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Faz hoje um mês que trabalhei no escritório pela última vez e, pelo estado em que deixei a minha secretária, é óbvio que ignorava que não voltaria tão cedo. A 13 de março, começa o meu departamento, quase sem aviso prévio, a trabalhar de casa, uns com mais ou menos dificuldades, pois isto é um país na vanguarda em muitos temas, mas no que toca à parte digital, Portugal leva um grande avanço. Um luxo, penso agora, quando me dou conta da sorte que tenho de poder trabalhar de casa, de o meu emprego não se ter evaporado em dois dias como o de tanta gente. Nesse dia, o Sr. Ministro da Baviera, Markus Söder decide, com os membros do seu gabinete, que a vida entraria em modo pausa a partir de 16 de Marco, antecipando-se mesmo à chanceler Angela Merkel. Aplaudido por muitos, criticado por outros, mas como em tudo, nunca se pode agradar a gregos e a troianos. Ficaríamos os quatro em casa.
Passadas quatro semanas, já me questionei o porquê de não estar a sentir este período como muito pesado. Estou com os meus. A família de quem sinto tanta falta, já está longe de mim há muito e a Covid-19 apenas veio adiar o próximo encontro, que seria para breve. Não ando a correr para sair do trabalho, ir buscar um, levar a outra, dar banhos, fazer compras, levá-los às atividades. Sobretudo, não estou permanentemente à espera que o meu marido aterre, 'chegue bem' ou dê notícias. Estamos todos juntos e na maioria dos dias, gosto da nossa versão de todos juntos, com tempo para mais um jogo, para mais uma história, até mais uma birra. Com tempo para passar o dia em pijama ou para fazer campismo no quintal e com eles me esquecer que o mundo atualmente é um lugar triste.
Curiosamente, o início da pandemia coincidiu com o início dos melhores dias de Primavera na Alemanha de que tenho memória. Todos os dias quando me levanto, me sinto grata pelo sol que me entra janela adentro e me traz esperança. E quem conhece a meteorologia na Alemanha, sabe do que falo. É difícil sentir automaticamente gratidão pelo sol quando este nos vem aquecer mais de 300 dias por ano, como em Lisboa.
Na zona periférica onde eu moro, quase toda a gente tem um jardim ou quintal, ainda que reduzido. Não foi à toa que o terceiro produto a esgotar aqui para os meus lados nas prateleiras foi terra para plantas, a seguir ao fermento e ao líder do top mundial, o papel-higiénico. Cortar ervas daninhas é yoga para a alma e acho que grito menos quando tenho as minhas luvas de jardinagem calçadas e uma tesoura de poda na mão. As últimas semanas foram repletas de sol, é algo tao raro que já me estou a repetir. Os passeios ao ar-livre não foram proibidos. Admito sem qualquer pudor que saio todos a os dias de casa. Os alemães não frequentam cafés, como eu religiosamente o faço nas férias, portanto tê-los fechados não tem um grande impacto na nossa vida. Aos domingos já é comum ver-se pouca gente na rua, com ou sem pandemia. E em dias de 20 graus como praticamente foi o caso todos os dias nas últimas quatro semanas, as pessoas andam sim, fora das zonas urbanas, a fazer caminhadas e nas suas bicicletas. Os centros da cidade estão desertos, mas a floresta tem a porta aberta. Os parques infantis, que são imensos, estão desertos e essa é a imagem mais constrangedora num dia de sol. Especialmente porque a Primavera representa o recomeço, o regresso, o fim da reclusão típica do Inverno do Norte da Europa.
Eu costumo dizer em tom de brincadeira que os alemães já mantêm metro e meio uns dos outros sem pandemia, portanto agora uns centímetros extra passam quase despercebidos. A distância física entre estranhos sempre foi característica por cá.
A minha vida, em modo pandemia continua a ser como a de tanta outra gente, absorvida pelo trabalho, casa, filhos, sendo que agora é um 3 em 1. O “multitasking” é agora posto a prova. O teletrabalho quando necessário, é feito a partir da despensa ou do quarto mais longe possível da batalha de almofadas a acontecer na sala. Participo nas reuniões quase sempre em modo mute, não vão os meus colegas pensar que em vez de trabalhar, fui a uma matança do porco. Sim, a poluição sonora no meu lar atinge valores escandalosos por estes dias, mas até nisso estamos juntos. A todos se pede paciência, a todos se pede resiliência, e sobretudo pedimos muitas coisas aos mais pequenos: que não vão aos parques, que não vejam os amigos, que não façam barulho, que não vejam os avós, que não toquem com as mãos na cara, e eles raramente nos questionam. Quem sofre mais com a abstinência social acredito que sejam os idosos. Esses sim, cumprem exemplarmente o isolamento.
Os alemães são cumpridores de regras e são conhecidos por isso. E por não se coibirem de as pregar a quem não as cumpre, mesmo em praça publica. Daí eu sentir que o controlo aqui é menos rigoroso, porque se parte do princípio que as pessoas vão manter a distância mínima e não vão andar ao moche no supermercado. São também menos fatalistas e emotivos do que nós, latinos. Cada país se comporta de acordo com a fé que tem no seu sistema de saúde e os alemães sabem com o que – em circunstâncias normais – podem contar.
No entanto, e porque uma pausa numa economia como esta pode ter efeitos tao nefastos como o próprio vírus, o regresso à rotina como a conhecemos está a ser preparado e será introduzido brevemente, por etapas. Até lá, não querendo romantizar algo que nada tem de romântico, vou viver os meus dias devagar e aproveitar o sol, que é por cá o que mais falta faz. E esperar por um segundo milagre económico.
Carla Paiva é natural de Lamego mas vive em Ratisbona, na Alemanha, desde 2004. É casada com um alemão e tem dois filhos.