Samantha Fuentes é uma das alunas da escola da Florida que ficou ferida na semana passada quando um atirador matou 17 pessoas naquele estabelecimento de ensino. Foi atingida nas duas pernas e alguns estilhaços alojaram-se-lhe junto do olho direito.
Quando estava em tratamento no hospital, recebeu uma chamada de Donald Trump. Nesta sexta-feira, recordou ao “New York Times” esse contacto do presidente. “Ele disse que tinha ouvido que eu era uma grande fã dele, e depois disse que ele também era um grande fã nosso. Tenho a certeza que ele inventou isto. Ao falar com ele, nunca ninguém me deixou tão indiferente na vida. Não me fez sentir minimamente melhor”. Samantha, que já saiu do hospital, revelou ainda que Trump chamou ao atirador “cãozinho doente” e disse pelo menos sete vezes a interjeição “oh boy, oh boy”.
Esta descrição do telefonema surge dois dias depois da sessão em que Trump recebeu na Casa Branca familiares e sobreviventes dos últimos três massacres ocorridos em escolas americanas e no qual se esforçou por ouvir as angústias e as sugestões de quem se viu envolvido em tais tragédias. Acontece que as notas que tinha na mão foram fotografadas e revelam que Trump tinha lembretes para reagir com compaixão ao que ouvia e expressões como “quero ouvir-vos” para dar a ideia da sua empatia com os interlocutores.
Geralmente, as notas para intervenções públicas focam-se em aspetos concretos das conversas, assuntos relevantes, substantivos, e não em expressões ou interjeições para criar boa impressão. Mas essa parece ter sido a principal preocupação da autora das notas, a assessora de comunicação do presidente Hope Hicks, quando o preparou para a reunião.
Encenar tudo, incluindo falsas emoções, é a palavra de ordem na Casa Branca, mas nem sempre as coisas correm bem ao presidente, como aconteceu no telefonema com a jovem Samantha Fuentes. O que aliás tem sido abundantemente demonstrado ao longo deste primeiro ano de exercício do cargo. O caso do massacre da escola de Parkland não é, por isso, exceção.
Logo nas primeiras horas após a tragédia, Trump aproveitou para atacar o FBI por ter falhado na vigilância ao atirador, ligando essa falha ao suposto excesso de recursos que o FBI estaria a alocar à investigação sobre as ligações da campanha trumpista à Rússia. Sempre e só os seus interesses pessoais - e a baixa política - acima de tudo o resto. Esta reação suscitou os mais indignados protestos e foi só quando percebeu a onda emocional que os alunos de Parkland estavam a gerar no país que Trump veio cavalgar a onda, dizendo-se empenhado em significativas alterações na legislação sobre armas.
Falou então em quatro medidas que reputou importantes: melhorar o escrutínio a quem quer comprar armas (background checks), proibir os dispositivos que tornam armas semiautomáticas em armas de guerra (bump stocks), reforçar a vigilância sobre quem sofre de doenças mentais impedindo-os de ter acesso a armas; aumentar a idade para ter acesso a armas dos atuais 18 para 21 anos.
As duas primeiras medidas são relativamente pacíficas e até a Associação Nacional das Armas (NRA), o poderoso lobby do sector, não se lhes opõe. E a terceira também é pacífica. Mas convém recordar que Trump revogou há exatamente um ano uma ordem executiva do presidente Obama que dificultava a venda de armas a quem tinha problemas mentais.
Quem recebia cheques da Segurança Social porque sofria de perturbações mentais e quem se tinha revelado incapaz de gerir as suas finanças pessoais foi incluído na base de dados das pessoas impedidas de comprar armas. Em fevereiro de 2017, com um mês de Casa Branca, Trump revogou esta ordem executiva de Obama, retirando da base de dados cerca de 75 mil pessoas. Hoje diz que quer ser rigoroso e impedir todos os que tenham um registo de problemas mentais de ter acesso a quaisquer armas.
É sabido que a coerência não é uma caraterística de Trump, nem algo que o preocupe e a quarta medida de que falou vai ser mais um exemplo disso. Passar a idade de acesso a armas dos 18 para 21 anos é uma ideia verbalizada há dias, mas que agora o presidente deixou cair. Em duas intervenções públicas feitas nesta sexta-feira, Trump enunciou as outras medidas em estudo, mas já não falou da questão da idade mínima. Não por acaso, esta medida é a única a que a NRA se opõe firmemente e já veio a público confirmá-lo.
Professores “amam” alunos
Em contrapartida, Trump enfatiza agora a questão de armar os professores ou outros profissionais nas escolas como a melhor forma de fazer face à violência. Uma medida também acarinhada pela NRA. No discurso que fez de manhã perante o Congresso dos Políticos Conservadores Americanos (CPAC), Trump defendeu o
fornecimento de armas a professores que tenham tido treino militar, armas que seriam sempre mantidas ocultas e que funcionariam como dissuasão para quem pensasse atacar as escolas. Isso teria duas vantagens. Daria às escolas “capacidade ofensiva”, intimidando os “cobardes” que tentam atacar, e seria vantajoso porque “os professores amam os seus alunos e estão dispostos a defendê-los”, enquanto os polícias ou seguranças não, e “por vezes nem os conhecem”.
Esta “teoria” tem sido refutada por inúmeros especialistas que lembram que geralmente os atiradores que cometem estes massacres se suicidam em seguida. Ora, para quem está disposto a morrer, não há dissuasão que valha. Por outro lado, fazer depender a defesa dos alunos do “amor” que os professores lhes tenham e dizer que os seguranças ou polícias não agem porque não têm esse amor às potenciais vítimas é do domínio do pueril. E arrasa pelo caminho tudo aquilo em que se baseia a função policial ou de segurança.
Trump serviu-se do caso de um polícia que estava à porta da escola de Parkland e que, em vez de entrar e confrontar o atirador, ficou fora do edifício e protegeu-se. Já lhe foi levantado um inquérito e demitiu-se da polícia. É naturalmente o exemplo do que não deve ser, não pode ser, a atuação policial. O xerife do condado é que revelou o caso e disse-se embaraçado pelo que tinha acontecido.
Mas Trump não desarma. E acrescenta à sua “teoria” que sendo as escolas zonas livres de armas isso encoraja os potenciais atacantes. Solução: fazer das escolas locais com armas e de alguns dos seus responsáveis agentes de segurança improvisados.
Ou seja, em vez de menos armas nas ruas, teríamos mais armas, corroborando a tese da NRA segundo a qual a melhor forma de se opor a “um tipo mau com armas é um tipo bom com armas”. Uma tese compreensível para um lobby cujo objetivo principal é vender armas - fazer correr o negócio.
Como comentava uma professora, o presidente e a sua administração estão a discutir como dar poder de fogo às escolas em vez de discutir como evitar que estes massacres aconteçam.
Mas para isso seria necessário que a discussão incidisse sobre o acesso generalizado a armas altamente letais, consideradas de guerra, mas esse é justamente o aspeto do problema que Trump quer evitar. O seu comprometimento com a NRA, que investiu 30 milhões na campanha eleitoral para o eleger (11 diretamente nele e 20 contra Hillary Clinton), é demasiado grande para o pôr em rota de colisão com este lobby poderoso. Na campanha, várias vezes garantiu que “nunca, mas nunca deixaria cair a NRA”, acusando sistematicamente Hillary Clinton de querer acabar com a segunda emenda constitucional (a que protege o direito à posse de arma).
Grandes patriotas
E nesta sexta-feira, no congresso conservador, não se inibiu de chamar aos seus dirigentes “grandes patriotas”, “grandes americanos” e de repisar praticamente os argumentos que o líder da NRA ali tinha desenvolvido na véspera. Uma sintonia que não surpreende, mas que poderia estar em xeque agora se Trump quisesse verdadeiramente ir ao fundo do problema.
Não obviamente proibir todas as armas, uma noção inexequível na América, mas pelo menos contemplar a hipótese de proibir as armas de assalto, como foi feito em 1994 pelo presidente Clinton, numa moratória que durou dez anos e que trouxe bons resultados. Armas como aquela que foi usada na escola de Parkland foram concebidas como armas de guerra.
A AR-15 foi criada para a guerra do Vietname, destinava-se a “matar vietcongs”, e mostrou a sua eficácia no terreno. Há relatos militares a dizer que a arma disparada a 15 metros separava a cabeça do corpo da vítima ou abria um buraco no peito. Foi, de resto, esta AR-15 que foi usada nos massacres mais recentes nos Estados Unidos: Newtown, Aurora, San Bernardino, Sutherland Springs e Las Vegas. Juntos registam uma contabilidade bem superior a 100 mortos e ocorreram todos após ter terminado a proibição de as vender e usar.
Como pode uma arma destas, que chega a disparar 45 balas por minuto, ser considerada uma arma de defesa? Esta é uma das perguntas que os jovens sobreviventes de Parkland têm feito e que muito tem contribuído para pôr o país a refletir sobre o tema quente do momento. A crer na maioria dessas vozes, o objetivo da sua luta é mesmo a proibição das armas de assalto, mas pelo rumo que o debate começa a levar e face à vontade (ou falta dela) demonstrada por Donald Trump começa a suspeitar-se que os resultados dessa luta serão bem mais modestos.
É, contudo, cedo para avançar com previsões fiáveis, porque a mobilização dos jovens da Florida prosseguirá e em março estão previstas duas grandes manifestações. Uma a 14 em muitas cidades e outra nacional, a 24, na capital do país. Esta procissão talvez ainda vá no adro.