A expectativa era maior em relação à votação desta quarta-feira. Havia a distinção de votos entre membros permanentes e não permanentes do Conselho de Segurança. Havia a candidatura de última hora de Kristalina Georgieva. Havia as declarações do embaixador russo a manifestar interesse em encerrar o processo dentro de dias, que aqui analisámos no último artigo.
Mas as dúvidas também cresciam na razão directa das expectativas. Já nos tínhamos habituado a que Guterres liderasse a corrida, mas desta vez a ameaça da candidatura de Georgieva poderia baralhar o jogo e alterar tudo.
A reunião do Conselho de Segurança já durava há quase hora e meia e os jornalistas impacientavam-se cá fora. Em conversas cruzadas, detectavam-se opiniões divergentes sobre o desfecho da reunião. Uma simpatia generalizada pela candidatura de Guterres coexistindo com algum cepticismo dos mais habituados aos jogos de bastidores e ao cinismo que domina as relações internacionais. Iria prevalecer a velha ordem – as negociações de gabinete? Ou a nova ordem – a transparência de processos baseada em provas públicas e avaliação de mérito?
Mas, de repente, quase ao bater das 11h30, 16h30 em Portugal, a surpresa. Aparecem todos os embaixadores dos 15 países do Conselho de Segurança e ladeiam o embaixador russo, que detém a presidência neste mês de Outubro.
Vitali Churkin toma a palavra e é ele que define o momento como “histórico”.
“Acho que isto nunca foi feito assim na história das Nações Unidas”, diz. Os jornalistas mais veteranos na ONU parecem concordar, Nunca ninguém tinha visto nada assim.
O diplomata russo anuncia então ao mundo que o CS tinha acabado de fazer a sexta votação, diz que o processo de selecção foi muito importante, sublinha a responsabilidade com que foi tratado e agradece a todos os candidatos que participaram nele. “Todos demonstraram muita sabedoria, compreensão e preocupação pelos destinos do mundo”, anota.
Estava claramente a despedir-se de todos, excepto de um. Quem seria?
Churkin não se deteve. “Mas hoje, depois da sexta votação, temos um claro favorito e o seu nome é António Guterres”, proclamou, enfatizando o nome do candidato português.
O suspense tinha acabado. Após meses de audições, debates, votações, intrigas de corredor, lobbying, desistências de alguns e insistências de outros, Guterres levava tudo de vencida. Justamente no momento em que tinha aparecido uma candidatura com a presunção de chegar, ver e vencer.
Humilhação alemã
E talvez tenha sido essa presunção que a arruinou. Chegar tardia e enigmaticamente a um concurso que pela primeira vez se pretendia aberto e transparente, apresentada formalmente por um país (Bulgária) que até à semana anterior apostava noutra pessoa, patrocinada por outro país (Alemanha) cuja influência nas Nações Unidas é menor do que a sua aspiração a grande potência procura indiciar, a candidatura de Kristalina Georgieva tinha muitos ingredientes para correr mal.
É certo que se tivesse prevalecido a velha lógica das negociações de bastidores e troca de favores, a candidata lançada pela chanceler Merkel e por Jean Claude Juncker poderia eventualmente impor-se. Mas depois de cinco votações cujos resultados foram logo tornados públicos, depois de prestações de provas em que vários candidatos se revelaram capazes de desempenhar o cargo, seria muito difícil apagar esse histórico e tirar um coelho da cartola.
Foi isso que tentaram a Alemanha e o presidente da Comissão Europeia, entre outros, numa jogada de alto risco que nem sequer se coaduna muito com o espírito prudente, calculista e sóbrio de Berlim. O tiro saiu pela culatra e a resposta do Conselho de Segurança não podia ter sido mais eloquente. A candidatura de Georgieva durou 48 horas, o que para Berlim não pode deixar de constituir uma humilhação diplomática. E política, já agora.
Os números da “straw poll” são claros: a candidata tardia obteve apenas cinco votos positivos, oito negativos e duas abstenções, sendo que dos oito negativos dois foram de membros permanentes, aqueles que indiciavam um veto nas votações formais que se seguiriam. Com este resultado, Georgieva ficou em sétimo lugar entre os dez candidatos, integrando um grupo que sem ironia se pode denominar de “carro vassoura” desta corrida.
Bokova bate Georgieva
A maior ironia vem, aliás, do facto de a candidata búlgara preterida pelo governo de Sófia na semana passada, a directora-geral da UNESCO, Irina Bokova, ter ficado à frente da sua rival com sete votos positivos, sete negativos e uma abstenção. Dois dos negativos vieram de membros permanentes, mas Bokova ficou na quarta posição, melhor do que na “straw poll” anterior. Uma posição que lhe deve ter dado uma satisfação muito particular e que será certamente motivo de polémica na Bulgária.
À sua frente apenas o sérvio Vuk Jeremic com 7-6-2 (três dos negativos de membros permanentes) e o eslovaco Miroslav Lajcak com o mesmo resultado do sérvio, mas só dois negativos dos membros permanentes.
Mas antes da “ameaça” Georgieva, Guterres teve de ultrapassar as pressões para que fosse uma mulher a ocupar o cargo pela primeira vez e ainda a lógica da rotação entre regiões que, desta vez, apontava para a Europa de Leste. E neste aspecto três factores foram essenciais: as suas próprias qualificações, o trabalho excepcional da diplomacia portuguesa e o processo aberto e público desta selecção. Por isso, a vitória do candidato português é também a vitória do processo de transparência aberto na ONU pela primeira vez este ano.
Graças a ele, toda a gente pôde acompanhar os resultados dos escrutínios e avaliar as qualificações de cada candidato. E essas marcaram claramente a diferença em relação aos rivais na corrida. Isso mesmo ficou patente ainda esta quarta-feira na votação, que foi a melhor de sempre nos seis escrutínios realizados desde Julho. Em 15 possíveis, Guterres teve 13 votos positivos, nenhum negativo e duas abstenções. Ou seja, nenhum dos membros permanentes do Conselho de Segurança deu qualquer sinal de que vetaria a candidatura portuguesa. Foi a primeira vez em que no primeiro escrutínio diferenciado – com boletins de voto de outra cor para as cinco potências com direito de veto – um candidato não recebeu qualquer voto negativo.
A manifestação desta vontade unânime quanto a Guterres levou o CS a decidir apressar o processo e a anunciá-lo publicamente. O grande consenso encontrado em torno do candidato português aconselhava a um desfecho rápido, evitando assim prolongar aquilo a que o embaixador russo tinha chamado na segunda-feira “fadiga construtiva”.
Este era igualmente o desejo da diplomacia e dos responsáveis políticos portugueses. Quando o presidente Marcelo Rebelo de Sousa esteve em Nova Iorque, há duas semanas, para a sessão de abertura da Assembleia Geral, disse aos jornalistas que esperava que a questão ficasse arrumada no início de Outubro. Havia a consciência de que um protelamento da decisão traduziria maiores dificuldades para a candidatura portuguesa.
O voto formal ficou marcado para esta quinta-feira, às 10h00 de Nova Iorque e, segundo o embaixador russo, o Conselho de Segurança tentará que a aprovação de Guterres seja feita por aclamação. Só então o seu nome será proposto à Assembleia Geral para votação final global, cumprindo o estipulado na Carta das Nações Unidas.
O antigo primeiro-ministro português terá então cerca de dois meses para conhecer melhor os cantos à casa e será empossado no dia 1 de Janeiro de 2017 para um mandato de cinco anos. Nesse dia, António Guterres entrará para o clube mais restrito do mundo: o dos secretários-gerais da ONU, um clube que tem apenas oito membros desde a fundação da organização em 1945. Que seja um português o nono a ocupar um cargo de tal complexidade e relevo internacional é algo a que só assistiremos uma vez na vida.