Começo pelo Abade de Priscos. Se tivesse de escolher a figura destas legislativas, sim, teria de dizer: o Abade de Priscos. É que, ao ouvir os debates, foi sempre dele que me lembrei, esse Abade mítico. Para quem não conhece a história: reza a lenda que, há muito tempo, chegou aos ouvidos do Rei que certo abade teria criado um pudim imbatível; o monarca foi visitá-lo, comeu do pudim e concordou, era mesmo uma maravilha; extasiado, perguntou pela receita; o Abade declamou os ingredientes um por um, de “ovos” a “palha”. O Rei estranhou aquele último ingrediente, “Palha?” E aí, tomado de uma bravíssima serenidade, o Abade explicou: “Todo o burro come palha, o segredo está em saber lha dar.”
Pois, este cronista também estranhou muita conversa durante a campanha, e de que é isso lhe serviu? Sim, perante o que foi a discussão política neste período pré-eleições, confesso-me desiludido; parece-me que, a maior parte das vezes, faltou à discussão precisamente isso, “política”. Digamos que houve muita palha e pouco pudim. Para quem achou, como eu, que, com a saída da troika e o fim da cassete do “não há alternativa”, se iria poder falar de política a sério, estes dias têm sido de desengano. Tivemos duelos de números, “encenações” e “fenómenos virais” — mas discursos transformadores, visões de futuro…? Houve, sem dúvida, muita “comunicação”, mas para comunicar que ideias de sociedade, ao certo?
António Costa e Rui Rio acharam por bem apresentar-se como pragmáticos numa batalha pelo “centro”, esse território tão vago de ideias e tão cheio de contradições. Os dois líderes têm estilos muito diferentes, mas dão a impressão de convergir no essencial, aceitando que isto da política se resume a ter “contas certas” e navegar à vista… Como se PS e PSD fossem parceiros que escolhem sapatos diferentes para fazer o mesmo caminho. Mas um caminho para chegar, exatamente, onde?
À esquerda do PS, o BE, liderado por Catarina Martins, saiu-se melhor do que o PCP de Jerónimo de Sousa no difícil equilíbrio de se mostrar co-autor dos conseguimentos governativos sem deixar de ser crítico dos seus falhanços — mas tem passado entre os pingos da chuva, conseguindo não pôr por extenso o seu euroceticismo… E, à direita do PSD, o CDS-PP, presidido por Assunção Cristas, continua perdido e parece não ter aprendido nada com o desastre das europeias. Que partido é este que faz comícios contra o sistema, como um mau perdedor, e convida Paulo Portas para mandatário: euromanso?, eurocético? Ou será ainda o “eurocínico” do cartaz das europeias que só queria o dinheirinho lá de fora? E depois há o PAN, ou Partido dos Animais e da Natureza. Como é que diz a frase feita? O nome é todo um programa. Aliás, a existência de um partido assim é outra boa razão para a pergunta que venho fazer nesta crónica sobre a campanha: será que a política acabou?
Nelson Rodrigues, o grande escritor brasileiro, estava sempre a falar do seu amigo Otto nas crónicas. Este pequeno escritor português também tem um amigo — podemos chamar-lhe Otto, se calhar —, que brinca com o politicamente correto dos nossos dias resolvendo qualquer questão com um plural. Se lhe falam da cidade, ele diz que “não há a cidade, há cidades”; se lhe falam de um homem, ele responde que “não há um homem, há homens”… Temo que o Otto tenha acertado na ferida. Às tantas, é isso que nos resta no futuro imediato, uma cultura de dispersão, pronta-a-votar, onde “não há política, há políticas”.