidente determinar se o raio que caiu naquela área foi naquele dia ou se foi há uns meses. Pode ter sido de facto. Quando temos incêndios provocados por inconsciência, por mau uso de fogo e outros de origem criminosa, normalmente começam na proximidade de vias de acesso - vias pedonais, estradas de terra, estradas municipais. No caso dos raios, pode começar em qualquer sítio, portanto, distante de qualquer acesso. Mas a política de fogo é idêntica quer este tenha começado por um raio ou por uma ignição humana.
Começou por dizer que houve aqui um falhanço da protecção civil. O que é que poderia ter sido feito perante aquele cenário?
Nós não podemos aceitar, como cidadãos, e como próximos das vítimas, ouvir dizer, durante dois dias, que tudo correu bem, que a primeira intervenção correu bem, que o combate alargado correu bem quando estamos há cinco dias com o mesmo incêndio e tivemos 64 mortos. Não correu bem, correu muito mal. Já no ano passado ouvimos dizer que arder floresta era um problema secundário, que o importante era não morrerem pessoas. Portanto, se arde floresta e se morrem pessoas, há muita coisa a correr mal. É mais fácil falar à distância e seria muito mais complicado estar no local — mas o que deveria ter sido feito nesta situação era ter dado toda a atenção à coordenação da protecção civil. Ter uma previsão mínima do comportamento do fogo, para onde é que ele iria, para evitar que as pessoas ali estivessem. Por outro lado, tentar informar ao máximo a população sobre procedimentos a tomar, apesar da falha de comunicações .
Mas antes da catástrofe, o que é que poderia ter sido feito, sabendo que seria um fim-de-semana complicado com avisos vermelhos?
Os incêndios florestais combatem-se por antecipação e não por reacção e o que temos visto é, frequentemente, atitudes reactivas. Agora vamos evacuar aldeias por tudo e por nada, vamos fechar estradas por tudo e por nada. Isto é cíclico em Portugal: sempre que se comete um erro — um erro entre aspas porque só um inquérito é que o poderá dizer — a seguir exageramos nos procedimentos que estão relacionados com esse erro.
O que se poderia ter feito à partida era primeiro ter meios disponíveis e meios facilmente accionáveis nas regiões onde sabíamos que tínhamos o risco maior. Nós sabemos quando temos propensão para incêndios florestais extremos, de comportamento extremo. Tínhamos essa circunstância, portanto devíamos preparar os meios nas zonas em que temos maior risco estrutural de incêndio para mais rapidamente actuar a primeira intervenção porque é aí que muito se joga nestas circunstâncias.
Metam-se dentro de casa
Mas a carta de risco estrutural já não é feita uma série de anos. Nós sabemos quais são as áreas de maior risco?
Somos um país muito pequenino, quem trabalha com a floresta e quem trabalha com protecção civil relacionada com os incêndios florestais tem obrigação de saber quando o risco estrutural existe. Mesmo na ausência de informação tão actualizada, temos a obrigação de saber onde está o risco. Nós sabemos que este território que está a arder agora ardeu também em 2003. E como pouco foi feito tivemos, durante 14 anos, uma acumulação de combustíveis que estava disponível para arder em quantidades enormes. Quem está nesta área sabe isso, porque este risco não muda todos os dias. Por outro lado, é preciso tentar de facto dar informações às populações que as ajudem a precaverem-se. E nós damos, frequentemente, indicações no sentido contrário.
Nós andamos frequentemente à procura da casa que ardeu, da catástrofe. Mas a maior parte das nossas casas em bom estado, habitáveis e com o mínimo de condições, não arde. É claro que, no limite, podemos dizer que todo o material é combustível e é uma questão da intensidade das chamas e do tempo de residência dessa chama na estrutura, mas de uma forma geral elas estão bastante bem protegidas: Nós temos casas em tijolo, em cimento, em pedra, com boas janelas, com estruturas muitas vezes para além das janelas que ajudam a proteger. E muitas vezes a melhor forma de as pessoas se protegerem é estarem dentro de casa, é fecharem a casa toda impedindo que qualquer fagulha entre por uma janela, não ter literalmente nada aberto.
As pessoas devem meter-se dentro de casa, preparar água, preparar toalhas molhadas para o caso de o calor começar a ser excessivo a nível dos vidros. Essa é das melhores formas que temos de nos proteger. O que acontece é que com esta insistência na casa ardida muitas pessoas têm medo de estar dentro das próprias casas e acabam por vir cá para fora.
Mas ninguém explica isso às populações?
Não temos incêndios apenas há um ano, nem há dez, nem há 20. Temos um clima propício à propagação do fogo e, portanto, temos que preparar as pessoas com anos de antecedência para que saibam minimamente de auto-protecção. Há casos de estudo que deveriam ser difundidos: houve um incêndio florestal na Grécia em 2007 que matou 73 pessoas e aldeia de onde elas fugiram para se meterem na morte estava praticamente intacta. Há que educar as pessoas e não mostrar uma casa ardida. Na maioria dos casos — não neste caso que deve ser um dos maiores senão o maior incêndio da Europa de sempre — as casas que aparecem nas notícias eram antigas casas abandonadas, eram casebres de guarda de animais ou de utensílios agrícolas. Raramente vimos uma casa na verdadeira acepção do termo, com condições de habitabilidade, que tivesse ardido.
Há quem fale na construção de abrigos. Faz sentido?
As nossas casas já são abrigo suficiente desde que não tenhamos situações de mato a entrar pelas portas dentro ou de árvores a rodeá-las completamente. Mesmo nessas circunstâncias, muitas das nossas casas são um meio seguro.
O primeiro-ministro fez perguntas a três entidades: o Instituto Português do Mar e da Atmosfera, à Autoridade Nacional de Protecção Civil e GNR para saber afinal que fenómeno meteorológico aconteceu naquela zona e até que ponto é que pode explicar a tragédia, o que é que aconteceu com as comunicações, em especial a rede SIRESP e que influência é que isso teve no desfecho final e, por fim, porque é que não foi encerrada a nacional 236. São as perguntas certas?
Começo pela terceira pergunta para qual também não tenho resposta e que é aquilo que me tem posto mais incrédulo nestes dias. Não estando no local e podendo estar a errar, como é que nós fechamos o IC8, que é a estrada com maior largura, com a maior possibilidade de defesa naquela região, e direccionamos as pessoas para uma estrada situada em plena montanha com seis metros de largura? Espero que o inquérito comece por aí e que seja um inquérito sério.
Nós temos que aprender com aquilo que corre bem, mas sobretudo com aquilo que corre mal. A nossa tradição, e acontece muito no âmbito da protecção civil, é não levarmos os inquéritos até ao fim, não os fazemos de forma séria. E porquê? Porque toda a gente acha que quando se fala de um inquérito, estamos à procura de cortar cabeças. Nós temos que procurar ver como é que as instituições funcionam. Ver, e, de facto, estão a funcionar para aquilo que foram criadas; se de facto estão a funcionar para o qual os cidadãos estão a contribuir. Só estudando aquilo que se passou e sobretudo aquilo que corre mal é que nós podemos aprender para o futuro.
E quanto ao SIRESP, a rede de comunicações de emergência?
É inacreditável! Gastámos cerca de 400 milhões de euros num sistema de comunicação de protecção civil e passados cerca de dez anos continuamos com um sistema que falha, quando os sistemas de comunicação de protecção civil têm recursos alternativos para que nunca falhem ou para que a probabilidade de falhar seja muito baixa. É incompreensível que, com o que investiu o país no sistema de comunicação de protecção civil, aconteçam episódios destes.
Sistema de protecção civil corporativista e sem oposição
Liderou durante quatro anos as equipas do Grupo de Análise e Uso do Fogo, que hoje são praticamente inexistentes. Teriam feito diferença?
Tenho alguma dificuldade em assumir que alguma coisa conseguisse fazer uma diferença tão grande sendo ela relativamente pequena. Mas temos um sistema de protecção civil que podemos dizer que é extremamente corporativista e sem oposição. E quando digo oposição não é política, é oposição transversal. Este é um sistema que é socialmente muito bem aceite. Exige muito trabalho contestá-lo e propor uma alternativa e qualquer político que se meta a pô-lo em causa vai correr riscos muito sérios. Não é que eu ache que possamos ter mudanças radicais. Não podemos fechar hoje o sistema de protecção civil que temos para ter um outro diferente daqui a seis meses. Isso seria um suicídio. Mas temos que, de facto, ver se este sistema tem sido eficaz. Temos que avaliar para aprender. Temos que ver como é que fazemos prevenção, se essa prevenção é utilizada no combate, como é que é utilizada. Temos que saber para melhorar.
Nós não temos falta de meios. Somos dos países, relativamente à sua superfície e área florestal, mais bem equipados em termos de meios terrestres de combate a incêndios florestais. Temos muitos meios, temos muitas pessoas. O que falta é inteligência no sistema estratégico, isto é, ter pessoas que saibam bastante de fogo e que se preocupem em particular com os incêndios florestais e não com a protecção civil. Cada vez que esquecemos o incêndio florestal, nós temos mais situações de problemas de protecção civil. Somos um país com grande interface urbano-florestal, portanto, quando temos situações destas, é claro que a protecção de pessoas e bens é uma prioridade. Mas tem que haver equipas dedicadas a combater, a definir a estratégia, a participar no combate para a extinção do incêndio florestal para pararmos com os problemas de protecção civil.
E isso não está a ser feito em Portugal?
Não. Na altura do GAUF [Grupo de Análise e Uso do Fogo] achámos que essa experiência poderia tentar introduzir um novo conceito, que é este da inteligência, da racionalidade, da estratégia. E esperávamos que ele tivesse um efeito tipo mancha de óleo. Não tenho a veleidade de pretender que um grupo de 20 pessoas iria fazer a diferença nesta situação [em Pedrógão Grande]. Mas atendendo às condições meteorológicas que se avizinhavam, o que teria de ter sido dito é "meus senhores, neste momento, vamos pensar o que se vai fazer quando o fogo for combatível porque, nesta fase, o melhor é salvaguardar a segurança de todas as pessoas, em particular dos combatentes". Portanto, não iríamos conseguir apagar o incêndio. Poderíamos talvez contribuir para que fosse extinto numa outra fase, num período mais curto, mas é difícil dizer.
Defende uma estrutura única de prevenção e combate?
Quem define a estratégia de governação do país é que terá que decidir isso, com apoio técnico. De qualquer forma, sem ligação entre prevenção e combate não peçam aos privados para investir em prevenção. Se eu fizer prevenção e se tiver a noção ou a experiência de que a prevenção que eu fiz não é utilizada pelas forças de combate para extinguir o incêndio, eu deixo de a fazer. A prevenção é normalmente não produtiva. Mas temos outras alternativas de prevenção que temos utilizado muito pouco, como atribuir mais valor à prevenção produtiva e não produtiva, às pessoas que utilizam os espaços florestais, tentar ter melhores acções de gestão de produtos florestais, tendo essas pessoas a responsabilidade de também fazer alguma gestão de combustíveis e vigilância.
Os resineiros estão presentes durante todo o período crítico na floresta e são os melhores vigilantes que nós temos. E custam-nos zero, pois estão a trabalhar. São os que melhor conhecem esses espaços. Temos que ter uma interligação entre as pessoas que trabalham nos espaços florestais, que fazem prevenção e, obrigatoriamente, aqueles que fazem o combate, e utilizar este conhecimento, utilizar os investimentos que foram feitos na prevenção estrutural, senão não vale a pena fazer prevenção. Todos os nossos princípios da prevenção estão desenhados para apoio ao combate, não estão desenhados para apagar incêndios de forma passiva.
Diz que são conhecidos os locais em Portugal que oferecem mais risco. Quais são as zonas que diria que é urgente manter debaixo de olho?
Toda esta zona do pinhal. Se olharmos para a cartografia de incêndios de Portugal sabemos quais são as zonas para manter debaixo de olho. Porquê? Porque as zonas que não ardem há mais de dez anos e que não têm gestão florestal têm grandes cargas de combustível. Nós temos a particularidade de termos um clima mediterrânico com influência atlântica, o que para o comportamento do fogo é terrível porque temos muita precipitação durante todo o período de Inverno/Primavera/Outono, o que leva a um desenvolvimento de vegetação excepcional, e depois temos um Verão extremamente seco como qualquer país da bacia mediterrânica.
É claro que há espécies mais resilientes que outras, que propiciam povoamentos com menor combustibilidade mas, na generalidade, podemos dizer que todas as nossas espécies ardem quando temos episódios meteorológicos destes, que são recorrentes. Faz parte do nosso clima. Mais importante que as espécies é saber se temos gestão florestal. Onde há, uma das prioridades dos investidores é diminuir o risco de incêndio, fazer investimentos para isso. Quando não há e tudo está ao abandono, o combustível vai-se acumulando normalmente e chega a cargas de 40, 50, 60 toneladas de matéria seca por hectare com muita facilidade.
Que zonas são essas?
A zona Centro em particular, onde estamos a ter agora este problema. E isto estende-se até à fronteira. As zonas que arderam nos anos de 2003, 2005 e que depois disso não voltaram a arder, são todas as zonas onde temos que ter muita atenção porque podemos ter incêndios destes, muito difíceis de extinguir depois de falhada a primeira intervenção.
O ano de 2003 foi o ano da grande catástrofe de incêndios neste país, 2005 também, 2010, depois e a cada ano de catástrofes sucedem-se livros brancos, comissões de inquérito, relatórios, estudos, grupos de trabalho, etc. Que lições é que podemos tirar de Pedrógão Grande e dos outros concelhos que estão em sobressalto por estes dias. Em relação ao sistema que está montado, enraizou-se a ideia da época de incêndios dividida em fases e temos um dispositivo de combate que não tem sofrido grandes alterações. É preciso actualizar tudo isto?
Estamos ultrapassados. Ficámos logo ultrapassados em 2006, quando fizemos um plano Nacional de Defesa da Floresta contra Incêndios e o tivemos que o cortar à tesourada, se calhar naquilo que ele tinha de mais importante, para que ele pudesse ser aprovado a nível ministerial e da Assembleia da República. A maior parte dos problemas foram identificados nesse período, depois do que aconteceu em 2003 e 2005, e foram trabalhados. Perspectivava-se não uma evolução mas uma transformação da nossa protecção civil. Sem essa transformação vamos ter este problema repetido vezes e vezes sem conta. Temos incêndios florestais todos os anos, excepto quando o São Pedro nos ajuda e manda uma chuva de 20 ou 30 milímetros, uma vez por mês durante o Verão.
Os incêndios repetem-se e nós não evoluímos no combate alargado. Evoluímos bastante depois de 2005 na primeira intervenção, mas no combate alargado não evoluímos por falta de estratégia, de conhecimento. As protecções civis têm que funcionar com mérito, formação e mérito, e é isso que tem que dar hierarquia de especialização. Não é com corporativismos, não é com divisão de cargos entre instituições com força.
Os acontecimentos de 2003/2005 permitiram ter essa visão, e a partir de 2005 trabalhou-se nesse Plano Nacional de Defesa contra Incêndios. Propunha-se uma transformação gradual da protecção civil e essa parte do plano ficou escondida, nunca foi publicada. Teve de ser amputada para vir para um formato de evolução que acabou por acontecer nalgumas áreas, mas muito pouco. A minha opinião, que é também a de muitas das pessoas que têm estado envolvidas durante alguns anos nestes assuntos, é que nós vamos ter que ter duas forças operacionais distintas nos incêndios: uma para servir exclusivamente a protecção de pessoas e bens e outra que se dedique exclusivamente à protecção do espaço florestal. O que os GAUF faziam era isso, não tinham formação, não tinham conhecimento nem capacidade para defender pessoas e bens, aquilo que faziam era tentar contribuir para que o incêndio florestal se apagasse o mais rapidamente possível, nas melhores condições possíveis, que houvesse menos pessoas e bens em perigo.
Temos que aprender com o passado, mas temos que encará-lo de forma séria. Esperemos que aquilo que aconteceu este ano sirva para mudar alguma coisa, embora confesse que não tenho muita esperança porque já vi muitas coisas e muitas vezes andamos mais para trás do que para a frente. Não podem ter morrido 64 pessoas nestas circunstâncias, não podem ter morrido os operacionais bombeiros que morreram em 2013 também, em circunstâncias algumas delas incríveis de estratégia de combate e de indicações para as pessoas que estão a fazer o combate, e tudo passar incólume, não acontecer nada, não haver uma grande transformação. Na perspectiva que nos impuseram em 2006 para o plano de evolução da protecção civil, nós não vamos conseguir resolver o problema e vamos ter mais situações destas. Aliás, já poderíamos ter tido mais situações destas, felizmente elas não aconteceram.
No início desta conversa disse que essa mudança era politicamente difícil. Porquê?
Politicamente difícil e mesmo socialmente difícil de explicar. O nosso sistema está institucionalizado desde há muitos anos, manipulado nalguns casos por algumas pessoas que aparecem constantemente no fio dos anos, para promover determinados corporativismos. Lutar contra isso é logo socialmente e politicamente extremamente difícil. E há ainda outra dificuldade: é também tecnicamente difícil. Quem, em termos políticos, quiser pegar nisto, e quando falo de políticos falo de governantes, tem que ter uma estratégia muito bem delineada para que estas mudanças, esta transformação, seja progressiva e seja eficaz. Não é fácil alguém impor-se a este sistema.