Trump conseguiu ficar na história da democracia americana, pelas piores razões. Tinha convocado uma grande manifestação dos seus apoiantes em Washington, não por acaso coincidindo com a reunião das duas câmaras federais para confirmar os resultados da eleição presidencial. Entretanto, o ainda presidente garantiu que jamais aceitaria a derrota eleitoral, pois lhe tinham roubado a sua larga vitória. Dias antes tinha telefonado a um dirigente republicano do Estado da Geórgia intimando-o a encontrar 11 mil e tal votos, que lhe dariam a vitória naquele Estado. O dirigente recusou, seguindo-se os habituais insultos de Trump a quem não lhe faz a vontade.
Na reunião das duas câmaras federais o vice-presidente Mike Pence, que preside ao Senado, a quem Trump solicitara que declarasse nula a eleição de J. Biden, explicou não ter quaisquer poderes constitucionais para fazer o que o presidente queria. Toda agente sabia que era assim, mas Trump não dá importância a regras democráticas. Depois, o ainda líder da maioria republicana no Senado, Mitch McConnell, fez um veemente discurso contra qualquer reversão dos resultados eleitorais; em cerca de 60 investigações judiciais não fora encontrada qualquer fraude com algum significado na votação popular e na dos chamados grandes eleitores (colégio eleitoral).
Cada vez mais isolado, Trump incitou então os seus apoiantes na manifestação a marcharem para o Capitólio. Nesse edifício tradicionalmente guardado com grande cuidado (a última vez que ele tinha sido assaltado foi em 1814, pelo exército dos ingleses ex-colonizadores). Estranhamente, na quarta-feira centenas de manifestantes entraram ali sem dificuldade, o que revela uma enorme falha de segurança, politicamente suspeita. Foi o secretário (ministro) da Defesa quem, no Pentágono, após reunir com os líderes do Congresso e com o vice-presidente M. Pence, e sem ouvir Trump, tomou a decisão de chamar a Guarda Nacional para retirar os manifestantes da sede da democracia americana.
Entretanto, Trump aconselhava os invasores a serem pacíficos, mas só quatro horas depois da invasão começar e minutos após J. Biden solicitar uma intervenção televisiva de Trump para parar com este escândalo, o presidente aconselhou os manifestantes a regressarem a casa, repetindo, no entanto, os elogios aos que apoiam a sua recusa de conceder a derrota eleitoral. O processo de certificação dos resultados eleitorais foi atrasado, mas não anulado no Congresso. Na madrugada de quarta para quinta-feira o processo foi concluído. Se o que se passou durante longas horas no Capitólio não foi uma tentativa frustrada de esboçar um golpe político, não sei o que este seja.
Não por acaso, alguns dias antes deste triste espetáculo, uma carta dos dez ex-secretários da Defesa vivos alertava os militares para não se envolverem em golpes políticos. Entre os subscritores deste alerta encontra-se Dick Cheney, um híper conservador que chegou a vice-presidente de Bush filho e um dos arquitetos da guerra do Iraque.
Na origem dessa carta estava o receio de que Trump provocasse um grande sarilho, dando-lhe pretexto para invocar a lei marcial, o que iria paralisar a transferência dos poderes presidenciais. Se era esta a ideia por trás do ataque ao Capitólio, o golpe falhou. Mas até ao dia 20 (tomada de posse de J. Biden) Trump poderá inventar qualquer outra coisa, por exemplo na cena internacional. Agora, Trump promete uma “transição ordeira”, só que a sua credibilidade é escassa.
A invasão do Congresso secundarizou uma outra notícia surpreendente: os democratas, que há vinte anos não elegiam um senador federal na Geórgia, esta semana elegeram dois, o que lhes dá a maioria no Senado de Washington – contando com o voto de qualidade da presidente do Senado por inerência, Kamala Harris. O partido republicano teve aqui uma grande derrota, em parte devida à louca insistência de Trump em que a reeleição presidencial lhe tinha sido roubada. E J. Biden passou a contar com duas maiorias no Congresso, ainda que curtas, mas que facilitarão as suas nomeações para o governo, que têm de ser ali aprovadas. E tornam possível alguns acordos bipartidários, algo que era tabu para os congressistas republicanos dominados por Trump.
Diminuíram as hipóteses de Trump continuar a controlar o partido republicano. Mike Pompeo e outros destacados políticos republicanos, até aqui fervorosos apoiantes do presidente, demarcaram-se dele depois do assalto ao Capitólio. R. Murdoch, um grande proprietário de jornais, era até há pouco um ardente adepto de Trump; ora há dias mandou publicar no seu “New York Post” um editorial arrasador para a recusa de Trump reconhecer a derrota eleitoral. E o Tweeter e o Facebook suspenderam as contas de Trump.
O “trumpismo” não acabou, mas Trump sai de tudo isto politicamente diminuído.