Criar um imposto extraordinário sobre os lucros inesperados das empresas que estão a beneficiar com a inflação não vai baixar os preços. Pode até ter um efeito contrário. A advertência é feita pelo coordenador da Unidade Técnica de Apoio Orçamental (UTAO), da Assembleia da República.
Rui Baleiras reage assim ao anúncio feito pela presidente da Comissão Europeia de que vai propor aos Estados-membros que os lucros das empresas de energia acima dos 20 por cento dos valores médios dos últimos três anos de atividade seja objeto de uma contribuição extraordinária de 33 por cento.
A medida, segundo Rui Baleiras, “não destrói o incentivo para as empresas aumentarem o preço de venda dos seus produtos".
"Elas vão ganhar menos por cada euro que cobrarem, mas o incentivo a aumentarem os preços continua lá. Portanto, a medida nem sequer consegue alcançar o objetivo que é enunciado no documento da Comissão Europeia", sublinha.
O coordenador da UTAO admite também que a tributação extraordinária possa ter outro efeito perverso: levar empresas que pagam impostos na Europa a deslocalizarem-se para outros continentes.
O fiscalista Diogo Feio concorda: aumentar a tributação das empresas não baixa os preços e pode, até, er um efeito inflacionista: "É um custo que as empresas têm e, por isso, o que vai suceder é que os preços - e não estou a falar de nenhum setor específico, estou a falar em geral - também aumentam. Isto não me parece razoável. Na redistribuição de rendimentos, eu não optaria pela solução fiscal ,como principal meio de intervenção.”
O próprio Bloco de Esquerda (BE), que tem vindo a defender a aplicação da tributação extraordinária, reconhece que para baixar a conta aos consumidores teria de haver controlo de preços. ”Uma taxa vai baixar o preço? Não, para os preços baixarem é preciso controlar os preços. E isso é uma decisão política-introduzir o controlo de preços para comprimir margens e não permitir às empresas aumentar tanto os preços. O que a taxa faz é socializar os ganhos excessivos e astronómicos que estas empresas estão a ter numa período de inflação ou num período de crise", admite a deputada Mariana Mortágua.
O aumento dos lucros nas empresas de energia foi, em média, de 50 por cento. Só a Galp anunciou um lucro de 420 milhões de euros, no primeiro semestre do ano.
Além da energia, o BE defende também que a banca seja objeto de uma tributação extraordinária “destinada a financiar um fundo para apoiar as famílias em dificuldades para liquidar os empréstimos e que podem estar em risco de perder a casa para o banco”. Os lucros dos bancos ficaram em média 75 por cento acima do ano anterior. Só o BCP multiplicou os lucros por seis.
Em relação ao retalho alimentar, outro dos sectores onde os lucros têm crescido acima da média, Mortágua defende que se intervenha ao nível dos preços, para evitar a especulação.
O grupo Jerónimo Martins, dono do Pingo Doce, teve no primeiro semestre lucros de 278 milhões de euros, o que representa mais quase 40 por cento do que ganhou em período homólogo. Do lado da dona do Continente, os lucros foram igualmente expressivos. A SONAE quase duplicou os lucros no primeiro semestre do ano.
"Taxas e sobretaxas sobre lucros acima da média europeia"
Como uma posição radicalmente oposta, o fiscalista e antigo eurodeputado e deputado do CDS Diogo Feio defende que Portugal já tem taxas e sobretaxas sobre os lucros das empresas acima da média europeia.
Comparando a nossa situação fiscal com a de países como Espanha e Itália, que, unilateralmente, avançaram em agosto com a tributação sobre os lucros inesperados, Portugal cobra, ainda assim, mais impostos. “Já existem em Portugal sobretaxas sobre os lucros das empresas. Os números, aliás, demonstram uma coisa relativamente simples: Portugal está nesta matéria em lugar cimeiro entre os Estados da União Europeia. A tributação chega aos 31 por cento, quando em Espanha, já depois de ter aplicado as novas medidas, está com 25 por cento ou a Itália que está com 27,8 por cento, ou a Grécia com 24 por cento ou a Grã Bretanha com 19 por cento. É importante vermos estes dados para percebermos de que é que estamos a falar”, aponta o advogado fiscalista.
Diogo Feio lembra que as taxas e sobretaxas que se destinam a tributar os lucros acima da média (a derrama estadual), não são sequer recentes, foram criadas no tempo de José Sócrates.
O eurodeputado socialista Pedro Marques não concorda. Marques Tem sido uma das poucas vozes do PS a defender impostos extraordinários sobre os lucros das empresas de energia. Está, por isso, satisfeito com a proposta da Comissão Europeia, que “só peca por ser tardia”.
Pedro Marques considera muito importante que "a medida seja coordenada a nível europeu” e, em relação a Portugal, diz que "o nosso país e Espanha já deram passos no controlo dos preços com o mecanismo ibérico, mas isso não obsta a que apliquem o imposto extraordinário sobre os lucros”, nomeadamente "das empresas de produção de petróleo e refinação”.
A tributação extraordinária, anunciada pela Comissão Europeia, abrangerá apenas as empresas de petróleo, gás carvão e refinarias. Em relação ao mercado elétrico,, a opção é fixar preços máximos. Pedro Marques explica que “no caso da eletricidade, haverá uma intervenção direta sobre o preço a pagar pela consumidor. Portanto, é um mecanismo de intervenção de mercado".
"Do lado do petróleo, do gás, do carvão, aplica-se a tributação extraordinária e depois os governos ou recolhem essa receita diretamente e aplicam-na a baixar tarifas ou a fazer transferências para as famílias, como vão ser feitas em Portugal, ou partilham uma parte dessa receita a nível europeu e essa receita será por sua vez redistribuída em medidas diretas aos consumidores.”
Estas são declarações feitas ao programa "Em Nome da Lei", que é emitido na Renascença aos sábados, depois do meio-dia, e também disponível nas plataformas de podcast e na da RR, a popcast.