Governo admite que objetivos do PRR podem derrapar, mas Portugal não é caso único
09-06-2022 - 00:09
 • Susana Madureira Martins (Renascença) e Liliana Borges (Público)

Em entrevista ao programa Hora da Verdade da Renascença e do jornal Público, a ministra da Presidência, Mariana Vieira da Silva, admite que o caminho será de dificuldades e reconhece que “em toda a Europa” já se discute como é que se irá lidar com os efeitos da invasão da Ucrânia por parte da Rússia.

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Mariana Vieira da Silva é a governante que vai gerir a execução do maior envelope financeiro de ajudas europeias da história nacional, cerca de 58 mil milhões de euros até 2027. Em entrevista ao programa Hora da Verdade da Renascença e do jornal Público, a ministra da Presidência admite que o caminho será de dificuldades e reconhece que “em toda a Europa” já se discute como é que se irá lidar com os efeitos da invasão da Ucrânia por parte da Rússia.

Porém, a ministra sublinha que a dificuldade não é exclusiva ao Governo português e recusa considerar que esta seja uma “discussão nacional”. “É um debate europeu”, insiste.

A semana passada, o coordenador da Comissão de Acompanhamento do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR), o professor Pedro Dominguinhos, admitiu que a inflação e o aumento do preço dos combustíveis colocam em risco a execução do programa. Vê esse risco para Portugal?

Neste momento, em toda a Europa e com a Comissão Europeia, já se discute como lidar com as metas do PRR, mas não só. [Discute-se também como lidar] com as metas que foram estabelecidas em função de um significativo aumento de preços e de dificuldade no acesso a algumas matérias-primas que, vindas de uma região que está neste momento em guerra. Há um debate - que não é nacional, é um debate europeu -, sobre se é possível manter exatamente os níveis de compromisso com preços diferentes, tendo em conta as dificuldades de acesso à matéria-prima e com uma Guerra na Europa.

O PRR associa uma determinada verba a um conjunto de equipamentos, e construções. [Com os efeitos da crise] o mesmo volume financeiro pode não permitir a construção do mesmo número de habitações, por exemplo. É um debate inevitável, mas não tem uma marca nacional. Não é o PRR português que pode sofrer riscos de aplicação, é o contexto em que vivemos. Não é uma discussão nacional que decorra de uma maior dificuldade em executar o PRR.

Os projetos podem ir sofrendo correções de calendário?

Por exemplo. Ou de um valor por outro. É um debate inevitável, que acontece nos fundos europeus, no Portugal 2020 e que também acontecerá no PRR. Não devemos olhar para esse debate como uma especificidade nacional, porque não é. É um debate que tem de ser tido em toda a Europa, uma vez que a forma como foram calculadas as metas olhou para um preço base que hoje está desatualizado. Isso não significará forçosamente não cumprir o PRR. Depende dessa negociação que tem que ser tida e que está a ser tida.

Paralelamente e além dessas correções, podemos esperar mais medidas para aliviar os efeitos da guerra na Ucrânia?

Quando anunciou o primeiro pacote de medidas, o Governo disse que era um processo que tinha que ser permanentemente avaliado. Algumas das medidas que decorriam desde logo de aprovação da Comissão Europeia ainda não estão em vigor. Outras estão. O que se espera é essa avaliação permanente nos próximos meses.

Pedro Dominguinhos desvalorizou eventuais focos de corrupção ou de mau uso dos fundos europeus. Mas já houve avisos também por parte do Ministério Público em relação à falta de pessoal para ir fiscalizando. Há razão para ter receio?

Qualquer pacote financeiro deve ter associado um conjunto de medidas que procurem prevenir os fenómenos da corrupção e ter mecanismos de auditoria e combate à fraude internalizados. E essa é a regra que os fundos europeus sempre trouxeram e neste momento até os próprios orçamentos nacionais as têm. Foi um caminho de aprendizagem ao longo das últimas décadas.

No PRR foi decidido criar uma comissão de auditoria e controlo que tem a missão de auditar esses sistemas de controlo interno e perceber se eles estão implementados ou são suficientes, se são capazes de fazer o seu trabalho de combate e prevenção da corrupção e evitar dimensões de duplo financiamento, precavendo todas as utilizações indevidas do dinheiro.

A questão é saber se há recursos humanos para isso.

Se há uma instituição – seja a Inspeção-Geral de Finanças ou a Autoridade da Concorrência - que participa nas reuniões do Ministério Público e que tem algo a dizer sobre a necessidade de introduzir alterações, o Governo está disponível para as introduzir. Aguardo essas indicações que permitam clarificar e fortalecer o modelo da auditoria, o modelo de controlo e o modelo de combate à fraude.

Esse é o trabalho que se espera e é por isso que essas comissões existem. Agora que já foi passado o primeiro período de pedido de financiamento e nos estamos a aproximar do segundo [pedido de financiamento] importa saber se os instrumentos que foram criados são suficientes ou precisam de ser melhorados. É essa a essência da criação desses grupos.

Relembro que as instituições que em Portugal têm essas tarefas, da Inspecção-Geral de Finanças ao Ministério Público, ao Tribunal de Contas - fazem todos os dias o seu trabalho nestas matérias. O PRR não é um caso isolado. Existem sempre mecanismos de financiamento de programas de apoio financeiro em que esse trabalho da auditoria é feito e o PRR não é excepção.

Ao longo destes dois últimos anos foi muito a cara do Governo em relação à pandemia. Na semana passada, os casos baixaram, mas tivemos mais de 170 mil casos. O número de óbitos também baixou, mas chegámos a um nível de óbitos de 220 mortes na semana de 24 a 30 de Maio. Estamos na altura de puxar o travão de mão?

Ao longo destes dois anos não vivemos sempre a mesma situação. Temos hoje muito mais conhecimento do que tínhamos há dois anos sobre como é que a doença evolui e temos as vacinas e isso é que transforma a nossa relação com o número de infectados. Sabemos hoje, pelos dados dos internamentos e pela nossa própria experiência individual, familiar e colectiva que o facto de termos uma percentagem muitíssimo significativa da população vacinada nos dá outras condições de nos relacionarmos com o número de casos.

Já não é olhando apenas para o número de casos, ainda que isso seja um sinal mas também para as suas consequências do ponto de vista da saúde, dos riscos de internamento e dos riscos de morte. É isso e não nenhuma outra razão que leva a uma atitude diferente perante um número de casos que é maior. Sabemos que a pandemia ainda não acabou e que corremos sempre o risco de aparecer uma nova variante a que a vacina não responde da mesma forma.

E por isso é que nos momentos de transição, quando há novas variantes, às vezes é preciso tomar medidas até termos a certeza que o sistema imunitário através da vacina tem capacidade de responder àquela variante.

Agora, um cenário de total desconhecimento desta doença como aquele que vivemos inicialmente já não é o que vivemos. Temos que viver e fomos dando nota ao longo do último ano, dessa transição de deixar de estarmos centrados propriamente apenas no número de casos, mas no impacto que o número de casos tem no nosso SNS e na vida de todos nós. As reuniões de acompanhamento continuam com a mesma regularidade.

As do Infarmed acabaram...

Acabaram porque elas dirigem-se a momentos de mudança, mas o acompanhamento que fazemos com esses mesmos peritos é permanente. O acompanhamento que fazemos ao aparecimento de novas variantes também. Isso é que nos permite saber em que momento, se voltar a chegar, é que é preciso puxar o travão de mão. Neste momento não vivemos nessa fase.

Vivemos com uma variante que, graças às vacinas, permite que as pessoas continuem a fazer a sua vida, que recuperem rapidamente, que os níveis de internamento, tanto em enfermaria como em cuidados intensivos, não sejam significativos, sejam associados a outras comorbilidades e a idades mais avançadas, onde a sensibilidade é maior.

A dimensão-chave da nossa resposta a covid-19 neste momento ser a proteção dos mais vulneráveis, vacinando-os previamente e também garantindo que todos nós sabemos que temos os instrumentos, as máscaras, a capacidade de autoteste para sabermos quando estamos com alguém que está numa situação mais vulnerável ser parte da proteção dessa pessoa.

Falou da questão da vacinação dos mais vulneráveis. O que é que podemos esperar deste Verão? Será um verão descontraído? Iremos aproveitar o verão para generalizar o segundo reforço da vacinação ainda antes do Outono?

Relativamente ao plano de vacinação, as indicações que existem ao nível europeu são a da vacinação dos maiores de 80 anos ou de pessoas de especial vulnerabilidade. O Ministério da Saúde está neste momento a trabalhar na apresentação daquela que é a estratégia vacinal para o próximo Outono. Será preciso organizar logisticamente essa vacinação, que provavelmente decorrerá ao mesmo tempo que a vacinação da gripe.

Para as restantes faixas etárias e a partir dos 60 anos para baixo?

Ou para a definição que entretanto for feita de quem são os cidadãos que ainda precisam de uma dose de reforço. Essa escolha cabe às dimensões técnicas. Ao Governo cabe ter vacinas e tudo organizado para poder vacinar os portugueses, que do ponto de vista da Direcção-Geral de Saúde e da Comissão Nacional de Vacinação sejam identificados como precisando dessa vacina adicional.

Falemos do anteprojecto da Lei de Emergência Sanitária. O bastonário da Ordem dos Advogados já disse que, tal como está, o texto é inconstitucional, uma vez que a Constituição só prevê a privação de direito à liberdade por razões de saúde em caso de doença mental, mas não prevê em caso de doença contagiosa. Disse que se calhar até é preciso mexer na Constituição. Como é que o Governo pode contornar esta eventual inconstitucionalidade?

Foi precisamente por esse debate existir que o Governo procurou reunir um conjunto de juristas de reconhecido mérito e valor para preparar o trabalho deste anteprojecto. Sabemos que essa é uma reflexão difícil com a qual lidámos muitíssimo bem ao longo da pandemia enquanto país porque não estivemos a fazer este debate. Estivemos a tomar as medidas que foram consideradas necessárias, numa grande articulação entre o Governo, o Presidente da República e a Assembleia da República.

Agora é tempo de fazer esse debate. Esse debate parte de um estudo que procura responder precisamente a essas questões, dizendo que entende que não é necessário alterar a Constituição e procurando encontrar uma resposta para essa necessidade. O debate agora tem que continuar ao nível da Assembleia da República. De qualquer maneira, o senhor Presidente da República já anunciou que dada essa sensibilidade passará sempre por uma pronúncia também do Tribunal Constitucional.

Retiremos os ensinamentos destes dois anos em que foi possível tomar um conjunto de medidas para termos uma lei adequada a estas situações, pois com os fenómenos das alterações climáticas e de crescente globalização e circulação de pessoas em todo o planeta são mais prováveis do que foram no passado. Temos que ter os instrumentos jurídicos que nos permitam lidar com esses momentos.

O Governo fez o seu papel: procurar que um conjunto de especialistas da área da Saúde e do Direito fizessem essa reflexão. Existe um anteprojecto que tem agora a capacidade de ser debatido na Assembleia da República e na sociedade civil. Chegaremos certamente a uma decisão em linha com aquilo que a nossa Constituição permite, como aliás acontece sempre.

A apreciação do Governo é que o anteprojecto está conforme?

O documento foi entregue na perspetiva de que não carecia de uma revisão constitucional. Agora cabe à Assembleia fazer o debate. E o Presidente da República já disse que a aprovação e a promulgação dessa lei depende de uma pronúncia do Tribunal Constitucional, de forma a garantir que esse é um entendimento partilhado por todos.

Nunca escondemos a sensibilidade destas decisões. Só isso explica que o país tenha estado o tempo que esteve em estado de emergência. Agora cabe-nos preparar para passar para a fase seguinte e ter uma lei que procure responder, cumprindo a Constituição.